Será preciso compreender a política do bolsonarismo para derrotá-lo.
Por que o bolsonarismo apesar de perder as eleições nacionais, ter a sua liderança condenada por inelegibilidade e estar acuado por um largo processo judicial bem fundamentado em provas materiais, consegue manter a sua força política como demonstrou o ato do dia 25 de março na avenida Paulista?
Uma resposta imediata pode levantar, ao mesmo, três razões. Apesar de ter perdido a eleição presidencial, o bolsonarismo obteve quase metade dos votos, seus aliados mais ou menos orgânicos conseguiram vitórias chaves no plano dos governos estaduais e forte representação no Congresso Federal. O PL bolsonarista tornou-se o partido com maior número de eleitos na Câmara dos Deputados. Decerto o ato na Paulista seria impensável sem o engajamento ativo do atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e do prefeito da cidade.
Uma segunda razão é a dinâmica de polarização neoliberal contra a esquerda brasileira que segue liderada pelo bolsonarismo, tendo o PSDB perdido, ao que tudo indica de modo estrutural, a sua capacidade histórica de cumprir este papel. Assim, a oposição conservadora converge para o bolsonarismo, visto como a única viável. Além disso, o bolsonarismo manteve uma corrente política, expressa institucionalmente no PL, mas também em outros partidos próximos, nuclearmente coesa a partir de uma forte rede de comunicação enraizada socialmente e centralizada nacionalmente.
Mas, em geral, não se previu um ato com tal força. De fato, parece reiterativo o erro de subestimação da força do bolsonarismo por parte das inteligências coletivas da esquerda brasileira: foi assim nas eleições de 2018, quando a força ascensional do bolsonarismo só foi captada nos meses finais da eleição presidencial; também em sua capacidade de formar uma coalizão de governo com respaldo institucional e parlamentar quando ocupando a presidência; nas eleições de 2022, houve uma relativa subestimação de sua potência eleitoral após um governo tão desastroso e de sentido antipopular. Agora, estamos então lidando com uma reiteração desta subestimação.
É preciso, pois, alargar e aprofundar a compreensão do movimento político bolsonarista, que tem seu centro de gravidade na liderança de Bolsonaro (e sua família) mas que já forma uma rede nacionalmente enraizada nas classes dominantes, nas classes médias e, de forma importante, em setores populares e das classes trabalhadoras.
Propomos a seguir este caminho de reflexão em três hipóteses não excludentes: a internacional, a da calcificação e aquela que chamamos a política de Bolsonaro.
Crise de legitimação do neoliberalismo, Trump e bolsonarismo
Assim como não é possível pensar a ascensão do nazi-fascismo no século XX, sem inseri-lo na grande crise histórica do liberalismo (a perda da hegemonia inglesa e de sua capacidade de organizar uma ordem internacional imperialista, a ascensão revolucionária a partir da revolução russa de 1917, a crise de 1929), é preciso pensar a ascensão da extrema-direita no mundo no século XXI a partir da crise de legitimação do neoliberalismo e da capacidade do Estado norte-americano de organizar minimamente uma ordem internacional a partir de seus interesses geopolíticos. Os movimentos políticos de extrema direita nacionais, que se organizam de modo sincrético combinando o programa neoliberal com particularidades da crise em cada país, são orgânicos a esta conjuntura internacional. Ou seja, formam-se, alimentam-se, reproduzem-se a partir da relação com esta crise internacional da legitimidade do neoliberalismo. Não se usa aqui o termo hegemonia para caracterizar o neoliberalismo, mas sim de uma crise de legitimação de sua dominação, isto é, da sua capacidade de obter apoio, mas também conformismo passivo por maiorias.
O bolsonarismo é, então, orgânico à crise internacional do neoliberalismo em sua fase aguda atual. Os movimentos programáticos de direita ou de centro-direita que foram expressivos de uma fase ascensional da ordem neoliberal – até antes da crise de 2008 – como o PSDB no Brasil, a viragem neoliberal de partidos trabalhistas e social-democratas europeus, e principalmente o Partido democrata norte-americano após a ruptura coma política do New Deal organizada por Clinton, viram a sua capacidade de formar maiorias drasticamente reduzida.
O trumpismo e o bolsonarismo são, por excelência, respostas dramaticamente regressivas e violentas à crise do neoliberalismo, elaborando por outros caminhos e métodos mais profundamente anti-democráticos a sua continuidade programática. Em síntese, se o neoliberalismo é uma resposta historicamente regressiva à crise da hegemonia norte-americana, a ascensão da extrema-direita é uma resposta ainda mais regressiva à crise da dominação neoliberal sem abrir mão, mas aprofundando o seu programa.
Quando se escreveu no início de 2019 sobre o bolsonarismo como uma expressão de um americanismo em combinação com tradições ultraconservadoras brasileiras, não se falou propriamente de uma mera replicação ou mesmo de uma analogia com o trumpismo. Hoje, está mais evidente que se trata de uma coordenação comum, ou seja, o bolsonarismo formou seus métodos, programas e capacidades políticas alimentando-se de sua relação com o trumpismo. Há evidentemente raízes nacionais do bolsonarismo, herdadas do período da ditadura militar e das tradições racistas, antipopulares e patriarcais brasileiras de longa duração. Mas o fundamental é que estas raízes só foram capazes de convergir e de disputar politicamente as maiorias através de seu processo formativo com o trumpismo. A relação entre trumpismo e bolsonarismo é estrutural e estruturante.
Para se compreender o bolsonarismo e o recente fenômeno Milei na Argentina é preciso, pois, compreender o trumpismo. Ali também, na própria inteligência democrática norte-americana, em suas vertentes de centro-esquerda e esquerda, e na intelligentsia do Partido Democrata, também houve profunda subestimação do trumpismo, que se repetiu após a vitória de Biden em 2020.
Assim, ao contrário da indicação do título do artigo “Cómo Milei e Bukele se convirtieron em referentes para Trump y la derecha más conservadora de EE.UU”, de Gerardo Lissardy publicado em BBC News Mundo em 27 de fevereiro passado, nestas lideranças recém eleitas ( o segundo em eleições fraudadas e em um cenário repressivo), é o trumpismo que é a referência destes movimentos de extrema-direita na América Latina, assim como o Partido Democrata em seu auge foi o referente da expansão neoliberal.
Ao avaliar a eleição de Milei na Argentina, Maria Cristina Fernandes, uma das colunistas políticas mais lúcidas e informadas do país, afirmou que o novo presidente expressava o “apelo liberal fantasiado de extrema-direita”. Esta consciência de que a extrema-direita é uma corrente no interior da tradição plural do neoliberalismo é fundamental. Não há em Trump propriamente uma ruptura com o centro do programa neoliberal, mas uma reprogramatização crítica em relação às orientações do Partido Democrata, principalmente no campo da geopolítica, conferindo-lhe uma agressividade coerentemente ainda mais conservadora e mais mercantil.
Na Conferência de Ação Política Conservadora, realizada em Maryland em 27 de fevereiro deste ano, na qual Trump foi a grande estrela, o presidente do evento, Matt Schlapp, afirmou “que nos encantou a ideia de ter uma motoserra para representar o que seria a eliminação de gastos do Estado”. Por sua vez, em seu discurso Milei conclamou: “Não deixem avançar o socialismo, não apoiem a regulação, não apoiem a ideia de falhas do mercado, não permitam o avanço da agenda assassina (referindo-se ao aborto) e não se deixem levar pelos cantos de sereia da justiça social”. E concluiu: “ Se não lutarmos pela liberdade, vão levá-los à miséria”. Ora, esta fala é uma cópia exata do pensamento do principal fundador do programa neoliberal, Friedrich Hayek.
Vive-se nestes dois últimos anos um processo ascensional do trumpismo nos EUA, ameaçando a incerta reeleição de Biden nas eleições presidenciais que se realizarão este ano. Esta ascensão nutre o bolsonarismo, que vê sua legitimidade internacional fortalecida também com os movimentos ascensionais de extrema-direita em curso na Europa. Com as devidas mediações, uma eventual eleição de Trump este ano abriria um curso de uma conjuntura internacional ainda mais dramática, com fortes repercussões no Brasil.
A hipótese da calcificação
A hipótese que alcançou maior visibilidade e audiência pública para explicar a resiliência do bolsonarismo após a sua derrota eleitoral em 2022 é a da “calcificação”, que estrutura o livro “A biografia do abismo” de Felipe Nunes e Thomas Traumann. Ancorado em vasta documentação de pesquisas da Quaest, a inteligência dos autores trabalha aqui com o conceito elaborado no livro “The Bitter end”, dos cientistas políticos norte-americanos John Sides, Chris Tausanovich e Lynn Vavreck, para explicar o contexto político do país após a ascensão política do trumpismo.
Neste livro, para além do conceito de “polarização”, utilizado na ciência política para designar situações nas quais a disputa eleitoral se dá entre extremos, o conceito de “calcificação” é lançado para designar um contexto no qual a polarização partidária transborda para a dimensão social e afetiva, constituindo visões de mundo mutuamente excludentes e beligerantes, formando identidades dos eleitores. Estas, por sua vez, permaneceriam após os períodos de disputa eleitoral e fundamentariam uma fidelidade às lideranças em disputa, diminuindo o grau de volatilidade eleitoral mesmo diante de fatos negativos a elas associados.
Esta calcificação seria mantida através da estruturação de uma nova ecologia da (des)informação e da opinião constituída pelas redes comunicativas e enraizadas socialmente. Cria-se uma ambiência na qual as pessoas de cada campo nutrem continuamente suas crenças através de um processo de “bolhificação”, em uma drástica redução do pluralismo, da capacidade de conviver com divergências, de buscar sínteses ou mediações com ideias e valores antagonistas. O enrijecimento das paixões políticas transborda para o mundo afetivo: 47 % dos entrevistados perderam amigos ou tiveram relações prejudicadas.
A inteligência analítica dos autores pode e deve ser aprofundada pelo entendimento da relação entre o que se chama de “calcificação” e a dinâmica política histórica resultante da transformação do Estado liberal social para o Estado de regime neoliberal.
De fato, os fundadores do neoliberalismo ao aprofundarem e ampliarem a zona de ataque da chamada “guerra fria”, identificando até os liberais sociais keynesianos ou adeptos do New Deal como socialistas e destruidores da liberdade, criaram uma dinâmica de polarização para além daquelas estabelecidas e legitimadas nas democracias liberais. Se Biden é um socialista para Trump, se Fernando Henrique Cardoso é um socialista para Bolsonaro, se o peronismo de centro-direita de Fernandes é socialista para MIlei, então, a política como guerra aberta está legitimada. E meu adversário político é um inimigo a ser destruído em nome da liberdade.
Além disso, a dinâmica neoliberal ao aprofundar a desigualdade social, de gênero e racial, ao diminuir espaços de pactuação ou negociação no interior da democracia liberal, favorece dinâmicas de apartação social. Esta apartação precisa ser justificada através da atualização dos argumentos liberais classistas, que culpam os pobres e marginalizados por sua situação social, pelos valores patriarcais, racistas ou simplesmente colonialistas, como ocorre principalmente na Europa. O que se chama de “calcificação” seria, então, uma expressão desta sociologia da apartação.
Não há também como compreender o crescimento do antipluralismo e da intolerância, o cultivo anti-iluminista das razões sem remeter este fenômeno ao próprio corpo da tradição neoliberal com seu caráter dogmático, autorreferido, anti-intelectualista e propício ao cultivo de valores tradicionalistas, míticos e de fé religiosa. Em geral, políticas neoliberais são antipopulares e costumam penalizar eleitoralmente os governos e partidos que a defendem. O que a extrema-direita faz é compensar a contrafactualidade de suas razões e programas, desmentida sem cessar pela realidade, com um investimento emocional, de ressentimento e de fé. Em geral, o núcleo principal da adesão popular a Trump ou Bolsonaro é formado por cristãos conservadores, como verificam para o caso brasileiro as sempre interessantes pesquisas da Quaest.
A política do bolsonarismo
Em um evento bolsonarista, realizado na Assembleia Legislativa do Paraná no segundo semestre do ano passado, Eduardo Bolsonaro respondeu a uma pergunta de um dos participantes que reivindicava uma ação mais diretamente violenta contra o governo Lula, afirmando que o caminho não era esse, mas o “da política”. E acrescentou ironicamente, que se este participante obstinasse neste tipo de ação, ele até desejava sucesso a ele, mas não seria este o caminho que o bolsonarismo trilharia.
Para um movimento que se organiza na crítica aos “políticos”, cujas lideranças se apresentam muitas vezes de modo grotesco ou caricato, que atua a partir de apelos que contrariam o senso comum e parecem irracionais, a tentação é de lhe negar uma estratégia política consistente e coerente. Mas certamente este não é o caso do trumpismo ou do bolsonarismo: é preciso levar a sério a resposta de Eduardo Bolsonaro. Não no sentido de negar violência ao caminho que propõe. Mas há uma diferença entre a política da violência e a violência da política.
O movimento político que, por três vezes, de forma hoje bem documentada, buscou um golpe de Estado (antes das eleições, antes da posse de Lula e no 8 de janeiro) agora vem a público defender o Estado de Direito contra a perseguição política judicial a Bolsonaro e pregar anistia aos já condenados e a serem condenados como um gesto de pacificação. É preciso entender como se deu esta passagem entre o que Gramsci chamaria de “guerra de movimento” a uma “guerra de posição”, isto é, o caminho de acumular forças politicamente, disputar narrativas e valores para passar a um período de disputa aberta pelo poder.
A política do bolsonarismo pode e deve ser entendida como formada por uma tensão permanente entre o seu caráter de facção política, ou seja, de um movimento sectário e destrutivo da democracia e a sua busca constante para formar maiorias na disputa eleitoral, isto é, se universalizar.
A dimensão de facção política se expressa pelo que poderia ser chamado núcleo duro do bolsonarismo, que responde no fundamental por sua resiliência e continuidade. Ela é certamente composta por pessoas fanatizadas organizadas pela rede bolsonarista, ou seja, pelo seu aparato comunicativo somado à ação de agentes mediadores (grupos evangélicos, mas também de católicos conservadores, corporações militares, uma extensa gama de políticos eleitos etc.). Mas seria superficial ignorar a dimensão classista desta rede: a forte entrada do bolsonarismo no capital financeiro, no agronegócio, em redes patronais, empresas mineradoras interessadas na retomada e radicalização do programa neoliberal. O tamanho desta rede é, em geral, estimado entre 10 % a 20 % da população.
A política deve, ao mesmo tempo, manter a rede de facção e disputar maiorias. O bolsonarismo disputa maiorias eleitorais a partir de um diagnóstico dramático de uma crise de civilização (que contém, é certo, elementos fortes de verdade), na identificação de um inimigo a ser exterminado (as esquerdas em um sentido histórico amplo, mas também os liberais não aderentes a um programa neoliberal radicalizado ou às dimensões mais abertamente violentas do bolsonarismo) e, principalmente, da busca de universais que representem uma saída para a crise de civilização diagnosticada.
Os universais do bolsonarismo são desde o início a pátria verde amarela (ameaçada pelos vermelhos), a família patriarcal (ameaçada pelo feminismo e pelos movimentos LGBTQI+) e a fé em Deus (através de teologias fundamentalistas). O bolsonarismo ainda não foi desalojado da identidade destes universais e enquanto não o for, ele continuará a ter forças para disputar maiorias eleitorais. Até hoje quando se vê uma bandeira do Brasil alçada em algum lugar, pensa-se em bolsonarismo. O feminismo brasileiro ainda não foi capaz de repor suas razões e uma alternativa à família estruturada de forma patriarcal, apesar da maioria das mulheres brasileiras terem votado de forma significativa em Lula. A verdadeira guerra religiosa em curso no Brasil não tem mostrado, pelo contrário, o enfraquecimento das posições mais conservadoras, mesmo no seio do catolicismo.
O ato do dia 25 de fevereiro unificou a dimensão de facção e a disposição de lutar por maiorias eleitorais do bolsonarismo. Fez a passagem de uma situação estritamente defensiva para outra na qual a defesa do núcleo duro do bolsonarismo se faz através de uma aposta em bons resultados nas eleições de 2024. Colorido pelas bandeiras israelenses e pela voz do pastor Malafaia, ele conecta-se com a sua rede internacional e o seu fundamentalismo cristão. Mostrou capacidade de mobilização massiva e uma presença institucional importante de governadores e parlamentares.
Derrotar a política do bolsonarismo
É possível e necessário derrotar a política do bolsonarismo nesta conjuntura de 2024. Há situações objetivas em que está para além das forças de esquerdas vencer. Conjunturas nas quais o fundamental é resistir, acumular forças e evitar danos maiores. Esta não é certamente a situação das esquerdas neste primeiro trimestre de 2024.
O governo Lula continua com uma aprovação majoritária (embora em queda), o exercício do governo federal lhe dá instrumentos de ação decisivos na disputa, o grau de unificação das esquerdas avançou qualitativamente, os movimentos sociais estão em uma fase de retomada de seu potencial de mobilização. O bolsonarismo está sofrendo e sofrerá nos próximos meses um forte processo judicial de condenação, perdeu capacidade de articulação institucional principalmente no Senado, mas também, em um certo grau, na Câmara Federal. Embora não tenha sofrido grandes rupturas em seu arco de alianças, dos 16 governadores que não foram ao ato pela democracia organizado no início do ano, apenas quatro foram à Paulista. Uma derrota do bolsonarismo nas principais capitais e centros urbanos do país teria o efeito não de desorganizar o seu núcleo duro, mas de impedir que ele se apresente nas próximas eleições presidenciais com capacidade para disputar maiorias e vencer.
Uma política para derrotar o bolsonarismo deveria combinar uma política desenvolvimentista e distributiva que force os limites e vá além do arcabouço fiscal e uma política de mobilização nacional e de disputa eleitoral que dispute, desmascare e ofereça alternativas aos “universais” do bolsonarismo.
A primeira questão é decisiva. Quanto menos se superar os limites neoliberais institucionalmente impostos a um desenvolvimento com distribuição de renda e sustentabilidade, mais campo social para a política do bolsonarismo estará aberto. O Brasil vem, desde 2015, de um período de recessão e crescimento baixo, de concentração de renda, de desmonte das políticas sociais. As conquistas econômicas importantes de 2023 (retomada do crescimento e do emprego, aumento do salário mínimo, ampliação do Bolsa-Família e reconstrução das políticas sociais e de princípios iniciais e mínimos de uma política industrial) devem ter neste ano um aprofundamento qualitativo. Sem esta ação macroeconômica politicamente orientada, as eleições de 2024 se realizarão em um cenário indefinido ou desfavorável para as esquerdas.
A disputa dos universais precisa ser feita na dialética da negação e afirmação. O bolsonarismo está longe de ter pago o preço de seus seis “pecados capitais”: a guerra aos que trabalham, às mulheres e seus direitos, aos negros e povos indígenas e seus direitos, o desmonte das políticas sociais (na saúde, na educação, na política de habitação) e no cultivo da violência aberta e do ódio, o incentivo à predação da natureza. É preciso cobrar este preço do bolsonarismo nas eleições municipais de 2024 e, através de um frontal contraste com a realidade, por abaixo a mistificação que o envolve.
Mas não se vence a sedução de uma política de destruição e do ódio sem a afirmação de uma política anunciadora de um outro futuro possível e que está em processo de construção. A aplicação do programa para o qual Lula foi eleito em 2022 foi severamente travada em 2023. É preciso retomar e aprofundar o seu sentido: a afirmação da democracia para os socialistas não se resume à defesa da liberdade, mas vincula-a à igualdade social, de gênero e racial. A democracia se constrói com a soberania popular e se expressa pela afirmação dos direitos dos que são explorados e oprimidos. Sem este sentido, o próprio valor da democracia torna-se vulnerável aos ataques do bolsonarismo.
Em 2024 é possível, necessário e incontornável vencer a política do bolsonarismo. Mas para isto é preciso praticar plenamente uma política do socialismo democrático.
Juarez Guimarães é cientista político e professor da UFMG.