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A Política e a Democracia na Berlinda | Luiz Marques

Berlinda: estar em evidência embaraçosa”

Dicionário Houaiss

A criminalização da política tem contribuído para a crise de credibilidade das casas legislativas e sobretudo dos partidos políticos. O que nem sempre torna-se visível para a opinião pública é o embate que subjaz às denúncias de malfeitos, tratados como “escândalo”, palavra derivada do latim (scandalum) e do francês (scandale). De início, o vocábulo referia-se a condutas de religiosos que trouxessem descrédito à religião. Depois, para apontar transgressões dos códigos morais. Esse segundo sentido é empregado nos dias atuais para acompanhar denúncias de corrupção envolvendo políticos com mandatos parlamentares. O termo escândalo, porém, não se adapta a toda e qualquer aberração do poder. Não é forte o suficiente para designar a necropolítica de governantes durante a pandemia. Ainda que implique ações imorais, no caso, o correto é falar em genocídio. Modernamente escândalos são ocorrências imorais e/ou ilegais noticiadas por uma dada forma midiática de comunicação, que traz à luz segredos dos poderosos.

A publicização de scandales data do século XVIII. Cedo, a imprensa percebeu: escândalo vende. Com a magnificação pela TV, notícias acerca da malversação do bem público, propinas e subornos por políticos em postos no aparelho de Estado viraram um negócio, à revelia de estarem ou não amparadas em consistências, conforme John B. Thompson (O Escândalo Político: Poder e Visibilidade na Era da Mídia, 2002). Livro que não foi escrito “para ser uma queixa moralizante sobre a cultura do escândalo político que parece ter crescido ao nosso redor, nem foi concebido como um ataque polêmico contra aqueles que procuraram transformar o comércio com escândalos em uma maneira de sobreviver”. O autor contentou-se com “mostrar como a mídia transformou as condições da vida social e política”. A esférica Terra em que habitamos se moveu, para fazer um breve release.

Amplificadas pela emissão de satélites, as manchetes sobre escândalos comprometedores da atividade política e sua criminalização afetaram o exercício da governança nas sociedades ocidentais. Minaram os alicerces da democracia representativa. No Brasil, o Judiciário e o Ministério Público Federal (MPF), com o braço da Lava Jato, fez a convicção de autoridades de toga e beca (punitivismo que recendeu o período colonial-escravista) sobrepujar o princípio constitucional da presunção de inocência e dos direitos individuais (garantismo). A pantomima jurídica enfraqueceu o próprio Estado de Direito Democrático, e alavancou a escalada de um neofascista à Presidência. Decretou-se a morte de milhares, ali.

Otimismo da vontade, pessimismo da razão

Evidentemente o sistema eleitoral brasileiro tem responsabilidade no enredo. E a cada reforma orquestrada no Congresso fica pior, embora sempre na trilha de aprofundamento da personalização da política e encarecimento das eleições. A intenção é fazer da democracia uma oligarquia de e para endinheirados. Coisa estampada na composição da Câmara e do Senado, com a sub-representação de negros, mulheres, trabalhadores urbanos e rurais. Em paralelo, com a sobre-representação da bancada BBB (Bala, Bola, Bíblia), dos ruralistas e dos subsidiários dos mass media. Se as distorções intitucionais não estiveram na agenda multifacetada das manifestações de 2013 e 2015 e não estão nas manifs organizadas pela correnteza antineofascista, no momento, é que ambos os espectros acomodaram-se aos valores da democracia liberal do atraso. As lideranças populares não batem, com a imprescindível insistência, na tecla da proposta iliberal de um jogo eleitoral que promova o confronto programático com o voto em lista. Recurso propício ao discernimento dos coletivos analíticos em disputa, por não naturalizar um dos pilares do liberalismo – a noção econômico-ideológica de concorrência – no âmago dos partidos do condomínio à gauche.

A pedagogia política, em falta, revigora o modo como somos historicamente induzidos a conceber a sociedade, a saber, um somatório de indivíduos atomizados. Em consequência, impacta também no modo como vemos os partidos políticos: agremiações que reúnem vaidades, as quais têm em comum traços ambiciosos, tanto faz o viés partidário. A ideia de que as siglas são portadoras de programas com visões distintas sobre as relações sociais, políticas, econômicas e culturais ecoa distante. Diversos fatores moldam essa circunstância:

a) ausência do habitus democrático em uma sociedade com um histórico de racismo social-étnico e patriarcalismo de brutais violências sobre as classes subalternas, a negritude e o sexo feminino em seu DNA, o que dificulta o metabolismo de socialização e transmissão de ideais alternativos e igualitários de sociabilidade no país;

b) violação da democracia recente com a justificativa hipócrita (“pedaladas fiscais”, praticadas por todos os presidente anteriores) para o impedimento de Dilma Rousseff, o que fragiliza o devido respeito aos procedimentos democráticos;

c) aparato educacional deficiente, aliado à alta taxa de pobreza e desigualdade social, em que 1% da população detém 49,6% da riqueza (Relatório Credit Suisse, 2021), o que obstaculiza a pronta tomada de consciência sobre o “direito a ter direitos”, um princípio caro a Claude Lefort (L’Invention Démocratique, 1981);

d) manancial econômico desigual investido nas campanhas em custos com materiais de divulgação, transporte, comunicação, pesquisa, quantidade de propagandistas pagos), o que torna os candidatos conservadores mais competitivos e;

e) linguagem pasteurizada na apresentação dos programas partidários, na propaganda rádio-televisiva, em que expressões similares são empregadas pelos diferentes competidores, o que dá a confusa sensação de que todos almejam crescimento econômico com distribuição de renda, preservação ambiental e participação da cidadania.

A conjunção de fatores intervenientes turva a comparação de projetos. Tudo pinta-se de cinza, sem racionalidade aparente. Quase aleatório, ao cabo. A emoção incentivada pela atuação do marketing surge como elemento central para a decisão nas eleições, a se crer na filosofia dos publicitários. Inexiste, por isso, consenso intelectual sobre o nexo de causalidade entre ideologia e voto. Reina a discordância no arraial da Ciência Política.

A posição defendida por André Singer (Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro, 1999) sobre o corte ideológico incrustado na opção dos eleitores, o que aconteceria mesmo entre aqueles que declaram votar “nas pessoas e não em partidos”, sofre objeções ácidas na academia. Valeria somente para as franjas mais sofisticadas dos votantes, no parecer de muitos. Frederico Batista Pereira, em artigo na revista Opinião Pública (Non Causa Pro Causa: o Voto Direita e Esquerda no Brasil, maio-agosto 2020), pondera que a situação adversa exigiria uma intervenção na realidade concreta para trocar a sua configuração e fixar critérios claros de classificação na escala direita-esquerda para os eleitores. Um trabalho, por ora, de Sísifo. “Há barreiras estruturais que precisam ser compreendidas e removidas para que o chamado voto ideológico passe a guiar os resultados eleitorais.

Cabem, no entanto, duas objeções aos céticos à tese da ideologização dos pleitos. Uma, de ordem silogística, porque a conclusão do raciocínio acima está contida na premissa. Imagina-se a existência de um movimento como conditio sine qua non para remover os entulhos no estabelecido, antes do voto mudancista ser depositado na urna. O fim das barreiras estruturais antecederia os resultados eleitorais (ops). Outra, de ordem política, porque a transformação fora da via eleitoral pressupõe a revolução social. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Sem o risco do tropeço lógico-formal é inevitável o prognóstico derrotista sobre o futuro. Com efeito, a interpretação dos dados empíricos por linhas teóricas divergentes não rompe a antiga dialética: otimismo da vontade vs. pessimismo da razão.

O impasse não deixa dúvida sobre o que fazer. A esquerda deve procurar ser performativa para, no ato de apresentar-se à sociedade, elevar o nível de consciência política do eleitorado. Sua árdua tarefa exige espírito crítico, criatividade, inteligência e paciência para problematizar e desconstruir o senso comum. À direita, basta confirmar o que está aí.

Crise da política, esvaziamento da democracia

A crise do sistema representativo tem sido objeto de análises. Para a ganhadora do Prêmio Pulitzer, nos Estados Unidos, Anne Applebaum (O Crepúsculo da Democracia, 2021), o crescimento eleitoral dos inimigos do regime democrático soa o alerta das tendências neofascistas no Ocidente. O declínio da democracia é a contraface da ascensão de autocracias embaladas pelo autoritarismo / totalitarismo. Na pátria amada, vivemos a trágica experiência graças à conivência dos Poderes Legislativo e Judiciário, da Procuradoria Geral da República (PGR), do Alto Comando das Forças Armadas, das elites econômicas e dos veículos de comunicação que, com ardor, instigaram o antipetismo ao longo de anos.

Jacques Rancière (O Ódio à Democracia, 2020), interpela a esquerda francesa, por extensão, a brasileira. Sublinha que, uma vez esquecida toda política, a democracia converte-se em um eufemismo para designar um modelo de dominação que confunde o sujeito democrático “com um consumidor imbecil de pipoca, reality show, safe sex (sexo seguro), previdência social, direito à diferença e ilusões anticapitalistas ou altermundistas”. Sem uma política de transformação, a democracia “despolitiza as questões da vida pública para convertê-las em ‘fenômenos da sociedade’, ao mesmo tempo que nega as formas de dominação que estruturam a sociedade”. Quer dizer, a crise da política (transformadora) e do sistema de representação domestica o potencial subversivo da democracia. Do tigre, faz um gatinho aninhado nas dobras das injustiças sociais em contextos de exclusão. Com discursos descolados da práxis efetiva não se consegue mobilizar corações e mentes para mudanças.

O definhamento da política, asfixiada por escândalos e criminalizada pelo moralismo de fachada, integra o projeto da sociedade neoliberal. Eis o que subjaz ao festival de denúncias. Calar a resistência do povo, impedindo que vocalize a resistência à exploração e à opressão, é fundamental para estender o neoliberalismo a todos os espaços onde o capitalismo alcança. Na economia, vide a independência concretizada do Banco Central (Projeto de Lei Complementar) e a aprovação pelo governo usurpador de Michel Temer do Teto de Gastos para a União (Projeto de Emenda Complementar) nos próximos vinte anos. As medidas foram confeccionadas em detalhes, para contemplar os interesses do rentismo e do mercado financeiro. Engessaram o crescimento do país. Manietaram os progressistas, em caso de volta ao Palácio do Planalto. Para completar o assalto à soberania popular, necessitam sugar a energia emancipadora da política e sua capacidade de mobilização das multidões.

A estigmatização da política, sob a capa da corrupção e do custo exorbitante dos processos eleitorais aos olhos de qualquer mortal, cumpre papel estratégico para o controle do Estado – “muito além da ‘esfera econômica’ na acepção habitual do termo… e das fronteiras estritas do mercado”, escrevem Pierre Dardot e Christian Laval (A Nova Razão do Mundo, 2016). Nem rir nem chorar, mas compreender. Para erguer uma percepção política de totalidade sobre o conjunto das impressões esparsas colhidas na realidade. A consciência brota da organização dessas impressões embaralhadas sobre a sociedade neoliberal. – Para reavivar a rebeldia e, como os profetas do Primeiro Testamento, descortinar novos horizontes.

  • Luiz Marques é professor universitário, UFRGS

Foto: Guilherme Santos

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