A echente no Rio Grande do Sul constitui-se na maior catástrofe climática de uma região metropolitana do Hemisfério Sul. Trata-se de um fenômeno hidrogeoclimático e socioambiental complexo. Por essa razão, serve de aviso à toda comunidade nacional e global. Em 2004, também no sul, abateu-se o Furacão Catarina, o primeiro furacão descrito no Oceano Atlântico Sul. Por causa desse evento extraordinário, Al Gore, o ex-vice-presidente dos EUA, escreveu o livro intitulado Uma verdade inconveniente. Agora podemos perguntar, até quando esta verdade será inconveniente? Até quando as medidas para enfrentarmos os tempos severos serão procrastinadas se, de fato, já entramos na era das consequências?
A chuva de 800 mm que caiu no RS em apenas cinco dias deveu-se ao agravamento da emergência climática. A temperatura média do planeta já alcançou 1,5°C. Alguém pode perguntar: mas isso é pouco. Porém estamos falando da temperatura média da superfície da Terra. Para entender o que significa essa temperatura, imagine coletar o primeiro metro de água de todos os oceanos – Pacífico, Atlântico, Índico e Ártico. Considere agora que se possa colocar toda essa água em um grande tacho e aquecê-la 1,5°C. É essa energia que está sendo adicionada no sistema climático da Terra, o que eleva sua entropia. Veja: quanto mais os oceanos aquecem, mais suas águas evaporam. De outro lado, quanto mais a atmosfera aquece, mais ela consegue armazenar vapor de água. Então, quando esse vapor condensa, pode ocorrer uma precipitação de água muito maior do que aquelas que já vimos no passado. Dizemos então que os fenômenos severos serão mais intensos e frequentes.
Esse aumento da temperatura deve-se principalmente à queima de combustíveis fósseis, em especial o carvão, cuja exploração e queima deve ser encerrada em nosso país. A transição energética justa é uma pauta urgente.
Agora vejamos, se 800 mm de chuva caem no oceano, não há grande impacto na nossa infraestrutura. Porém, se caem nas terras onde vivemos, as consequências podem ser maiores ou menores dependendo de cinco fatores.
O primeiro fator a ser considerado é o da estruturação geológica geomorfológica e hidrográfica do lugar em todas as escalas, continental, regional e local. Precisamos olhar o lugar em que vivemos com muito mais cuidado do que já tivemos. Vejamos. Essa chuva caiu nas terras altas do Planalto Meridional, no nordeste do Rio Grande do Sul, e dali, rapidamente as águas escoaram para os principais rios. Esses rios encontram-se em vales profundos e estreitos, tipo cânions, como o do alto Jacuí, Taquari-Antas (que desemboca no baixo Jacuí), Caí, Sinos e Gravataí. As águas desses rios convergem para as terras baixas do Delta do Jacuí. Dali, elas escoam para o lago Guaíba, que está conectado com a laguna dos Patos, a qual se liga ao Atlântico. Todo esse magnífico sistema de lagos, que inclui ainda as lagoas do Casamento e a Mirim, é chamado de Mar de Dentro, e está no nível do mar. Então, na região de Porto Alegre ocorre um grande evento: os rios, que convergem como em um funil até o Guaíba, se encontram das com as águas do sistema de lagos e lagoas costeiros, que atuam como uma bacia. Em tempos normais, esses lagos interconectados atuam como vasos comunicantes e a água extravasa do Guaíba para a Laguna dos Patos e, depois para o Atlântico. Mas, quando há tempos severos, formam-se marés de tempestade na desembocadura da laguna dos Patos de Rio Grande. Então as águas não escoam e se acumulam no delta do Jacuí, formando um imenso lago de inundação deltaica que ocupou nessa enchente uma área de mais de 800 km², impactando cerca de 5 milhões de pessoas da região metropolitana. Esse fenômeno é chamado na literatura técnica de inundação súbita, pois esse imenso lago em terras baixas no sopé de terras altas forma-se muito rapidamente. Vemos assim, que a região metropolitana se situa em grande parte nas terras baixas e é muito sensível às inundações, sendo a mais notória a de 1941. Mas, toda a história dessas cidades e das comunidades dessa região tem sido feita enfrentando inundações.
O segundo fator diz respeito às condições que a água escorre sobre o solo, desde as cabeceiras até a desembocadura dos rios que afluem para o lago Guaíba. Essas condições dependem dos serviços ecossistêmicos. Se esses serviços – como os rios, a mata ripária, as matas e os banhados – estão funcionando integralmente, eles atuam para diminuir a velocidade e o volume da água. Por outro lado, se os serviços ecossistêmicos estão desestruturados, a água escorre com mais velocidade e volume. Nos últimos anos, em função da intensificação da monocultura, especialmente da soja, houve uma desestruturação dos serviços ecossistêmicos, facilitada pelo desmantelamento das leis ambientais que os protegiam. Toda a gestão territorial e ambiental foi desmantelada, e importantes órgãos como a Secretaria do Meio Ambiente do Estado (SEMA) e a pioneira Secretaria do Meio Ambiente (SMAM) do município de Porto Alegre foram desestruturadas e incorporadas em outras secretarias. Mas não só no setor agrícola, especialmente do agronegócio. O crescimento das cidades também se deu mediante a crescente ocupação de terras ribeirinhas, graças ao relaxamento de medidas protetivas dos planos diretores urbanos aumentando enormemente à exposição das populações ao risco. Nos vales profundos, nossos cânions, como o Taquari Antas, o nível da água subiu até a elevação de 30 m, transformando os dóceis rios em torrenteiras (rios muito volumosos e de alta velocidade, com enorme carga de cascalho, areia e lama, próprio de regiões montanhosas) cuja força é capaz de arrasar cidades, como vimos em muitas situações.
O terceiro fator é o da infraestrutura do Estado e dos municípios para enfrentarem o cenário catastrófico. Vou citar apenas um exemplo para mostrar como essa infraestrutura foi desmantelada peça por peça no último período. O sistema de proteção contra inundações de Porto Alegre não funcionou por falta de manutenção nas comportas e casas de bombas. Isso é inaceitável, é como trancar os coletes salva-vidas em uma sala. Mas a ele, somam-se outros, como a desestruturação do sistema de energia elétrica mediante sucateamento continuado e posterior privatização da CEE, à qual, no mesmo compasso, seguiu-se o abastecimento de água CORSAN. Os serviços essenciais de água, luz, hospitais, devem necessariamente contar com planos de contingência para enfrentar situações de emergência.
O quarto fator é o da capacidade e preparação da defesa civil. Reconhecemos que houve um esforço heroico, aqui. Muitas pessoas foram salvas em situações desesperadoras. Vamos agradecer pelo resto das nossas vidas a esse esforço. Mas, do ponto de vista técnico, sabemos que quando uma vovó ou uma mamãe com bebê são salvas no telhado de suas casas inundadas, é porque falhou nosso sistema de alerta e prevenção. Não podemos achar normais essas cenas, pois somos uma sociedade que tem capacidade para fazer frente a situações como a que ocorreu. Por um lado, porque são previsíveis e tem ocorrido com frequência, embora em magnitude menor, como a enchente de 2015 e de 2023. Por outro, porque temos conhecimentos armazenados nas nossas universidades e em várias experiências inclusive no Brasil. A Defesa Civil de Santa Catarina, por exemplo, encontra-se muito mais capacitada. Nosso estado vizinho aprendeu mais rápido com as inúmeras tragédias climáticas que tem acontecido em seu território.
Então temos aqui o quinto fator, o da Educação, que escrevo com ‘E’ maiúsculo, para enfatizar sua importância. Os temas climáticos, ambientais, geográficos e geológicos devem estar na escola, como conteúdos e, principalmente, como práticas. Do ensino universitário ao fundamental, devemos entrar em outro ciclo educativo: aquele que prepara a juventude e os futuros profissionais para a emergência climática. São eles, os jovens, que vão construir as soluções para o futuro. Poderia aqui relacionar um conjunto de ideias. Mas quem vai executá-las? Os profissionais formados com as ideias do século XX ou aqueles que sabem projetar a realidade do século XXI? O pior recado que podemos passar às novas gerações – nossos filhos e filhas, netos e netas, alunos e alunas – é o de que esses eventos são uma fatalidade e um destino. Sim, eles vão ocorrer com maior intensidade e frequência e intensidade no futuro. Essa foi a primeira enchente dessa magnitude que enfrentei em minha carreira de geólogo. Estava algo preparado por já ter enfrentado situações catastróficas ocasionadas por terremotos, extrusão vulcânica e torrenteiras nos Andes Centrais. Mas, meu filho e meus alunos e alunas poderão ter pela frente mais duas ou três enchentes desse tipo. Precisamos então encorajar as novas gerações e devemos fazer isso com base no conhecimento e não negando os eventos climáticos e muito menos com fake news.
A grande estratégia para o futuro não é o da reconstrução feita com base nas ideias prepotentes do século XX, que nos trouxeram até aqui. Diferente disso, devemos pensar na ideia chave da regeneração dos nossos ecossistemas, desde as nascentes até as desembocaduras. Pensar no conjunto ecológico e paisagístico onde vivemos. Na regeneração das cidades, que devem ser menos parasitárias em termos energéticos e alimentares. As cidades devem ter trama de corredores ecológicos e minibosques, que funcionam como esponjas e ajudam a regenerar os ecossistemas onde vivemos. Importante, ainda é a regeneração das comunidades, impactadas por uma catástrofe que interrompe as rotinas, as atividades econômicas e os laços construídos ao longo do tempo. Regenerar todo o lago Guaíba. Ele é o maior bem ambiental, ecológico histórico e cultural de Porto Alegre. Ele é nosso destino, o que acontecer com ele, acontecerá conosco. Por fim, precisamos de uma geoética, que informa nossos claros limites para habitar a Terra na época do Antropoceno. Como disse um sábio líder indígena, não podemos tomar o lugar que é da água
Rualdo Menegat é Professor Titular do Instituto de Geociências da UFRGS, Coordenador-Geral do Atlas Ambiental de Porto Alegre.
Via Rede Estação Democrácia (RED).
*Texto revisado de fala feita no Senado da República no dia 26/05/2024