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A questão da frente de esquerda no Brasil | Raul Pont

1) Introdução

A vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 foi fruto de uma conjuntura bastante particular. A grande burguesia brasileira (FIESP, bancos, grande mídia , agronegócios ) através de seus partidos, desde 2015, jogou o país numa grande instabilidade. O PSDB capitaneou com Aécio Neves, derrotado em 2014, junto com o PMDB de Eduardo Cunha na presidência da Câmara Federal, uma estratégia de desestabilização e de impedimento do 2º mandato de Dilma Rousseff. A política das “pautas -bombas”no Congresso , o cerco ao Governo e da política de austeridade da “Ponte para o Futuro”, liderado pelo vice presidente Michel Temer, expressaram essa orientação política com a grande burguesia financeira e industrial .

Cercado, o governo Dilma buscou ainda conciliações, como a indicação de Joaquim Levy para o comando da economia e políticas de grandes concessões e desonerações tributárias na esperança de que os empresários voltassem a investir . Nem Levy cumpriu a promessa de uma rápida austeridade para retomar o crescimento nem os empresários fizeram investimentos ou mantiveram empregos.

Esses graves erros cobraram um alto preço. A base social que garantira o quarto mandato passou a desconfiar e abandonar o governo, pois via os sinais de recessão e desemprego batendo na porta.

Estava aberto o caminho para o golpe de 2016. Não bastava o governo  fazer a política neoliberal. A direita queria derrubar o governo do PT já que pelo processo democrático isso não fora possível.

O quase pleno emprego alcançado em 2014 e a diminuição da taxa Selic eram insuportáveis para a burguesia e os rentistas brasileiros. Era necessário criar algum “crime” para justificar o impedimento de Dilma. Inventou – se a “pedalada fiscal “, tese insustentável para criminalizar  qualquer governante mas suficiente para alinhar todos os deputados do centro e da direita ,inclusive, dos partidos que estavam no governo com Dilma. A nação presenciou o “circo de horrores” daquela votação.

Mas ainda era insuficiente. Com a cumplicidade do STF, Lula já não pode ser ministro Depois do golpe era imperioso impedir sua candidatura. O resto da novela já conhecemos. A farsa da Lava-jato sob comando de Moro fazendo o papel de polícia, inquisidor e juíz simultaneamente, o compadrio  da 2ª instância no TRF4, o Supremo com assessor de quatro estrelas para alinhar os ministros com a vontade dos quartéis e ,a toque de caixa, batendo todos os recordes de tramitação , a condenação do presidente Lula para retirá-lo da disputa.

Mesmo assim, havia necessidade de se  criar uma candidatura capaz de ter alguma legitimidade das urnas. O programa da aliança golpista expressava-se através do governo Temer e os índices de popularidade do golpista no final do governo não alcançavam 10% na opinião pública. As candidaturas de sucessão do programa de austeridade, liquidação dos gastos sociais e entrega do patrimônio público estavam fadadas a derrota e o pleito confirmou isso. Meirelles (MDB) ex- ministro, banqueiro, engordando a campanha com milhões do “próprio bolso” sem nenhuma desconfiança da Promotoria Eleitoral, fez míseros 1% dos votos. Alckmin , o homem do Estado mais rico, representante da grande burguesia e dos grandes bancos alcançou pouco mais de 4% dos eleitores.

Os capitalistas brasileiros assim como sacrificaram seus partidos em 1965 através do Ato Institucional nº 2 aceitando o bipartidarismo de fachada imposto pelos golpistas de 64, agora, novamente revelaram seu total desprezo pela democracia e a necessária representação partidária. Sabiam que o seu programa anti-povo e anti-nação não ganha eleição e que seriam derrotados por Lula.

Desembarcaram, de “mala e cuia”,na candidatura anti-sistema montada no senso comum do combate a corrupção , aos “políticos” em geral , ao parlamento e, em especial, ao antipetismo e ao antilulismo pregados há anos pelo oligopólio da mídia .

Depois da facada, até hoje não explicada além da “mão de Deus”, o capitão candidato tornou-se a alternativa ideal. “Um mito “que não precisava esclarecer um programa, participar de um debate. Uma incógnita, portanto ,sobre o futuro do país. Um novo “caçador”, agora de “corruptos”, como o outro criado pela Globo em 1989.

O quadro completou-se com a artilharia empresarial das fakes-news e o bombardeio diuturno de todas as redes de rádio e TV em favor do “mito” que traria redenção ao país depois dos pecados do período de Lula e Dilma. Se ainda sobrasse alguma coisa seria dizimada pela infantaria de centenas de pregadores charlatães que transformaram vários cultos religiosos em partidos políticos numa ação completamente inconstitucional e ilegal que só não é vista pelas “guardiães da lei”, numa república que se  diz laica e não confessional.

A ênfase desta análise  ,porém, é a questão do sistema partidário . A avaliação conjuntural introdutória é para situar o momento em que vivemos mas o foco é compreendermos o tsunami ocorrido no sistema partidário em um contexto como esse.

Depois de quase 20 anos de bipartidarismo imposto, os partidos políticos no Brasil reorganizaram-se na luta pela democratização a partir de 1980/1.  Antes disso, fora o período de 1946/64, quando existiu um pluralismo limitado com vários partidos ,pode-se afirmar a ausência de vida democrática no país. Trezentos anos de colônia portuguesa e cem anos de um império  escravocrata onde liberais e conservadores só representavam uma pequeníssima elite. Mesmo com a República, os limites do voto, a exclusão das mulheres, dos pobres e analfabetos tornavam o sistema oligárquico e autoritário.

A eleição de 1982 deu-se com as regras do regime e o famoso “pacote de novembro de 1981” quando as normas eleitorais foram estabelecidas para garantir uma vitória do governo militar. Os critérios para criação dos novos partidos eram exigentes e imperativos. Ou se nascia dentro do Congresso com um mínimo de deputados ou senadores da Arena ou do MDB, ou se exigia um percentual de municípios (20%) em um número mínimo de Estados (11) e com um número de adesões firmadas que era praticamente impossível cumprir a meta num pequeno período de tempo. Dos cinco primeiros partidos, apenas o PT cumpriu essas exigências. Os demais nasceram no Congresso pré- existente.

Outro critério era o “voto vinculado”,obrigando o eleitor a ir para as nominatas governistas. O voto vinculado em candidatos de um mesmo partido de governador a vereador, sob pena de anulação do voto, só favoreciam ao PDS e ao PMDB, sucessores da Arena e do MDB e que já possuíam uma estrutura nacional e lideravam qualquer disputa majoritária. PDT, PTB e PT estavam fadados apenas marcar posição e denunciar o golpismo antidemocrático do processo. O voto vinculado durou pouco. Em 1985, as capitais voltaram a eleger prefeitos, mas a  eleição direta para presidente iria demorar mais quatro anos e a nova Constituição de 1988 no campo eleitoral não foi nada “cidadã”. Manteve as mazelas do sistema anterior.

O sistema eleitoral aprovado em 1988 mantinha o mais anacrônico e despolitizador elemento: o voto nominal e a separação entre o voto Legislativo e o voto para o Executivo.

O voto nominal privilegia a pessoa, o indivíduo, além de estabelecer uma disputa entre os candidatos inclusive do mesmo partido. Combinado com o financiamento privado das campanhas transforma-as em uma guerra de vida ou morte pois os eleitos são os mais votados. No caso brasileiro, transformou-se na ante-sala da corrupção, pois, para ser mais votado é necessário ter mais estrutura material, maior número de apoiadores, propagandas mais caras, etc…

A separação do voto tende a não garantir governabilidade ao eleito e se a isso soma-se uma permissiva criação de partidos, o eleito só governa em situações de coalizão incoerentes e contraditórias. As composições governamentais tornam-se um mercado de trocas e uma crescente ingovernabilidade. Esse presidencialismo de coalizão no Brasil chegou ao paroxismo agora em 2018 quando os dois partidos mais votados alcançaram apenas 10% da Câmara Federal, cada um deles. E uma pulverização do voto em torno de 30 partidos políticos.

Esse sistema eleitoral e partidário é outro elemento que ajuda a compreender o ocorrido na crise 2016/18 e que coloca na ordem do dia da defesa da Democracia e do Estado de Direito no país a conquista de uma verdadeira reforma político-eleitoral.

2. A crise de representação parlamentar e partidária

O Estado Constitucional moderno nos séculos XVIII e XIX é apresentado pela ideologia liberal como Estados em que já está presente a democracia. Isso não é verdade. As primeiras lutas pelo direito de organização e representação sindical e partidária na Europa surgem na metade do século XIX e cada espaço ou direito alcançado foi fruto muito mais da luta do que das iniciativas ou concessões dos regimes liberais. O direito ao Sindicato, ao Partido, a extensão do voto, o sufrágio das mulheres, a jornada de trabalho, a previdência, a escola pública etc.… são conquistas sociais ao longo do século XX.
As leis racistas persistiam nos EUA na segunda metade do século XX e o conservadorismo europeu ainda perdura nas monarquias e nos privilégios da nobreza.

O sistema representativo clássico também se burocratiza, assim como as estruturas partidárias sofrem as consequências dessa ossificação através de cooptações, privilégios, vantagens e permanências prolongadas que acabam criando conflitos e contradições com os princípios democráticos.

Aqui aparecem sistemas eleitorais que distorcem radicalmente a expressão democrática como o voto distrital que nega a proporcionalidade, os colégios eleitorais que distorcem o voto primário, o poder econômico e as regras exigentes para impedir novas representações tipo a plutocracia estadunidense, a longevidade dos cargos etc.…

Outro elemento mais recente é a  criação de organismos internacionais, supranacionais que  vão adquirindo um poder de decisão enorme ao definir políticas impositivas aos estados membros e que, na maioria dos casos , não são eleitos diretamente, não prestam conta e não respondem pelo seus atos aos cidadãos dos vários países e populações atingidas.
Essa crise expressa-se de várias formas em todo o mundo. Não é uma expressão apenas dos países de origem colonial ou de grande instabilidade política onde se alternam governos ditatoriais, regimes autoritários, fases de maior ou menor repressão e agressão aos direitos humanos e aos processos de corrupção que pipocam sem fim em uma grande número de países.

A União Europeia hoje é contestada pelo Brexit no Reino Unido, na crise da Grécia, na oposição crescente de movimentos nacionalistas de caráter autoritário e até fascista em vários países e explosões espontâneas de jovens, desempregados, excluídos do sistema como vimos no movimento dos “indignados” na Espanha, os “coletes amarelos” na França, bem como de organizações de direita que questionam o sistema europeu e não se sentem representados.

O fenômeno está presente também em países que viveram a experiência  do “socialismo real” dominados pela União Soviética. O abandono da concepção do conselho (soviet) e de uma democracia direta onde predominasse a ideia do produtor-legislador dos primeiros anos da Revolução foi acompanhado do fim do pluralismo nos soviets e do predomínio da concepção do Partido único, na União Soviética e nos países satélites do bloco.

As poucas e ricas experiências de auto -gestão e de controle plural do Estado reduziram-se ao predomínio do Partido único e da burocratização do Estado. A construção de uma democracia socialista foi esterilizada pela burocracia.

Nos países capitalistas ocidentais os partidos socialistas e comunistas integraram-se aos sistemas liberais representativos submissos ao peso do reformismo por dentro das instituições e a concepção do “socialismo real” da burocracia e do Partido único.

A produção teórica e experiências concretas de uma democracia participativa e /ou formas de controle e participação direta da população se restringem a referendos e plebiscitos ocasionais.

Esse é o desafio que permanece para um socialismo do século XXI . Esse atraso é o responsável pela dificuldade de superação de uma estrutura esclerosada, burocratizada e que não responde mais aos anseios democráticos da juventude, dos movimentos sociais que se organizam e lutam por “democracia real”. As estruturas de representação ou são dominadas pelos sistemas eleitorais e partidários viciados pelo poder econômico, pela burocratização, pelas novas formas de comunicação via redes sociais que distorcem  pelas mentiras, pelos preconceitos, pelo senso comum a formação da opinião pública através dos monopolizados controles desses instrumentos de manipulação das redes sociais e das mídias tradicionais de rádio e TV.  No Brasil, esse quadro é agravado pela pequena experiência histórica de vida democrática e do sistema representativo e partidário. Com algum rigor, podemos afirmar que essa experiência ainda não alcançou quarenta anos, considerando o grau de pluralismo permitido pós a organização partidária dos anos 80.

Mais recentemente, agravou-se o processo de representação com o surgimento dos cultos religiosos tornando-se siglas eleitorais que usam os templos, suas rádios e TV’s para uma pregação ideológica e programática em nome de Deus e perfilada por uma concepção individualista, meritocrática baseada numa “teoria da prosperidade” como graça divina e associada a costumes conservadores e obscurantistas.

Essa visão conduz, necessariamente, a um Estado confessional que colide frontalmente com a Constituição laica e republicana vigentes.

3. Apesar da crise global, o sistema representativo continua vigendo e predominante na experiência mundial

O fim da União Soviética e a crise do “socialismo real” abriram um processo profundo de declínio dos partidos comunistas e dos grupos políticos que se referenciavam na herança do stalinismo. Os partidos social- democratas sofreram igualmente essas consequências mas já há muito tempo são reféns da cooptação pelo sistema representativo burocratizado e pela visão reformista dessa corrente política.

O caso da península ibérica onde a social-democracia, inclusive, governa não há , visível, qualquer movimento de questionamento parlamentar ou de projetos que avancem para uma Democracia Participativa. A recuperação do Trabalhismo inglês com a corrente de J. Corbyn, retoma bandeiras históricas do Trabalhismo na defesa de reestatização de empresas e serviços públicos nas não há uma contestação do sistema representativo inglês. Por sinal, uma monarquia com voto distrital.

A onda de direitização na Europa com o (re)surgimento de partidos e movimentos claramente xenófobos, autoritários e alguns até declarados fascistas e nazistas podem ser argumentos para a defesa das instituições representativas no continente. Mas, não eximem a esquerda da busca de alternativas mais sólidas e duradouras no campo democrático socialista.

Alguns desses movimentos nacionalistas de direita xenófobos e com traços fascistas alcançaram apelo popular pois assumem problemas reais e anti-sistema como o sentimento crescente anti União Europeia, a denúncia dos migrantes como culpados pelo desemprego, a revolta contra os partidos tradicionais, os serviços públicos precários, o trato desigual nas políticas de austeridade e os preços públicos de combustíveis, gás, etc… como as motivações confusas e basistas dos “coletes amarelos” na França.

No campo de uma contestação mais dirigida por “democracia direta” como o movimento dos “indignados” da Praça do Sol, em Madrid, que desaguou no “Podemos”, movimento claramente político e contestatório, em pouco tempo, canalizou-se para a disputa política nas instituições.  Sozinhos ou em aliança com forças históricas da esquerda espanhola como Esquerda Unida ou em composições regionais. Hoje, ao disputar eleições e assumir governos passou a viver os desafios de um partido que quer ser democrático: como se organizar, como garantir democracia interna, proporcionalidade das posições divergentes, relação dos que assumem mandatos ou cargos de representação e a base do movimento que nasceu na democracia direta das praças.

Essas dificuldades dão a dimensão do tamanho da tarefa da reconstrução de uma esquerda na Europa e em outros continentes. As experiências de reconstruir relações entre partidos que não tinham diálogo entre si também demonstram uma busca de aprendizado comum.

Em Portugal, por exemplo, o Partido Socialista governa o país com o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda (grupo com forte influência trotskista em seu interior) e do Partido Comunista (um dos Pcs mais conservadores da Europa). Esse acordo, apelidado de “geringonça”, garantiu um governo que fez enfrentamentos à política de austeridade da União Europeia e seu Banco Central, com resultados positivos para a maioria da população. PC e Bloco de Esquerda dão sustentação parlamentar mediante compromissos de programa mas não participam do governo.

A frente de Esquerda na França, mesmo sem incorporar no último processo eleitoral presidencial o conjunto da esquerda, alcançou 20% dos votos. A experiência reuniu egressos do PSF, setores do PCF, grupos e movimentos da esquerda de vertente trotskista, alcançando um patamar eleitoral que mostra um potencial significativo de um novo e forte interlocutor na política francesa.

Essas experiências que apontam para um novo momento de reconstrução partidária são positivas mas não incorporaram ainda ou não tem tido a capacidade de combinar esse crescimento/ressurgimento com uma ousadia maior no campo das instituições políticas de representação e os sistemas eleitorais do capitalismo.

4. Algumas experiências partidárias de esquerda na América Latina do século XXI

Na segunda metade do século XX, as experiências partidárias na América Latina, no campo da esquerda, eram ainda marcadas pelos matrizes europeias do socialismo. A partir dos anos 20 formaram-se Pcs em praticamente todos os países do Continente sob influência da República Russa e do longo das décadas seguintes com forte hegemonia da URSS e do stalinismo na III Internacional.

Da mesma forma, a sobrevivência da social-democracia europeia, hegemonizou a maioria dos partidos socialistas e/ou social-democratas latino-americanos como forças reformistas e defensores da via parlamentar como caminho para conquistas e avanços sociais.

Nos países mais populosos e com processos de urbanização acelerada, com predomínio de exportações primárias e de minérios, constituíram-se tentativas de um projeto nacionalista burguês sob perfil populista e de forte apelo carismático em torno de grandes lideranças.

São os casos do México com Cárdenas, do Brasil com Vargas e da Argentina com Perón. Os projetos desses movimentos em torno de um capitalismo nacional através de alianças de classes e com forte intervenção do Estado na infraestrutura, nos transportes, na energia elétrica e telefonia, no petróleo e gás, na mineração, na educação pública, etc… foram abandonados pelas burguesias desses países pelo temor da inclusão política das massas populares que o projeto despertava. Com graus variados de inserção, seus partidos também fracassaram pela burocratização, pela cooptação a ordem capitalista que o sistema representativo conduz e a incapacidade de romper com a ideologia burguesa no comportamento e no funcionamento autoritário, não democrático, do modelo partidário.

As trajetórias do Partido Revolucionário Institucional (PRI)no México, do Partido Justicialista ( PJ) na Argentina, e do PTB, guardadas as particularidades de cada país, são muito semelhantes na incapacidade de construir um projeto que rompesse com o imperialismo, com o sistema capitalista global.

As experiências sucessoras desses movimentos também têm revelado uma carência de projeto estratégico.
Subordinam-se a conciliações de classe que os tornam reféns do capitalismo. A cisão do PRI no México gerou o PRD que chegou a governar a Capital e participa do Foro de São Paulo, mas sofreu novas crises e cisões perdendo a capacidade de hegemonizar e/ou estar presente num bloco mais coeso e com um projeto anti-capitalista. Uma dessas cisões gerou o Movimento de Regeneração Nacional (Morena) do atual presidente ,eleito há pouco, Andrés Obrador.

Na Argentina, o peronismo mantém-se como força eleitoral muito forte mas com enormes conflitos internos por seu caráter pluriclassista. Essa trajetória passou pelo governo Menem, totalmente neoliberal e subordinado ao Capital internacional até os governos do Kirchnerismo, aliados a uma política de recuperação da soberania nacional e de defesa de uma integração dos países latino-americanos num bloco via Mercosul e a Unasul na resistência ao Imperialismo.

Atualmente, o Peronismo tem correntes internas num amplo leque programático. Nas recentes Primárias Abertas Simultâneas Obrigatórias (PASO) para todos os partidos que disputarão as eleições presidenciais, há senador peronista na chapa com Maurício Macri (reeleição), outra chapa com peronistas mais de centro-direita e que expressa uma frente de representação das províncias do interior e a chapa do Kirchnerismo com Alberto Fernandes e Cristina Kirchner. Esta frente de centro-esquerda é formada por setores progressistas do peronismo e correntes do movimento popular e sindical.

Neste sistema de primárias (PASO), há também a “Frente de Esquerda e dos traballhadores-unidade “(FIT) formada por partidos de esquerda: PTS, PO, IS e MST que disputam as primárias com o objetivo de ultrapassar a barreira de 1,5% votos para poder disputar a eleição presidencial. São partidos do campo entre peronista e anticapitalista e expressam correntes de origem trabalhista.

Apesar das pesquisas eleitorais apontarem uma disputa apertada a Frente de Todos e Todas alcançou uma vitória consagradora contra Macri, retirando deste o favoritismo para as eleições de Outubro. A vitória da dupla A. Fernandes e C. Fernandes altera a conjuntura na Argentina e terá grande influência nos demais países da América Latina, o que não retira as enormes dificuldades que terá para governar. Por outro lado, a Frente de Todos e Todas tem força eleitoral vitoriosa mas tem um caráter estratégico e programático frágil. Não é uma frente orgânica de Partidos, mas mais um movimento em torno de lideranças como Cristina Fernandes e Alberto Fernandes, que atuou no governo de Nestor Kirchner e que expressam as debilidades programáticas do ecletismo peronista. Não há um paralelo com a situação brasileira onde os setores de centro assumiram o projeto neoliberal autoritário e obscurantista de Guedes e Bolsonaro. Com a crise de referências iniciada nos anos 60 (as denúncias contra o stalinismo, a revolução cubana, o maio francês em 68) os partidos tradicionais de representação da esquerda-Pcs e Pss-entraram em declínio e perda de influência na América Latina.

Várias experiências trilharam caminhos distintos e muito particulares na América Latina nas últimas décadas evidenciando que não há um caminho único a buscar.

As experiências de luta armada de caráter frentista em países sem uma tradição democrática e dominados por oligarquias como Nicarágua e El Salvador tiveram que construir formas partidárias para levar adiante a disputa democrática em instâncias parlamentares plurais em governos institucionalizados, sem criar mecanismos novos, de outra natureza que o sistema representativo clássico.

Mais recentemente, em uma conjuntura econômica internacional favorável que alcançou vários países também tivemos experiências e vitórias eleitorais com características diferenciadas no jogo democrático.

Nos casos do Equador e da Venezuela, a crise profunda das forças políticas tradicionais permitiram vitórias eleitorais que antecederam uma construção partidária. No Equador, Rafael Correa teve apoio de vários grupos políticos mas não havia um Partido hegemônico, estruturado previamente.

A Aliança País como Partido surgiu depois da vitória eleitoral. No governo foi se transformando no principal partido de sustentação governamental.

Na primeira vitória de Chávez na Venezuela, além do Movimento Bolivariano Revolucionário (MBR) que era sua base no interior das FFAA, teve apoio de vários grupos e partidos do campo de esquerda que apostaram na liderança carismática de Chávez. Só mais tarde foi organizado o Partido Socialista Unificado da Venezuela, (PSUV), já com Chavez no governo reeleito.

Na Bolívia, o Movimento ao Socialismo (MAS) antecede a vitória do Evo Morales e também um conjunto de forças políticas apóia e participa do governo. Neste caso, com uma força significativa enraizada nas organizações dos povos originários.
No Chile, antes da Ditadura de Pinochet o País viveu a vitória de Salvador Allende com a experiência da Unidade Popular, frente entre OS, PC e outros grupos menores, mas interrompida pelo golpe militar com o apoio aberto do imperialismo americano. Após a ditadura militar as vitórias do PS foram marcadas pela “lenta e segura” transição da saída de Pinochet. A “Concertação” entre o centro ( Democracia Cristã e outros) e o PS e o sistema eleitoral criado garantiram vitórias do PS sob muito controle do centro e da direita e com a exclusão ( via distritos eleitorais) da esquerda. O PC e vários grupos e correntes mais à esquerda foram excluídos pela eleição majoritária e excludente nos distritos eleitorais. O resultado são governos em minoria nos parlamentos ou escassa vantagem obrigando a conciliações e acordos nos espaços congressuais e que diluem as características de um governo de esquerda e ficam a mercê de maiorias parlamentares do centro e da direita.

Mais recentemente, o Chile vive também uma rica experiência frentista. A Frente Ampla (Frente Amplio) nasceu em 2017 e hoje é formada por 13 organizações políticas que vão de um pequeno Partido Liberal até organizações marxistas e libertárias.

Sua origem está ligada aos movimentos estudantis e sociais de 2011 na luta por educação pública, laica e gratuita em oposição a herança privatista da ditadura de Pinochet e mantida pela “Concertação” pós regime militar, na transição “lenta e segura” para democracia.

Estes grupos estão representados pela Revolução Democrática (maior corrente da FA), Esquerda Autônoma, Movimento Autonomista e outros.

Uma segunda vertente da FA são os pequenos partidos originários da esquerda sem representação parlamentar no período de transição como o Partido Humanista, o Partido Ecologista Verde, o Partido Igualdade e outros.

A terceira vertente tem origem nos grupos que se formaram a partir de cisões da própria “Concertação” e que encontraram na F.A. a possibilidade da ação política, mesmo sem uma clara definição ideológica no campo da esquerda. Correntes como “Poder” e “Liberal”.

Nas eleições de 2017 evidenciou-se o potencial político eleitoral da Frente Ampla. O candidato da direita Sebastian Piñera ganhou o primeiro turno com 36% dos votos e venceu Alejandro Guillier, candidato da centro-esquerda , nos dois turnos. A grande surpresa da eleição, no entanto, foi o desempenho da Frente Ampla da Beatriz Sanchez que alcançou 20% dos votos no primeiro turno e por pouco não disputou o segundo turno com Piñera. A Frente Ampla elegeu uma bancada de 18 deputados e 1 senador, feito importante na política chilena para uma força claramente antineoliberal, alicerçada nos movimentos reais da sociedade e por fora dos partidos tradicionais.

A mais rica experiência de frente político- partidária com unidade em torno de um programa comum, sem dúvida, é a Frente Ampla Uruguaia. Nascida em 1971, sobreviveu à ditadura (1973/85) e caminha para completar 50 anos, como principal força política do país.

Num país marcado ao longo do século XX por um bipartidarismo hegemônico entre “blancos” e “colorados”, conservadores e liberais, mas defensores da ordem capitalista, o surgimento da F.A. permitiu que o conjunto das forças socialistas, comunistas, nacionalistas de esquerda, democratas radicais, etc..Assumissem um protagonismo crescente que levou a F.A a vencer as eleições na capital e chegar a Presidência da República, várias vezes.

A FA aglutina em torno de um programa democrático, antimperialista, e de reformas e conquistas de direito sociais, em torno de 30 organizações, partidos e movimentos políticos, sem perda de identidade de cada um dos seus membros. Seu enraizamento em todo o país e organismos de base permitem a qualquer cidadão a adesão individual a F.A. sem exigir a filiação prévia a uma das suas organizações.

A complexidade de seu funcionamento com tantas organizações internas também cria problemas, dificulta decisões mais ágeis, gera uma série de instâncias de participação e decisão dos militantes, mas a pluridade é uma educação a tolerância democrática e a unidade uma eficiente resultante na disputa com outros adversários.

Sua longa trajetória possibilitou uma identidade com os setores sociais que representa que vai além do resultado positivo da unidade e força, mas também exerce uma educação pedagógica de identidade de lutas e eleitoral inegável. O sistema eleitoral-democrático do Uruguai ajuda na medida em que fortalece os partidos, as unidades programáticas e o voto em listas partidárias.

O papel educativo na cidadania é muito superior, por exemplo, ao individualismo e caráter corruptor do voto nominal e do financiamento privado praticados no Brasil.

Por fim, não há um “modelo”,um caminho único a buscar para a ação política, mas, uma tendência é nítida : a necessidade de um bloco no campo democrático e popular sob liderança e/ou hegemonia de um núcleo de partidos socialistas e de esquerda.

5. Em busca de uma alternativa

Neste momento é evidente a existência de vários partidos e organizações políticas que se colocam em oposição ao Governo Bolsonaro e aos partidos e entidades que lhe dão sustentação. No Congresso, partidos que votaram contra o impedimento de Dilma, e /ou atuaram juntos nas leis trabalhistas e na defesa da Previdência vem assumindo uma oposição permanente contra o Governo. Esses Partidos: PDT, PT, PSB, PCdoB e Psol assinaram também manifesto de trabalho conjunto de oposição no país. Além desses, há vários movimentos de (re) organização de partidos do campo de esquerda que não possuem representação parlamentar mas estão nas lutas sociais como PCB, PCO, PRC e outros.

Nesse sentido, para potencializar o trabalho de todos, para unificar os esforços no combate a retirada de direitos, perdas previdenciárias, liquidação das empresas e dos Institutos/Universidades públicas, em defesa do SUS, da democracia e da soberania nacional urge que construamos uma unidade permanente dessas forças para fazer frente ao inimigo comum, com as seguintes características:

a) Uma frente política de Partidos e/ou organizações e grupos de esquerda, aberta a participação/adesão diretas de cidadãos (as) que concordem com o Programa e as formas de organização da frente;

b) Um Programa Comum, aprovado consensualmente na fundação da Frente onde se estabelecem os pontos de unidade do conjunto baseado na defesa da Democracia, da Soberania popular e nacional e do anti-imperialismo;

c) Um caráter permanente e de extensão nacional, estadual e municipal, com organismos de Coordenação correspondentes;

d) Uma busca permanente de ação parlamentar e governamental conjunta bem como nas frentes sociais-sindicais já constituídas como a FBP e a FPSM;

e) Proporcionalidade consensual nas coordenações, de acordo com critérios pré estabelecidos nos Estatutos; assim como critérios de proporcionalidade de gênero, de idade e de raça;

f) Seu caráter permanente e de ação comum nas lutas cotidianas do povo brasileiro criará, também condições favoráveis de coesão, confiança mútua e identidade de programa nas disputas eleitorais futuras.

Porto Alegre, setembro de 2019.
Raul Pont é professor, ex-deputado e membro do DN-PT.

                      

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