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O ensino público brasileiro ficou tanto tempo exposto ao descaso que, hoje, não faltam diagnósticos sobre sua situação. A questão, agora, é qual receita adotar para resolver os antigos problemas e fazer da educação a matriz do desenvolvimento nacional
NELSON BREVE
Maria Yara tem 11 anos e chegou à capital do Brasil há cinco. Migrou com os pais e o irmão mais velho de Pentecoste, Ceará. Layse tem 25. Morava com a mãe e uma irmã em Aparecida de Goiânia, cidade-dormitório próxima à capital de Goiás. Mudou para o Distrito Federal este ano para tentar realizar o sonho de ser médica, ainda que lhe parecesse impossível. Maria Yara mora na favela da Estrutural, entre o Plano Piloto de Brasília e Taguatinga. Está na 4ª série da Escola Classe 2, no Guará. Layse mora em uma quitinete, no Gama. Cursa o primeiro ano de Medicina na União Educacional do Planalto Central (Uniplac), uma das milhares de universidades particulares surgidas no país na década passada.
Além de viverem em distantes cidades-satélites do DF, Yara e Layse têm em comum o fato de terem seus estudos ligados a programas do governo federal. A mãe de Maria Yara, a empregada doméstica Hilma Maria de Souza, recebe 80 reais por mês do Bolsa Família. Layse ingressou na sonhada faculdade de Medicina por intermédio do Programa Universidade para Todos (ProUni). O primeiro alcança famílias em situação de pobreza que, em troca do auxílio, mantêm na escola 13 milhões de crianças de 7 a 14 anos. O segundo abriu as portas da universidade para cerca de 250 mil jovens. O curso de Layse custa 2.500 reais por mês e sua renda familiar não chega a 1.500.
O Bolsa Família e o ProUni são trunfos de peso na avaliação positiva do presidente Lula. Começaram polêmicos, mas acabaram bem aceitos pela sociedade por abrir oportunidades para quem se via fora do sistema. “Se não tivesse conseguido a bolsa, desistiria do vestibular”, afirma Layse. “Não tive como estudar e espero que meus filhos aproveitem a chance para melhorar de vida”, torce Hilma, que além de Maria Yara tem Yago, de 14 anos.
Geração perdida
Hilma faz parte de uma geração perdida para o sistema educacional brasileiro. De 1960 a 1991, o país passou de 70 milhões para 146 milhões de habitantes, quase 40 milhões são crianças e jovens em idade escolar (até 25 anos).
A pressão demográfica resultou na expansão da rede privada de ensino básico, criando um sistema perverso de seleção. A concentração de crianças pobres no ensino público – pertencentes a famílias com todo tipo de limitações e dificuldades – reduziu o poder de pressão e de zelo por sua qualidade.
Em outro patamar, o ensino superior tornou-se inacessível para quem estudou na escola pública. De 1981 a 1990, a taxa de matrícula no ensino médio aumentou apenas dois pontos percentuais – de 15% para 17% dos jovens. Enquanto a do ensino superior patinou na faixa dos 8%. A partir da década passada, houve um esforço para estancar essa hemorragia. A taxa de matrícula no primeiro ciclo do ensino fundamental (1ª a 4ª série) cresceu de 86% para 98% das crianças de 7 a 10 anos entre 1990 e 2004 – alcançando a universalização. As matrículas no segundo ciclo (5ª a 8ª) passaram de 40% para 74% das crianças de 11 a 14 anos. No ensino médio, de 17% para 46% dos jovens de 15 a 17 anos.
O custo dessa ampliação do acesso foi, novamente, a perda de qualidade. Três em cada quatro alunos da idade de Maria Yara terminam a 4ª série sem entender o que lêem. Metade não consegue distinguir um triângulo de um círculo.
Pesos e medidas
O Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (NAE) fez uma pesquisa com 37 mil pessoas interessadas na área de Educação. As respostas apontaram para dois grupos de prioridades.
Um é formado por ações de curto prazo para melhoria da gestão nas escolas, criação de um movimento nacional pela qualidade da educação básica, qualificação da formação inicial e continuada dos professores e inclusão digital nas escolas. O outro grupo recomenda medidas para a valorização da carreira docente. “O professor tem que voltar a ser visto como profissão importante”, diz o secretário-executivo do NAE, coronel Oswaldo Oliva Neto, chamando a atenção para o déficit de 230 mil professores na rede pública de ensino básico.
“Todos dizem que o principal problema do país é a Educação, mas ninguém assume compromissos para melhorar o padrão de financiamento”, critica Roberto Leher, especialista da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele lamenta que o governo Lula não tenha derrubado o veto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao Plano Nacional de Educação, resgatando a proposta de elevar para 7% do Produto Interno Bruto (PIB) os recursos da área, conforme defendia na campanha de 2002.
Outros técnicos acreditam que alocar mais recursos não garante qualidade do ensino. “É preciso um novo acordo social que cobre mais dos professores e premie as escolas que apresentem resultados”, propõe o professor Francisco Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais, presidente da Associação Brasileira de Avaliação Educacional (Abave). Ele cita o exemplo das escolas estaduais de Belo Horizonte, que apresentaram resultados melhores que a rede municipal na Prova Brasil do ano passado, embora o gasto estadual por aluno seja 40% menor.
Receitas diferentes
Outra grande divergência entre os especialistas está no modelo de distribuição dos recursos e na definição de prioridades. Uns avaliam que o governo federal deve concentrar esforços no ensino fundamental, como recomenda o Banco Mundial. Outros defendem que o governo federal não pode descuidar do ensino superior.
O governo anterior decidiu seguir a receita do Banco Mundial. Alcançou a universalização das matrículas de 1ª a 4ª série. Mas ao buscar vencer as barreiras da qualidade, da evasão e dos gargalos nos níveis médio e superior, a opção foi pelo estímulo a cursos privados. De cada cinco vagas abertas no ensino superior entre 1995 e 2003, quatro foram em escolas particulares. Isso ajudou a atender parte da demanda, que subiu de 1,8 milhão de vestibulandos em 1992 para quase 5 milhões em 2003.
Só que o Brasil continua longe da meta de ter na universidade, até 2011, ao menos 30 em cada 100 jovens entre 18 e 25 anos. Hoje são dez. O ProUni foi a solução emergencial encontrada pelo governo Lula para acolher parte do excesso de demanda. Até o início de 2008 deverão ser mais de 400 mil os bolsistas. A Rede de Instituições Federais de Ensino Superior também está sendo expandida, com quatro novas universidades, a transformação de seis faculdades em universidades e a ampliação ou instalação de 40 campi. Com isso, o governo espera criar em cinco anos cerca de 125 mil vagas nas universidades federais, alcançando o patamar de 700 mil matriculados.
No ensino médio, a opção do governo tucano foi estadualizar cursos técnicos e estimular a criação de profissionalizantes nas entidades patronais e de trabalhadores. No entanto, o governo federal possui uma rede de cursos técnicos, que ficou congelada na gestão anterior e agora está sendo expandida por decisão de Lula.
Guerra de números
Na campanha eleitoral que está começando, o ex-ministro Paulo Renato pretende ir ao início do governo Lula, mostrar a descontinuidade de seus programas e listar prejuízos para a Educação. Queda nas vagas para cursos universitários noturnos, suspensão de programa de treinamento para 600 mil professores, interrupção da distribuição de livros de leitura para 5ª e 6ª séries, paralisação das obras de mais de 200 escolas técnicas estaduais e comunitárias, troca do sistema de avaliação das universidades (Provão). “Ainda não há resultados da política para as universidades e o governo perdeu o foco no ensino básico”, diz o ex-ministro de FHC e auxiliar da campanha de Geraldo Alckmin.
O governo Lula vai puxar a comparação para mais adiante. O ex-ministro Tarso Genro reorganizou as políticas do Ministério da Educação como um conjunto inseparável – ao que se refere como visão sistêmica. Crescimento acima de 40% nos recursos repassados a estados e municípios pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), aumento de 30% nas verbas para o ensino superior, triplicação dos recursos para construção de escolas e qualificação dos professores, crescimento de 400% nos repasses para transporte escolar, descongelamento e aumento de 36% do volume de recursos para merenda escolar, duplicação do número de municípios beneficiados com repasses para a educação de jovens e adultos.
A disputa espreme o ex-ministro Cristovam Buarque, que foi o primeiro governante a colocar em prática um programa vinculando renda para famílias pobres à exigência de manter filhos na escola: o Bolsa Escola da gestão petista no Distrito Federal. No Ministério, sem alterar a receita de focalizar o ensino fundamental, Cristovam levantou uma cruzada contra o analfabetismo, priorizou um programa de modernização das escolas, propôs a federalização do ensino fundamental e a criação da Lei de Responsabilidade Educacional.
Mas bateu de frente com o corporativismo ao reduzir investimentos nas universidades federais para reforçar o orçamento dos programas pelos quais tinha mais carinho (padronização das escolas do ensino fundamental, certificação de professores, alfabetização de jovens e adultos). “O governo Lula perdeu o vigor transformador. A transformação não é vista por ele e pelos sindicalistas por meio da educação, é vista através da economia. Para o Brasil a Educação não é prioridade, porque a elite já resolveu seu problema recebendo de R$ 2 bilhões a R$ 3 bilhões de abatimento no Imposto de Renda”, sustenta o senador, que é candidato à Presidência pelo PDT.
Ao assumir o Ministério da Educação no lugar de Cristovam, Tarso Genro reorganizou a estrutura interna conforme sua concepção de articulação sistêmica, pacificou a relação com as corporações educacionais e começou a ganhar os embates com a equipe econômica. Genro, que hoje ocupa a Secretaria de Assuntos Institucionais da Presidência da República, considera que a “visão sistêmica” deu visibilidade às políticas de Educação. O acompanhamento da freqüência dos alunos beneficiados pelo Bolsa Família se integra aos programas do ensino básico, que interagem com a educação de jovens e adultos, que é um caminho para a continuidade dos estudos dos recém-alfabetizados e também uma passagem para o ensino médio, que está articulado com os cursos profissionalizantes das escolas técnicas federais e, por intermédio do Enem, possibilita o ingresso na universidade, seja pelas cotas criadas nas instituições federais ou pelo ProUni. “Nós abrimos o sistema para os de baixo”, sustenta Genro.
“Se tivesse que destacar uma só área de prioridade máxima para um próximo governo, eu citaria a Educação”, disse Lula ao oficializar sua indicação para disputar novo mandato. O candidato Geraldo Alckmin também prometeu priorizar a Educação.O que diferencia os projetos é o como fazer. Pelo modo como tratou da Educação no governo paulista, a tendência do tucano é recuperar o programa que vinha sendo tocado pelo ministro Paulo Renato. No caso do presidente, a ordem é radicalizar na visão sistêmica de que o cidadão tem direito a chegar ao topo da escada pela via pública. “A ampliação dos recursos da Educação para 7% do PIB continua uma utopia que pode ou não ser realizada; depende da correlação de forças do próximo governo”, sinaliza Genro, observando que o presidente Lula pretende assentar um possível segundo mandato no tripé crescimento econômico, Educação e Bolsa Família.
A empregada doméstica Hilma Maria de Souza também espera que essa utopia se realize. Assim, Maria Yara poderá alcançar o ensino superior com mais facilidade que Layse.
DESAFIOS URGENTES
Para o economista Sergei Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, as escolas foram muito segregadas na rede pública e não há uma política para melhorar a qualidade do ensino. Segundo Soares, autor de estudos sobre a evolução educacional brasileira, os grandes desafios que o Brasil precisa enfrentar urgentemente são:
1) universalização da pré-escola em áreas urbanas;
2) ensinar melhor para reduzir a repetência no ensino fundamental;
3) expandir o ensino médio sem queda da qualidade;
4) resgatar a geração que entrou no sistema educacional na década de 1980 e hoje tem níveis educacionais que bloqueiam oportunidades no mercado de trabalho;
5) aumentar a oferta de vagas nas universidades públicas e melhorar a qualidade nas instituições privadas.
Colaboraram: Maiana Diniz e Maurício Hashizume, da Carta Maior