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A reforma que (quase) ninguém quer | Leneide Duarte-Plon

Franceses rejeitam nas ruas aumento de idade para  aposentadoria. Bertrand Russell estaria com eles.

O FMI é a favor.

Elon Musk se declarou favorável (há quem pergunte o que ele tem a ver com o assunto).

Macron a deseja ardentemente.

Mas 69% dos franceses rejeitam a reforma da lei das aposentadorias, defendida por Emmanuel Macron durante sua campanha para a reeleição em 2022 e prestes a ser votada na Assemblée Nationale (Câmara dos Deputados).

O filósofo Bertrand Russel também seria contra, como mostro a seguir, citando um de seus livros.

Considerada injusta e desnecessária pelos sindicatos, que desmentem os números apresentados pelo governo, a reforma levou-os a se unirem de forma inédita para combatê-la.

O texto prevê a idade mínima de aposentadoria aos 64 anos (hoje é de 62 anos) para uma carreira completa e pelo menos 43 anos de contribuição, além de extinguir os regimes especiais de algumas categorias, como os empregados da SNCF (estatal dos trens), entre outras.

No dia 19 de janeiro, mais de um milhão de pessoas saíram às ruas das cidades francesas para dizer “não à reforma”, com cartazes que mostravam determinação anti-reforma e anti-Macron.

Na segunda manifestação gigante, dia 31 de janeiro, a multidão que protestou em Paris levou três horas desfilando da Place d’Italie até a Place Vaubin, passando pelo Boulevard Montparnasse, onde pude ouvir um manifestante gritando : “Marchemos em Davos. É lá que se decide. A França é apenas um anexo”.

Elogio do ócio

Evidentemente, Emmanuel Macron não leu o pequeno livro “Elogio do ócio”  (“In praise of idleness”, “Éloge de l’oisiveté”, na edição francesa), do filósofo inglês Bertrand Russel, escrito em 1932.

Como um neoliberal produtivista convicto, ele deve pensar que “o ócio é a origem de todos os vícios“. Não é o que pensa Russel.

Trabalha-se demais no mundo“, escreve o filósofo, acrescentando que ver no trabalho uma virtude é um erro grave.

O caminho da felicidade e da prosperidade passa por uma diminuição metódica do trabalho”, escreve Russel, que já na década de 1930 defendia a semana de 4 dias de trabalho.

Ele acrescenta :  “Nós mantemos uma grande proporção de mão de obra desempregada porque podemos viver sem ela, sobrecarregando de trabalho os restantes“. O filósofo subversivo afirma que os trabalhadores costumam justificar seu trabalho como necessidade de sobrevivência e é dos momentos de lazer e ócio que tiram uma sensação de felicidade.

Mas o mundo capitalista e produtivista quer ver todos cada vez mais ocupados na labuta e não se interessa pela necessidade de lazer ou “ócio”, do latim otium.

Como a esperança de vida com boa saúde é de 64 anos na França  (segundo o Insee, órgão governamental de estatística), pode-se concluir que ao retardar para essa idade a aposentadoria, o governo tira dos futuros aposentados qualquer chance de desfrutar do tempo disponível sem as limitações das doenças incapacitantes que se iniciam.

Contra o aumento de trabalho

O número de manifestantes aumentou em todo o país da primeira (19 de janeiro) para a segunda manifestação (31 de janeiro). Ambas  reuniram franceses de todas as idades, desde estudantes até idosos já aposentados, que diziam manifestar pelas futuras gerações. Foi uma verdadeira maré humana  desfilando por Paris e por dezenas de cidades.

Segundo os cálculos da CGT (Confederação Geral do Trabalho) as diversas manifestações por todo o país no dia 31 de janeiro levaram às ruas 2,8 milhões de pessoas. Calculando para menos, como sempre, o ministério do Interior estimou em 1 milhão e 300 mil manifestantes.

Os números nunca coincidem mas a verdade é que a manifestação de Paris levou três horas passando pelo Carrefour Vavin (Place Pablo Picasso) diante do restaurante La Rotonde, protegido por um dispositivo monumental de policiais CRS, os mais preparados e armados.

Desde que ficou associado à imagem de Macron, que comemorou nele a posição de vantagem no primeiro turno da eleição de 2017, o restaurante La Rotonde já foi incendiado e passou a ser ultraprotegido em cada passeata que desfila por Montparnasse.

Os sindicatos se dizem prontos para a queda de braços com o governo : já anunciaram greve dia 7 de fevereiro e nova passeata antirreforma dia 11, sábado.

Macron e sua primeira-ministra, Elisabeth Borne, prometem insistir no atual texto do projeto de lei, que tem pouca chance de ser aprovado no parlamento onde tanto o bloco de esquerda (Nupes-Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale) quanto a extrema-direita são contra ele.

Quando as greves começarem a parar o país, Macron vai finalmente levar em conta a determinação dos trabalhadores?

Leneide Duarte-Plon é jornalista internacional, moradora de Paris. Autora de livros como A Tortura Como Arma de Guerra (Civilização Brasileira, 2016).

Via Rede Estação Democracia

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