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A revolução omitida: reação antirrevolucionária | Raúl Escalina Abella

Apresentação 

A análise de Raúl Escalora, jovem militante cubano, apresenta um questionamento certeiro à omissão da revolução (palavra e processo histórico) da narrativa capitalista sobre os acontecimentos recentes na ilha. Essa  operação discursiva despolitiza e busca reduzir a complexidade de uma revolução – permanentemente atacada e bloqueada pelo imperialismo – à gramática liberal da gestão governamental. Essa tradução, feita por Lucio Costa, dá sequência ao compromisso da Democracia Socialista com a solidariedade internacionalista e com a construção revolucionária do socialismo em Cuba. Boa leitura.

Tica Moreno

Cuba se apresenta hoje como um grande acúmulo de emergências: bloqueio criminoso ianque, pandemia de Covid-19, crise econômica aguda, proliferação de grupos, agentes e discursos reacionários. Essa combinação fatal serve como base para que nossos inimigos aumentem o desgaste do povo e das forças da ordem interna. Todas as esperanças parecem encerradas para a Cuba revolucionária, para as pessoas que não renunciaram ao socialismo diante do imperialismo e, no entanto, ainda, temos nossas próprias vacinas, nosso índice de pacientes salvos de Covid-19 é um dos mais altos da região e milhares de cubanos saíram às ruas para defender sua Revolução contra a manipulação de realidades complexas que se simplificam não pelo revolucionário discurso, mas sim pelo da reação. As esperanças dos revolucionários, então, perduram.

Desde os distúrbios ocorridos no domingo, 11 de julho, as palavras têm um peso diferente. A imprensa internacional e pseudo-nacional tem falado em “surto social”, de “revoltas”, “protestos” e “manifestações” e tem insistido na “repressão governamental”. Essas palavras denotam uma visão redutora do que aconteceu e revelam uma posição reacionária. O que aconteceu não deixa de ser, em si mesmo — para além de qualquer manipulação— sintoma de uma situação grave e extremamente preocupante, mas faz-se um relato limitado e seletivo que ignora conscientemente uma parte importante da realidade histórica em que se encontram situados esses acontecimentos. Por mais absurdo que pareça, devemos observar que nenhuma mídia reacionária usa a única palavra que qualifica e denota uma mudança libertadora total: “revolução” que, para esse discurso reacionário, segue sendo uma palavra intragável. 

Um dos últimos esforços da intelectualidade reacionária é “demonstrar” a inexistência de uma revolução ainda em curso em Cuba. Portanto, se é verdade, como dizem alguns, que não há mais revolução, deveria ser fácil proclamar uma nova, melhor. No entanto, todo o quadro discursivo da reação, tanto interna como externa, caracterizou o que aconteceu como uma “explosão social”. A imprensa reacionária nem mesmo é capaz de imaginar um ambiente de possíveis transformações pensadas e dirigidas em uma determinada direção, por outro lado, cumpre com a função de desinformar  em estado puro: mostrar multidões contrárias ao governo e protagonista ou vítima de ações de vandalismo contra a polícia e os estabelecimentos públicos e, deturpar o sentido de realidades heterogêneas e superpostas para canalizá-lo em direção a mensagem homogênea da alegada ingovernabilidade do país. 

Segundo disse o companheiro Miguel Díaz-Canel, Primeiro Secretário do Partido e Presidente da República, em seu discurso na televisão nacional em 11 de julho, as manifestações iniciais (em San Antonio de los Baños) poderiam ter contado com o apoio de revolucionários insatisfeitos, mulheres e homens do povo com legítimas preocupações e desconfortos causados por circunstâncias de crise, mas sem qualquer vínculo com redes contrárias à Revolução. Para os revolucionários, este tem sido um ensinamento recorrente e capital: a solução dos problemas da Revolução deve ser alcançada dentro da Revolução, sem ceder nosso poder de mobilização a manifestações, grupos e agentes que buscam pôr fim ao projeto.

A Revolução também tem muito a fazer a este respeito, através da ampliação dos espaços de participação política efetiva do povo, não só na expressão de suas inquietações, mas também e sobretudo na solução de seus problemas. Em suma, as sinceras preocupações daquele grupo de pessoas – onde quer que estivessem – presentes nas manifestações de 11 de julho foram integradas por aqueles que encaminharam o impulso popular para demonstrações de violência e uma ânsia destrutiva carente de conteúdo político e, que se perdia num aparente vazio.

À medida que abordamos suas demandas e slogans, percebemos o vazio que cerca as manifestações e distúrbios. À sua volta, surge a violência purulenta em estado bruto, a destruição corrosiva e o ódio visceral por tudo o que a Revolução representa – material e simbolicamente. Não parece haver nenhum conteúdo claro em tudo isso, além do desejo de que o governo caia, nem mesmo um esboço genérico do dia seguinte a “queda do comunismo”. A mídia reacionária não está interessada em dar um conteúdo original e fundador a esses eventos; é evidente que basta com mostrar violência e destruição. Os “mártires da liberdade” parecem agir apenas motivados por um desejo de aniquilação total, como se espalhassem às cegas fogo em seu rastro, como uma marca que não ilumina nenhuma luta pela independência: uma marca sem ideal, um cataclismo ocioso.

Se nos últimos meses assistimos ao ressurgimento de organizações reacionárias que tentam assumir a liderança da contrarrevolução e do povo para “nos libertar da opressão”, a “eclosão social” de 11 de julho aparece acéfala, não é reivindicada por ninguém, mas pelo contrário, parece o produto da “espontaneidade” popular. Por que grupos de reação contrarrevolucionária como o MSI, 27N, o Partido do Povo Cubano e a União Patriótica de Cuba não estão liderando o momento político que eles mesmos vêm reivindicando e tentando gerar? Por que não existe um programa de demandas claras como aconteceu em outras ocasiões (Grupo dos 30 em 27N, greves de fome de Luis Manuel Otero Alcántara, greves de fome de José Daniel Ferrer)? Por que não há uma posição precisa quanto ao problema da intervenção estrangeira, mas uma flutuação que vai do obscurecimento de seus motivos ao mais feroz e transparente entreguismo?

Ao buscar apresentar os acontecimentos de 11 de julho como “espontâneos”, surgidos do povo e apresentados como um confronto entre o povo e o governo – convenientemente escondidos os conhecidos “Abaixo a Revolução” e “Abaixo Fidel” – e assim dissolver os “elementos contrarrevolucionários’” na massa de “povo cubano”, é razoável pensar que o propósito não era convocar claramente uma revolta social das plataformas tradicionais da contrarrevolução, mas gerar a percepção de que o povo – por sua própria vontade – levantou-se contra o governo (como pode acontecer em qualquer outro país), retirando-se desta forma a Revolução e o socialismo da equação. Assim, o conflito histórico da Revolução com o imperialismo seria neutralizado e desapareceria, por meio de dispositivos discursivos.

Este esvaziamento do político e do histórico, afastadas a Revolução e o Socialismo, esterilizada a história e, transformada a “espontaneidade” em puro confronto governo-povo revela que destes acontecimentos não é possível retirar os primeiros passos de uma nova política e muito menos distinguir uma vontade “revolucionária” de transformação social. No entanto, o aparente vazio permeado pela violência é apenas uma ilusão, pois o que aconteceu é tributário da vontade de gerar uma situação de desgoverno propicia a  uma “intervenção humanitária”, ou de uma intervenção militar preventiva do imperialismo norte-americano. Do contrário, por que não vemos a tentativa de um grupo organizado de tomar o poder e, em última instância, realizar uma revolução conservadora ou uma contrarrevolução anticomunista e pró-capitalista?

Resposta Revolucionária

A resposta revolucionária não pode centrar-se na anulação destes acontecimentos reduzindo-os a atos “típicos dos marginalizados”, porque esta exclusão tem uma história e é produto de bolsões de pobreza que se formaram nas contínuas crises que o país tem vivido desde o Período Especial – somado a problemas não resolvidos antes – e no espaço aberto pelo nítido recuo dos programas sociais da Revolução. Não podemos nos amparar em justificativas imobilistas e reacionárias, mas sim devemos incorporar a virtude e convencer com atos concretos e medidas de benefício duradouro de que somente o movimento histórico revolucionário tem como objetivo o fim das diferenças sociais e a capacidade de alcançá-lo. Não podemos tirar do confronto entre os projetos de nação o que aconteceu há poucos dias (Revolução-Reação; Socialismo-Capitalismo; Anti-imperialismo-Anexação; etc.); esterilizá-lo como simples manifestação antigovernamental é despojá-lo de seu caráter político e de sua condição de síntese prática do que representa a anti-revolução.

A perspectiva anti-revolucionária 

Os protestos têm como base uma ausência mortal de horizonte e desejo de utopia, são alheios a toda ética popular emancipatória e têm mostrado o desenvolvimento de uma  violência destrutiva sem conteúdo aparente cujo resultado tem sido contribuir para a agenda de intervenção estrangeira e, para a divulgação, de um confronto povo-governo. A prática da anti-revolução gera um discurso que não se opõe à Revolução como projeto histórico — o que exigiria reconhecê-la — comprometido com a redenção popular através do projeto comunista de emancipação social, mas a ignora por completo, dissolve-a, subtraindo-lhe de toda realidade e apresentando-a como um estado-governo “normal“, a fim de lhe aplicar toda racionalidade política do liberalismo.

A perspectiva anti-revolucionária tem a intenção de retirar o projeto de sua própria história para colocá-lo em um estado genérico de normalidade em que não há confronto com o imperialismo, não há transição socialista, não há bloqueio, nem movimento emancipatório mas, que , ao contrário, ao retirar  toda essa substância essencial para entender a Cuba de hoje e seus conflitos, deixa em pé apenas o eixo básico “povo versus governo”, operação que lhe permite simplificar a realidade e divulgá-la sob essa imagem reducionista. 

Embora a contrarrevolução se manifeste em oposição à Revolução através do anticomunismo, da restauração capitalista, do conservadorismo e até do terrorismo mais brutal a anti-revolução cubana dessubstancia a Revolução e seu curso socialista para diluí-la em um presumido estado de normalidade “estatal” ou “republicana”. Se trata de uma perspectiva que não assume formas puras, e que nem mesmo é predominante em todos os setores ou discursos da reação, mas seu rastro pode ser seguido desde a vários anos se olharmos de perto, e nesta recente ofensiva reacionária tem demonstrado sua inequívoca presença.

Os protestos recentes permitiram traçar uma demarcação entre três perspectivas, posições ou pontos a partir dos quais se pode exercitar e pensar a reação cubana: a contrarrevolução, a pós-revolução e a anti-revolução. Embora sua exaustiva diferenciação exija um espaço que extrapole os objetivos dessa modesta abordagem, neste texto procuramos mostrar as coordenadas discursivas e práticas da anti-revolução como um conceito crítico que nos ajuda a caracterizar uma posição reacionária que não se opõe à Revolução ou ao socialismo, já que os reconhece como tais (contrarrevolução), nem nega a ausência de uma Revolução em Cuba para se reafirmar como possível solução justa para a situação “totalitária” na qual o Estado é o traidor deformado do que antes fora da Revolução (pós-revolução). A postura anti-revolucionária tem como resultado esterilizar a politica pois a despe do projeto revolucionário e o “governamentaliza” totalmente para o fazer naufragar na racionalidade liberal.

Nas manifestações de 11 de julho, essa perspectiva foi privilegiada pela narração midiática, pela prática dos manifestantes e pelo apoio de um grupo de artistas cubanos. A anti-revolução surgiu diante de nós como a terceira cabeça da hidra reacionária, uma cabeça perigosa porque não atacou diretamente o projeto ou a própria ideia de socialismo, mas antes direcionou sua força para uma “gestão governamental” neutra. A anti-revolução é um gás mortal porque não assume a forma material e direta da reação tradicional, mas não deixa de mover-se dentro dela; diferenciá-la para retirá-la do campo da reação como meras “demandas do povo” é um erro político e ideológico tão sério quanto homogeneizá-lo com a contrarrevolução e a pós-revolução.

A hidra reacionária pode ter cabeças infinitas que atacam nosso projeto de nação com ferocidade de partir o coração; a tarefa revolucionária é criar uma arma para cada cabeça, um antídoto para cada veneno, um bálsamo para cada ferida sem perder de vista que o objetivo não é cortar cabeças, mas enterrar para sempre a monstruosa hidra. (Havana, 21 de julho de 2021)

  • Raul Escalina Abella é estudante de jornalismo e presidente da Federação Estudantil Universitária da Faculdade de Comunicação da Universidade de La Habana. 

MSI :Movimiento San Isidro contrarrevolucionário criado em 2018 em La Habana. 

27N:  Movimento contrarrevolucionário cujo nome evoca um protesto realizado 27 de novembro 2021 diante da sede do Ministério da Cultura de Cuba.

Artigo publicado em http://www.cubadebate.cu/especiales/2021/07/21/la-revolucion-omitida-reaccion-y-latencias-anti-revolucionarias/

Tradução e notas: Lucio Costa

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