A Revolução Russa e os ecos do impossível

Erick Kayser

Em tempos como os nossos, marcados pela crise da hegemonia neoliberal, pelo avanço de autoritarismos e pela ressurreição de variados fascismos, imaginar uma revolução proletária parece quase uma ficção. Um gesto tão improvável quanto um lampejo de utopia no meio da longa noite do capital. E, no entanto, há pouco mais de um século, em 7 de novembro de 1917 (ou 25 de outubro pelo antigo calendário juliano vigente na Rússia czarista), os bolcheviques tomavam o Palácio de Inverno e inauguravam uma nova era. Essa diferença de datas, de calendários, é também simbólica: marca a defasagem entre o tempo do mundo e o tempo da revolução, entre a ordem estabelecida e o instante em que tudo se desencaixa.

Contrariando a mitologia cinematográfica consagrada por Eisenstein, a tomada do Palácio de Inverno não foi uma batalha épica, mas um ato simbólico quase protocolar. Quando os guardas vermelhos invadiram o edifício naquela noite fria de outubro, a vitória da revolução já estava assegurada há dias. Os soldados que ainda defendiam o governo provisório de Kerensky eram poucos e desmoralizados; a resistência foi mínima. O verdadeiro assalto ao poder havia sido planejado e executado por Lênin semanas antes. Curiosamente, pouco tempo antes do início da revolução, o líder bolchevique teve de enfrentar a hesitação e o medo de seus próprios camaradas. Boa parte da direção bolchevique, incluindo figuras como Zinoviev e Kamenev, considerava a insurreição prematura, aventureira, fadada ao fracasso. Foi a obstinação de Lênin, sua capacidade de enxergar o possível no meio do caos, que transformou o outubro russo em Outubro.

Pela primeira vez na história, as ideias de Marx deixavam de ser teoria crítica para se tornarem programa de governo. A Comuna de Paris havia sido breve e sufocada em sangue; as revoluções burguesas do século XIX haviam traído suas promessas igualitárias. A Rússia de 1917 inaugurava algo radicalmente novo: um Estado operário, o poder soviético, a tentativa de construir uma sociedade sem classes dirigida pelos próprios trabalhadores. O jornalista americano John Reed, testemunha ocular daqueles dias extraordinários, escreveu o clássico “Dez Dias que Abalaram o Mundo”, cujo título não era um exagero, mas constatação factual. O mundo, de fato, tremeria.

O impacto da revolução foi imediato e profundo. Nenhum canto do planeta permaneceu intocado. Movimentos operários, anticoloniais e socialistas encontraram novo fôlego; o horizonte da emancipação parecia, enfim, tangível. O escritor austríaco Stefan Zweig, em suas memórias melancólicas de “O Mundo de Ontem”, capturou perfeitamente aquele zeitgeist: “A Revolução Russa parecia a todos os jovens o mais belo sonho da humanidade, a grande virada para a paz e a justiça, para a fraternidade universal”. Uma nova ordem que se abria, a promessa de um novo amanhecer, uma resposta utópica ao desespero e à barbárie.

A Rússia possuía, contudo, singularidades que tornaram possível o que parecia impossível. Como lembra China Miéville em seu romance Outubro, a revolução de 1917 foi precedida por um longo aprendizado. Havia, primeiro, o ensaio geral de 1905: uma revolução frustrada, é verdade, mas que criou os sovietes, os conselhos operários que seriam a estrutura organizativa de 1917. Havia, crucialmente, o colapso catastrófico da Primeira Guerra Mundial: milhões de camponeses russos foram enviados para morrer nas trincheiras por objetivos imperialistas incompreensíveis, corroendo fatalmente a legitimidade do czarismo e depois do governo provisório. E havia, finalmente, o Partido Bolchevique: pequeno, mas disciplinado, teoricamente sofisticado, capaz de conectar as demandas imediatas das massas (paz, pão e terra) com um projeto revolucionário de longo prazo. Essa combinação única — crise terminal do regime, mobilização popular espontânea e partido de vanguarda — criou a tempestade perfeita.

Mas mesmo os sonhos mais luminosos também projetam longas sombras. Após a morte de Lênin, em 1924, a ascensão de Stálin converteu o ideal de emancipação em um sistema de controle e medo. O terror stalinista, com seus expurgos, julgamentos grotescos e sobretudo os Gulags, que eram arquipélago de campos de concentração que engoliram milhões de vidas, mancharam de sangue a utopia bolchevique. No entanto, seria um erro ignorar os avanços sociais colossais promovidos pela União Soviética. Uma nação agrária e analfabeta transformou-se numa superpotência mundial que, em poucas décadas, erradicou o analfabetismo, promoveu o acesso universal à educação e à saúde, garantiu direitos inéditos às mulheres e levou o primeiro ser humano ao espaço. Esta dialética entre o progresso social inegável e a opressão política brutal é o legado complexo e doloroso da experiência soviética.

A história, felizmente ou não, como sabemos, não se repete. O modelo soviético, com sua rigidez e suas contradições, pertence ao século que o produziu. Mas o gesto de Outubro permanece como lembrança incômoda de que o mundo pode ser virado do avesso. Hoje, em meio ao cinismo neoliberal e à sensação de fim de alternativas, a revolução dos bolcheviques nos recorda que a transformação não é uma quimera, mas uma possibilidade. Este exemplo histórico se renova como um convite à ousadia, que ganha contornos de urgência frente à inevitabilidade que o capitalismo nos conduz em direção ao colapso ecológico e à barbárie social. A sua ousadia permanece como um desafio silencioso às nossas certezas resignadas.

Erick Kayser é historiador e Secretário-geral do PT de Porto Alegre.

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