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A roda gigante da violência | Luiz Marques

Grosso modo, a agressão se divide em dois campos: i) por parte do Estado, que detém o monopólio da repressão policial-militar, é denominada “um ato de força” e; ii) por parte do cidadão, que atenta contra a propriedade privada, a liberdade ou a vida é chamada de “violência”. Ambas as definições referem-se à legitimidade moral e legal de uma ação.

A violência é constitutiva (acumulação primitiva) do capitalismo. “A situação miserável da classe operária não devia ser procurada em males isolados, mas no próprio sistema capitalista”, escreve o jovem Friedrich Engels, no livro Situação da classe operária na Inglaterra, em 1845. Era a tirania do capital que iniciava sua aventura, a bordo do deixai-fazer: salários irrisórios, jornadas de trabalho extenuantes de 16 horas, exploração de mulheres e crianças.

No nazifascismo, a violência vincula uma política de identidade ao sentimento de pertencimento a um grupo, sejam os Sturmabteilung nazis, os camicie nere da Itália fascista, os camisas azules da Falange Espanhola, os camisas verdes do Integralismo brasileiro ou os camisas amarelas do cruento bolsonarismo. Hostilidades aos artistas, jornalistas e professores tornaram-se corriqueiras a partir do impeachment (2016) que instalou o neoliberalismo duro no país. Vide as reformas previdenciária e trabalhista, o teto de gastos públicos, a lei das terceirizações, a internacionalização do preço dos combustíveis, o fatiamento da Petrobras, a autonomização do Banco Central no controle da política monetária, o recrudescimento do processo de desindustrialização.

À época, se alguém por inadvertência passasse perto de uma manifestação da extrema direita corria o risco de linchamento. A estudante universitária que num domingo de sol pilotava a bike com uma camisa vermelha, ao estilo do grande herói de dois hemisférios, Giuseppe Garibaldi, foi agredida ao se deparar com a aglomeração de zumbis entorpecidos de preconceitos. O passaporte para o passeio no findi havia adquirido a cor do canarinho, e não a que trajava. A roda gigante da violência girava num ritmo alucinante, com a energia de séculos de dominação.

O antiintelectualismo

O antiintelectualismo é o produto da redução da política a um militontismo alienante. Ao descartar a inteligência para enaltecer as emoções, o que sobra é a atividade rasteira da desrazão como critério de performance na luta de classes. Fato que explica o nome belicoso (“combate”) dado por Benito Mussolini ao movimento Fasci Italiani di Combattimento (1919), convertido no Partito Nazionale Fascista (PNF, 1921). Coisa que, – por incompetência – o discípulo miliciano da Barra da Tijuca não logrou realizar, embora tivesse em mãos a poderosa caneta Bic.

“Ao ouvir falar em cultura, puxo o revólver”, “Este homem é perigoso, acredita no que diz”, “Uma mentira contada mil vezes torna-se verdade” são frases de Joseph Goebbels, ministro da Informação e da Propaganda da Alemanha nazista, braço direito de Adolf Hitler. As assertivas adaptaram-se à tragédia do Brasil, no período recente. A prática operacional do novo fascismo reverbera o fascínio pela violência ao refutar a ideia de política, da Antiga Grécia, de que a persuasão e o convencimento deviam buscar a verdade com a palavra, e não com a falsidade.

A invasão terrorista incentivada por Donald Trump ao Capitólio, em Washington, no 6 de janeiro de 2021, e a depredação por vândalos das sedes do poder republicano, alimentada ao longo do mandato do inelegível, em Brasília, no 8 de janeiro de 2023, têm em comum a frustração com a expectativa de desencadear um irresistível movimento negacionista do regime democrático, nos Estados Unidos e no Brasil. Por metonímia, imaginaram encarnar a nação. A disponibilidade subjetiva para atender a uma convocação para um conflito anunciado separa o simpatizante, do combatente. Ignorar a nuance compromete as ilusórias estratégias de mobilização.

Os partícipes do golpismo tiveram um gozo não compartilhado pela totalidade dos eleitores do populismo extremista. Na urgência, os estrategos confundiram a dinâmica da base radical com a “vontade geral” rousseauniana. São coisas distintas. Tivessem acertado o prognóstico, a história teria parido o totalitarismo e globalizado palhaços sociopatas.

Culto da ação pela ação

Para Umberto Eco, a rejeição ao modernismo, a mistificação da tradição e o culto da ação são traços incontornáveis do fascismo, tanto o velho quanto o novo. O antimodernismo resulta da decepção com o império da tecnologia que não garante empregos e rebaixa salários; o amor à tradição é uma reação ao feminismo, ao black lives matter e à homoafetividade; e, o ativismo, é uma resposta ao fracasso das teorias iluministas para revolucionar o mundo.

Nos anos 1930, as células comunistas reuniam-se para debater a conjuntura e a linha de atuação, afora distribuir tarefas postas pelo comitê central. Já enclaves fascistas, ontem como hoje, ao invés de encontros para discussão, reúnem-se para atacar propriedades, cercear liberdades públicas e surrar inimigos da causa autoritária. Marcelo Arruda, diretor do Sindicato de Servidores Municipais de Foz do Iguaçu (Sismufi), assassinado no dia do aniversário pelo ódio de um direitista armado, foi mais uma vítima da irracionalidade dos patriotas postiços.

As agressões do poder vão além dos mecanismos legítimos para a repressão. Também ocorrem pela identificação com um líder carismático ou então por um apego emotivo à simbologia emblemática da comunidade política (a bandeira, o hino nacional). Sem o que não se viabiliza a arregimentação para as demonstrações de potência, em passeatas e concentrações.

A guerra não é a continuação da política por outros meios, conforme pensava Carl von Clausewitz. Ao abdicar do discurso como instrumento para formação de consensos, a autoridade do argumento cede lugar ao argumento da autoridade imposto por um ato de força do Estado. Ora, trata-se aí da troca de um paradigma civilizacional, não de um método apenas.

Alexandre de Moraes/TSE

A violência sobre Alexandre de Moraes no aeroporto conjuminou uma agressão verbal (contra o ministro e a família) e a agressão física (contra o filho). Juridicamente, implicou uma coerção dirigida ao responsável por decisões relevantes para o futuro da República, na Suprema Corte e, em especial, na presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Com óbvia intenção provocativa, a atitude do empresário de Santa Bárbara d’Oeste/SP forçou o titular do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, a julgar a natureza da cena “uma ameaça às funções constitucionais e ao Estado de direito democrático”. A consequência expõe os autores aos rigores da legislação. Incivilidade não tem perdão.

A moda não começou com a ascensão do Bozo. Antes, com a benção da Lava Jato e da Rede Globo, os progressistas foram submetidos a um linchamento social sob a acusação de corruptos. Ricardo Lewandowski era xingado (sic) de garantista. A justiça regredira à Idade Média, onde a suspeição já significava meia culpa, pela presunção de culpa. A Idade Moderna funda a presunção de inocência, até prova em contrário e uma sentença em última instância.

Michel Foucault, em Vigiar e punir, no capítulo “Os recursos para o bom adestramento”, debruçou-se sobre o tema no contexto da modernidade. “O castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios. Deve, portanto, ser essencialmente corretivo. A punição disciplinar é, em parte, isomorfa à própria obrigação; ela é menos a vingança da lei ultrajada que sua insistência redobrada. O efeito corretivo que se espera de maneira acessória passa pela expiação e pelo arrependimento”. Bem-vindos os que chegam atrasados à sociabilidade democrática.

Para uma agenda positiva

A pergunta é: como enfrentar a violência quando quase metade da população, de acordo com as pesquisas, se espelha na ultradireita cujo prócer perverso venceu uma eleição presidencial acenando o gesto da arminha para lidar com a oposição antifascista? Aberta a Caixa de Pandora, inocentes morreram em abordagens da Polícia Rodoviária Federal (PRF) asfixiados em gás lacrimogêneo, no porta-malas de uma viatura da corporação – impunemente. Para impedir o alastramento do habitus da selvageria na sociedade, urge construir a agenda positiva.

Primeiro, defender uma governança que não se limite às “normas procedimentais” (Alain Touraine) ou às “regras do jogo” (Norberto Bobbio), e não fique de costas para a “questão social” qual os liberais clássicos fizeram e os neoliberais fazem. A saber, uma governabilidade sadia que promova políticas (re)distributivas. Segundo, defender a educação pública gratuita e de qualidade em todos os níveis, e o aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS), para revalorizar o conhecimento e a ciência em áreas sensíveis à percepção do povo trabalhador.

Terceiro, defender o ambiente natural e para superar a crise climática medidas que interpelem a sensibilidade ecológica da juventude. Quarto, defender a igualdade de gênero, de raça e dos grupos LGBTQIA+ para conferir concretude ao conceito de democracia “como um processo cumulativo de valores civilizatórios” e, junto, assegurar “o direito a ter direitos” (Claude Lefort). Quinto, defender a presença dos indivíduos na vida pública via o Plano Plurianual Participativo (PPA), na libertadora transição “de consumidor a cidadão” (Albert Hirschman).

Esse é o programa capaz de parar a roda gigante da violência. Punições severas às ações diretas, sem mediações institucionais, da extrema direita são necessárias. A iniciativa do governo Lula de elevar as penas é oportuna, dialoga com a noção de que “a lei é para todos”. Mostra o panóptico estatal (que tudo vê, como o olho de Deus) ativo. Valha para desvendar o mandante da execução covarde de Marielle Franco e Anderson Gomes, no triste 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro. Porém, é insuficiente. Ao par disso, é preciso cortar pela raiz as condições sociais que levam a ideologia do neofascismo apoiar-se na violência. Capisci?

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFGRS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

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