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A sagração da dor

 

Na pequena cidade de Alagoinha, Pernambuco, distante cerca de 230 km de Recife, uma menina de nove anos que era vitima de reiteradas violações de seu padrasto ficou grávida de gêmeos. O estuprador teve decretada sua a prisão.

LUCIO COSTA

Em que pese o aborto em regra ser criminalizado em nosso país, a legislação brasileira o permite nos casos de casos de gravidez de risco ou quando a gestante foi vítima de estupro.

O caso da menina pernambucana se adequava nos dois casos, já que a gravidez de fetos gêmeos também colocava sua vida em risco, pois ela pesa apenas 36 kg e mede 1,36 m.  Por seu muito pequena, ela não tem estrutura física para suportar a gravidez. Em razão do risco de morte da menina a gestação da menor foi interrompida no dia 04 de março, às 10h da manhã.

Diante deste fato, a reação do arcebispo católico de Olinda e Recife foi à excomunhão da mãe da criança e dos médicos responsáveis pelo procedimento. O Vaticano ratificou a decisão do arcebispo.

O Vaticano e o arcebispo tentaram impor que a menina de nove anos desse à luz, o que poderia provocar sua morte, para nascerem os gêmeos concebidos de um estupro, que seriam provavelmente órfãos de mãe e filhos de um estuprador na prisão.

É possível refletir sobre este caso enfocando distintos temas. Em geral a grande imprensa, talvez para esquivar-se de debater o tema do aborto no Brasil, centrou sua cobertura na discussão sobre a excomunhão em si mesma.

É de registrar, que a abordagem acima referida permitiu, ante a reação indignada de amplas parcelas da opinião pública, que o arcebispo de Olinda e Recife, quiçá buscando ofuscar sua responsabilidade, afirmasse que ele não havia decretado a excomunhão, pois nestes casos esta seria automática.

Um dos aspectos que merece uma reflexão mais detida é o caminho que trilharam o Vaticano e o arcebispo diante do sofrimento da menor, de sua mãe e sua família.

O ato de excomunhão da mãe da menor estuprada e dos médicos choca por, na contramão do dever mínimo de acolhimento para com a tragédia pessoal daquelas pessoas, da vontade de minorá-la, de participar solidariamente da infelicidade alheia, haver acrescentado a dor que já sofriam a mãe e sua filha o sofrimento provocado pela condenação e rejeição do arcebispo e do Vaticano.

Frente à realidade do sofrimento daquelas mulheres, da mãe e da menina estuprada, a reiteração mecânica dos dogmas, que levaram a uma “excomunhão automática”, materializaram um alheamento com a compaixão e a piedades cristãs, com o respeito à dignidade da vida humana das filhas de Deus.

Em nome de “princípios intransigentes, duros, violentos e nada amorosos”, como já havia feito as vésperas do Natal de 2008, quando o papa Bento XVI – contribuindo com a opressão e o sofrimento de milhares de cristãos e cristãs homossexuais e lésbicas – declarou que a “a homossexualidade e a transexualidade afastam os homens da obra do criador”, uma vez mais a hierarquia católica deu as costas aos oprimidos, aqueles que sofrem.

Alienada ante o sofrimento daquela de mãe e sua filha, de todas as mulheres e homens com elas solidários, o arcebispo e o Vaticano optaram julgar desfavoravelmente ao próximo e seu sofrimento. Desta forma, ante o ídolo de sua própria “lei”, no altar de seus dogmas consagraram a dor, o sofrimento e a exclusão do outro.

Por fim, caberia perguntar, como o fizeram as Católicas pelo Direito de Decidir em sua manifestação pública sobre o episódio: “Seria possível imaginarmos o que Jesus Cristo diria a essa menina? Seria ele intolerante, inflexível e cruel a ponto de dizer a ela que sua vida não tem valor? Ou ele a acolheria gentilmente, procuraria ouvir sua dor e a acalentaria em seu sofrimento? Será que ele defenderia que ela sofresse mais uma violência ou usaria sua voz para gritar contra os abusos que ela sofreu?”.

Lúcio Costa é advogado.

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