Éric Hobsbawm *
Outra vez, estamos diante de uma crise fundamental do capitalismo. Evidentemente, o laissez-faire sempre foi o princípio fundamental do capitalismo, chamado também de livre mercado, de não intervenção política no mercado, ou livre movimento dos diferentes fatores econômicos. Esse princípio já estava globalmente generalizado na metade do século XIX.
A novidade desde os anos 70, no meu modo de ver, é que a economia mundial se globalizou, não só porque as divisas ou outros meios financeiros foram negociados internacionalmente como antes, assim como importações e exportações, mas sim porque também a produção sofreu um giro internacional e/ou multinacional. Apesar de tudo, a novidade não foi a volta do laissez-faire, o livre mercado, mas sim, a forma como ele reaparecia, convertido em um novo dogma.
A maioria dos economistas não acreditava que o capitalismo se desenvolvia a partir de uma crise constante. Acreditavam que o livre mercado sempre resolve racionalmente os problemas que cria. Consequentemente, supunha-se que se generalizaria não apenas um crescimento econômico máximo, como também um bem-estar máximo do conjunto da população. Os seres humanos são indivíduos e agentes racionais num mercado que tem sua própria racionalidade. Por isso, não deveria haver dificuldades, não fosse a intervenção dos Estados, dos políticos ou de outros atores de fora do mercado.
Parece inacreditável, hoje, mas é fato que a maioria dos economistas acreditou nisso, fervorosamente, durante mais de 30 anos. Ademais, venderam como receita política.
Creio que é justamente por isso que a crise atual pareceu surpreender a todos. Não por ter chegado, mas pelo momento em que se deu. Era bastante evidente que o modelo de desenvolvimento que havia não poderia durar eternamente, mas quanto tempo duraria não era previsível. O desaparecimento da União Soviética, provavelmente, prolongou essa tendência e facilitou o trajeto pelo qual a maioria dos países caía no programa neoliberal.
A saída da crise
Toda essa gente, hoje, não tem uma solução nas mãos. Sabem que chegaram ao seu limite, sabem que o mercado puro e livre não pode funcionar mais tempo assim – e tudo isso sem falar na questão ecológica!
Agora é fato que os governos têm que intervir, mas não sabem como, se a única coisa que eles têm nas mãos é o recurso que ensaiaram nos anos 30, e que, mesmo então, não teve êxito imediato. A crise econômica mundial que se instalou em 1929 durou uns tantos anos. Depois de tudo, foi a guerra que terminou com ela, e não a possibilidade de evitar a guerra.
Se hoje em dia vivemos uma crise semelhante, ela não se acabará no próximo ano ou no seguinte, ainda que a situação melhore algum dia, assim como depois de 1932 melhorou em âmbito mundial.
Mas para uma mudança de direção permanente, no sentido de uma nova economia mundial, será preciso muito tempo, e isso se complica ainda mais pela situação internacional. Macabramente, isso era diferente nos anos 30, já que havia internacionalmente um programa para a solução da crise: a preparação da guerra.
Hoje em dia, não é esse o caso. A forma que terá o mundo depois desta crise segue sendo algo bastante incerto.
As grandes crises que houve não são similares. A primeira, do fim do século XIX, desde a perspectiva moderna, não era uma crise, exceto para a agricultura e para os setores cujos preços caíram em decorrência dela. Os preços caíram um terço, e a agricultura era, nesse momento, claro, uma parte muito importante de todas as economias. Por outro lado, o mercado mundial e os investimentos estavam seguindo adiante, a produção aumentou enormemente. E mais: esse foi o momento em que a indústria da Inglaterra se expandiu pra outros centros. O que então fazia com que economistas como Marshall fossem pessimistas era a queda de preços, dos rendimentos e juros. Nessa situação, não se sabia como poderiam voltar os “bons tempos”. Claro que também nessa crise quem pagava era quem sofria e passava aperto.
A terceira das grandes crises, que enfrentamos hoje, está se desenvolvendo numa situação global muito diferente. Em primeiro lugar, a economia mundial se deslocou fortemente. Os centros ocidentais ainda são muito importantes. Têm um capital imenso, quase garantido, não só industrial, mas também de formação e mentalidade, e ademais, seguem sendo os com mais riqueza per capita. Mas o grande problema da nova crise é a retirada relativa dos grandes centros pelo deslocamento da produção e também dos serviços de alta qualidade para outros países. Creio que, para muitas pessoas, nos países ocidentais, as perspectivas para o século XXI são muito menos otimistas que do que para as populações dos grandes países em desenvolvimento no Oriente. É possível que não haja colapso, mas o fato da retirada, e isso também vale para a Europa, não se pode negar. Inclusive, é certo para os Estados Unidos.
Desdobramentos
Qual será o impacto político? Esse é o grande problema. A esquerda, cuja base social era a classe trabalhadora, praticamente já não existe nos países desenvolvidos.
O Brasil é um exemplo muito bom de um movimento que, para mim, como historiador, lembra-me muito o fim do século XIX na Europa: existe um vínculo entre o movimento operário das grandes indústrias com o de outros trabalhadores, com ideologia de esquerda, inclusive com os intelectuais, que dá lugar a um partido de massas. Esse, ao final, consegue levar seu principal líder ao poder, o qual é um dos poucos que foram, originalmente, de fato, proletário. Pode-se criticar muito o Lula, mas ele se corresponde com as esperanças que surgiram então na Europa. Isso não é revolucionário, mas também não o foi grande parte do movimento proletário na Europa. Queriam algo melhor que o capitalismo, mas a revolução no velho sentido não estava na ordem do dia no ocidente, nem na Europa central ou oriental, pelo menos, desde meados do século XIX. De todo modo, existe ainda um movimento de trabalhadores, mas a novidade é que a ideologia de esquerda, a ideologia originária do Iluminismo, de melhorar o ser humano e o mundo, essa ideologia teoricamente universal se viu seriamente afetada, assim como a base de massas desse movimento, e já não existe. Nem em sua forma comunista, nem na social-democrata – devem-se tratar ambas igualmente. Falou-se da crise do comunismo, que obviamente chegou ao seu final com a queda da União Soviética, mas a crise da social-democracia foi igualmente profunda e de fato ainda perdura.
E qual o resultado de tudo isso? Essas forças já não podem ser hegemônicas – mesmo que alguns partidos que haviam sido criações socialistas ainda existam, eles mudaram totalmente. O novo trabalhismo já não é o trabalhismo. Em alguns países, como a Alemanha, a tradição da social-democracia não se desenvolveu tanto quanto na Inglaterra, mas lá também mudou radicalmente. Contra tudo isso, vêm esses novos fenômenos: tenho medo porque, nos anos 30, não foi a esquerda a beneficiária da grande crise em boa parte da Europa, e sim, o contrário. Com exceção dos Estados Unidos, que giraram, naquele tempo, relativamente à esquerda, houve uma retração de toda a esquerda na Europa frente à ascensão do fascismo, de um movimento fascista que não podemos negar que tinha uma base social de massa. Assim era não só na Itália e na Alemanha, mas em países menores também. Disso, tenho medo.
Trata-se de movimentos que, em tese, não estão vinculados ao livre mercado. Nos últimos 50 anos, o conservadorismo e o livre mercado se aproximaram tanto que, nos Estados Unidos e na Europa, chegaram a ser praticamente a mesma coisa. Os conservadores são gente que insiste no livre mercado. Mas esse não é o caso da extrema direita, que não tem medo de romper tabus. A isso se acrescenta a insegurança total da ordem mundial.
Portanto, a curto prazo, não sou muito otimista. No transcurso dos próximos 20 ou 30 anos, será gerado um novo sistema mundial, assim, o capitalismo poderia continuar funcionando outros 30 ou 40 anos até que suas contradições internas se desenvolvam outra vez – a não ser que, enquanto isso, aconteçam catástrofes, o que nunca é impossível. Mas o que acontecerá com os interesses sociais das populações e dos povos, isso, absolutamente, não está claro.
De todo modo, pelo que sei, não há sociedade em que não exista o conceito de injustiça. Por isso, não deveria haver nenhuma em que pessoas não se indignem contra ela.
* Esse texto é parte de uma entrevista publicada na revista espanhola “El Viejo Topo” (www.elviejotopo.com) em dezembro de 2009. Originalmente publicada em alemão, no livro Zwischenwelten und Übergangszeiten. Interventionen und Wortmeldunge (traduzindo para o português, “Mundos Intermediários e Períodos de Transição. Intervenções e Mensagens.”), que contém artigos e entrevistas de Éric J. Hobsbawm e foi editado por Friedrich-Martin Balzer e Georg Fülberth, editora PapyRossa Verlag, Colônia, Alemanha.Tradução de Alessandra Terribili.