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A Terra é redonda | Luiz Marques

Nesse país, o tempo político passa rápido. Ainda ontem, a Rede Globo e o Judiciário erigiam o heroísmo da Lava Jato (operação de lesa-pátria mancomunada com interesses dos Estados Unidos) por fazer o serviço sujo de criminalização do PT, com convicções e nenhuma prova contra a organização político-partidária como tal. Idem, no que concerne ao grande líder popular da história do Brasil, cujos processos judiciais fruto da quebra de dispositivos constitucionais, ilegalidades várias e uso espúrio do lawfare foram desmascarados, conforme anteciparam ilustres juristas. Considerado “o melhor chanceler do mundo” pelo especialista em relações internacionais Daniel Rothkopf (Foreign Policy, outubro 2009), Celso Amorim está certo ao afirmar: “Lula é inocente. O resto é imaginação e calúnia.” À parte bolsões de fake news, ninguém hoje discorda. A verdade venceu.

Foram anos de massacre midiático-judicial a contaminar a percepção da opinião pública sobre a esquerda e desconstruir as conquistas sociais dos governos, sob responsabilidade do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). O antipetismo militante que resultou da máquina de destruição de reputações individuais e coletivas, sem o devido contraditório, ajudou a destampar o esgoto da política brasileira, donde saíram Bolsonaro e o bolsonarismo.

No sete de setembro, contudo, viu-se a Globo News acompanhar os eventos neofascistas em verde-amarelo, aliás, em muito menor número do que o esperado pelos organizadores, com a seguinte legenda: MANIFESTANTES COM PAUTAS ANTIDEMOCRÁTICAS. É vero. Mas as pautas em alusão sempre estiveram na agenda do idólatra de covardes torturadores, nos vinte e sete anos de mediocridade parlamentar de quem fez da representação em casas legislativas um negócio para enriquecimento da “familiciana”, às custas do erário.

O Judiciário, dos guardiões da Constituição (Supremo Tribunal Federal / STF) ao pilar básico do Estado de Direito Democrático (Tribunal Superior Eleitoral / TSE), percebeu o erro cometido por indução do clima que ajudou a recender um machartismo tropical contra os críticos das desigualdades sociais. A tempestade iniciou com a denúncia que apontou Roberto Jefferson, no longínquo 2005, no esquema de corrupção nos Correios e no Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). O fantasioso Mensalão foi o subterfúgio arranjado pelo boquirroto condenado e, ainda!, presidente do PTB, para aliviar as acusações que pendiam sobre sua cabeça e converter em alvo a agremiação petista. A manobra diversionista foi bem sucedida, pois correspondeu às expectativas das elites econômicas e do Jornal Nacional.

O espetáculo de horror oferecido ao mundo, com o grau de degenerescência moral a que se chegou sob o desgoverno em curso, só foi possível porque o ajuste de contas com o golpe civil-militar, da década de 60, deixou incólumes os protagonistas com uma anistia à medida para salvar os mentores intelectuais do Estado de exceção, criado com a deposição do presidente das inconclusas “reformas de base”, João Goulart. Mentores que se abrigavam no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC) e Escola Superior de Guerra (ESG), consentâneo estudo de René Armand Dreifuss (1964: A Conquista do Estado, Vozes, 1981).

Os executores, por igual, foram denunciados no magnífico esforço de investigação que culminou na publicação prefaciada por Dom Paulo Evaristo Arns (Brasil: Nunca Mais, Vozes, 1985), mas não foram condenados pelos crimes de lesa-humanidade. A anistia, de mão dupla, que equiparou a resistência de indivíduos às atrocidades praticadas pelo próprio aparelho de Estado, empurrou as barbáries em série (prisões, torturas, assassinatos, desaparecimentos) para debaixo do tapete. Há relatos pungentes legados sobre o período, qual o do jornalista Flávio Tavares (Memórias do Esquecimento, Globo, 1999). A impunidade encorajou os espíritos pusilânimes, agora, na via autoritária do neofascismo.

O discurso de Dilma Rousseff, como Chefe de Estado, no Primeiro de Maio de 2012, foi o estopim para o rompimento da aliança de classes pactuada com a Carta ao Povo Brasileiro (junho 2002) lançada por Lula da Silva na campanha eleitoral que o levou ao Palácio do Planalto. No pronunciamento, a presidenta ressaltava que os juros cobrados pelo setor financeiro eram superiores aos de outros países e as altas taxas dos bancos oneravam as pessoas físicas e as empresas. Coisa que limitava o crescimento do mercado interno, logo, o desenvolvimento industrial, a distribuição de renda e a geração de empregos. A fala, que evocava Canaã, foi interpretada como voluntarista e sem respaldo na sociedade civil.

O sociólogo Marcos Coimbra, em um artigo intitulado Os Liberais e os Juros (Correio Brasiliense, 06/05/2012), a propósito, comentou que a reação dos jornalistas defensores do princípio do laissez-faire do livre-mercado, em oposição a qualquer intervencionismo estatal, foi mais célere que os banqueiros e rentistas na denúncia da ingerência tida por heterodoxa pela tradição firmada no Consenso de Washington (1989). Os noticiários se comportaram mais realistas do que o rei. Deus perdoe os filisteus do neoliberalismo.

Não obstante, em política o correto não é apenas questão de conteúdo, depende da forma como se constroem os consensos majoritários. Assim, o pacto com o andar de cima começou a ruir. Com os porões das delegacias de polícia e os jagunços armados e fardados, treinados em matanças de inocentes nas periferias, tipo a ocorrida no mês de maio do corrente na comunidade de Jacarezinho/RJ, – o rompimento começara com a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011, que entregou o Relatório Final em 2014. O Brasil foi a última nação a tomar iniciativa, no intuito de trazer à lume acontecimentos que a democracia não deve esquecer para que não se repitam, embora com atraso de três décadas e resultados tímidos, se comparados aos alcançados na África do Sul, Argentina ou Uruguai. Bastou para excitar a extrema-direita contra o suposto “revanchismo” das forças democráticas. O obscurantismo reputa violentas as regras do jogo da boa sociabilidade.

Os andares do meio no edifício pátrio estão distribuídos entre o impeachment de Bolsonaro, o apoio à volta de Lula à Presidência e uma improvável terceira opção, por enquanto inexistente. Dentre estes, parcelas significativas mobilizaram-se em mais de duzentas cidades para o contraponto aos atos dos golpistas que ameaçam a normalidade democrática, na data quase bicentenária (2022) de comemoração da Independência em face da metrópole portuguesa. Não se depreenda que o país está dividido. Nem em sonhos está dividido.

Pesquisas recentes do Datafolha e do Vox Populi revelam que o núcleo duro (heavy) bolsominion reduz-se a algo em torno de 12% da população (brancos, acima de 35 anos ou então aposentados, de classe média). São aqueles que “acreditam muito” no presidente e consideram “ótimo ou bom” o desempenho do governo. Os apoiadores minguam a olhos vistos, o que em Brasília ficou escancarado no espanto do Ustranaro: “Cadê o pessoal?” Ao que foi informado que as caravanas estavam a caminho, era uma mentira piedosa. No Distrito Federal, como no poema de Paulo Leminski: “Sol fazia / Só não fazia sentido.

Em São Paulo, em lugar dos 2 milhões aguardados, a insuspeita Polícia Militar calculou em 125 mil o total de participantes na manifestação. Isso, após dois meses de arregimentação com ônibus, lanches e pecúnia paga pelos ruralistas e quetais, em sintonia com a cúpula de evangélicos e oficiais militares estaduais. A montanha pariu um gado magro para ouvir o Genocida bradar que não será preso. Era para ser um discurso, conquanto o que saiu fosse a confissão velada dos crimes que o “animador de torcida” carrega no bolso. E a sólida falta de empatia com as vítimas da pandemia e do desemprego desmanchou no ar durante a tarde!

  • Luiz Marques é professor da UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura (Governo Olívio Dutra).

 

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