Foram anos de massacre midiático-judicial a contaminar a percepção da opinião pública sobre a esquerda e desconstruir as conquistas sociais dos governos, sob responsabilidade do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). O antipetismo militante que resultou da máquina de destruição de reputações individuais e coletivas, sem o devido contraditório, ajudou a destampar o esgoto da política brasileira, donde saíram Bolsonaro e o bolsonarismo.
No sete de setembro, contudo, viu-se a Globo News acompanhar os eventos neofascistas em verde-amarelo, aliás, em muito menor número do que o esperado pelos organizadores, com a seguinte legenda: MANIFESTANTES COM PAUTAS ANTIDEMOCRÁTICAS. É vero. Mas as pautas em alusão sempre estiveram na agenda do idólatra de covardes torturadores, nos vinte e sete anos de mediocridade parlamentar de quem fez da representação em casas legislativas um negócio para enriquecimento da “familiciana”, às custas do erário.
O Judiciário, dos guardiões da Constituição (Supremo Tribunal Federal / STF) ao pilar básico do Estado de Direito Democrático (Tribunal Superior Eleitoral / TSE), percebeu o erro cometido por indução do clima que ajudou a recender um machartismo tropical contra os críticos das desigualdades sociais. A tempestade iniciou com a denúncia que apontou Roberto Jefferson, no longínquo 2005, no esquema de corrupção nos Correios e no Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). O fantasioso Mensalão foi o subterfúgio arranjado pelo boquirroto condenado e, ainda!, presidente do PTB, para aliviar as acusações que pendiam sobre sua cabeça e converter em alvo a agremiação petista. A manobra diversionista foi bem sucedida, pois correspondeu às expectativas das elites econômicas e do Jornal Nacional.
O espetáculo de horror oferecido ao mundo, com o grau de degenerescência moral a que se chegou sob o desgoverno em curso, só foi possível porque o ajuste de contas com o golpe civil-militar, da década de 60, deixou incólumes os protagonistas com uma anistia à medida para salvar os mentores intelectuais do Estado de exceção, criado com a deposição do presidente das inconclusas “reformas de base”, João Goulart. Mentores que se abrigavam no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC) e Escola Superior de Guerra (ESG), consentâneo estudo de René Armand Dreifuss (1964: A Conquista do Estado, Vozes, 1981).
Os executores, por igual, foram denunciados no magnífico esforço de investigação que culminou na publicação prefaciada por Dom Paulo Evaristo Arns (Brasil: Nunca Mais, Vozes, 1985), mas não foram condenados pelos crimes de lesa-humanidade. A anistia, de mão dupla, que equiparou a resistência de indivíduos às atrocidades praticadas pelo próprio aparelho de Estado, empurrou as barbáries em série (prisões, torturas, assassinatos, desaparecimentos) para debaixo do tapete. Há relatos pungentes legados sobre o período, qual o do jornalista Flávio Tavares (Memórias do Esquecimento, Globo, 1999). A impunidade encorajou os espíritos pusilânimes, agora, na via autoritária do neofascismo.
O discurso de Dilma Rousseff, como Chefe de Estado, no Primeiro de Maio de 2012, foi o estopim para o rompimento da aliança de classes pactuada com a Carta ao Povo Brasileiro (junho 2002) lançada por Lula da Silva na campanha eleitoral que o levou ao Palácio do Planalto. No pronunciamento, a presidenta ressaltava que os juros cobrados pelo setor financeiro eram superiores aos de outros países e as altas taxas dos bancos oneravam as pessoas físicas e as empresas. Coisa que limitava o crescimento do mercado interno, logo, o desenvolvimento industrial, a distribuição de renda e a geração de empregos. A fala, que evocava Canaã, foi interpretada como voluntarista e sem respaldo na sociedade civil.
O sociólogo Marcos Coimbra, em um artigo intitulado Os Liberais e os Juros (Correio Brasiliense, 06/05/2012), a propósito, comentou que a reação dos jornalistas defensores do princípio do laissez-faire do livre-mercado, em oposição a qualquer intervencionismo estatal, foi mais célere que os banqueiros e rentistas na denúncia da ingerência tida por heterodoxa pela tradição firmada no Consenso de Washington (1989). Os noticiários se comportaram mais realistas do que o rei. Deus perdoe os filisteus do neoliberalismo.
Não obstante, em política o correto não é apenas questão de conteúdo, depende da forma como se constroem os consensos majoritários. Assim, o pacto com o andar de cima começou a ruir. Com os porões das delegacias de polícia e os jagunços armados e fardados, treinados em matanças de inocentes nas periferias, tipo a ocorrida no mês de maio do corrente na comunidade de Jacarezinho/RJ, – o rompimento começara com a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011, que entregou o Relatório Final em 2014. O Brasil foi a última nação a tomar iniciativa, no intuito de trazer à lume acontecimentos que a democracia não deve esquecer para que não se repitam, embora com atraso de três décadas e resultados tímidos, se comparados aos alcançados na África do Sul, Argentina ou Uruguai. Bastou para excitar a extrema-direita contra o suposto “revanchismo” das forças democráticas. O obscurantismo reputa violentas as regras do jogo da boa sociabilidade.
Os andares do meio no edifício pátrio estão distribuídos entre o impeachment de Bolsonaro, o apoio à volta de Lula à Presidência e uma improvável terceira opção, por enquanto inexistente. Dentre estes, parcelas significativas mobilizaram-se em mais de duzentas cidades para o contraponto aos atos dos golpistas que ameaçam a normalidade democrática, na data quase bicentenária (2022) de comemoração da Independência em face da metrópole portuguesa. Não se depreenda que o país está dividido. Nem em sonhos está dividido.
Pesquisas recentes do Datafolha e do Vox Populi revelam que o núcleo duro (heavy) bolsominion reduz-se a algo em torno de 12% da população (brancos, acima de 35 anos ou então aposentados, de classe média). São aqueles que “acreditam muito” no presidente e consideram “ótimo ou bom” o desempenho do governo. Os apoiadores minguam a olhos vistos, o que em Brasília ficou escancarado no espanto do Ustranaro: “Cadê o pessoal?” Ao que foi informado que as caravanas estavam a caminho, era uma mentira piedosa. No Distrito Federal, como no poema de Paulo Leminski: “Sol fazia / Só não fazia sentido.”
Em São Paulo, em lugar dos 2 milhões aguardados, a insuspeita Polícia Militar calculou em 125 mil o total de participantes na manifestação. Isso, após dois meses de arregimentação com ônibus, lanches e pecúnia paga pelos ruralistas e quetais, em sintonia com a cúpula de evangélicos e oficiais militares estaduais. A montanha pariu um gado magro para ouvir o Genocida bradar que não será preso. Era para ser um discurso, conquanto o que saiu fosse a confissão velada dos crimes que o “animador de torcida” carrega no bolso. E a sólida falta de empatia com as vítimas da pandemia e do desemprego desmanchou no ar durante a tarde!
- Luiz Marques é professor da UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura (Governo Olívio Dutra).