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A tortura e a cadeia de cumplicidades revelada pelos áudios do STM | Pedro Tierra

Pedro Tierra

É necessário refletir sobre o desgaste das palavras. A repetição exaustiva delas nos faz diluir seu significado real. E anestesia nossa percepção sobre os fatos que buscam retratar.

Em 17 de março de 1973, Alexandre Vannucchi Leme, 22 anos militante da resistência à ditadura, estudante de geologia na USP, foi espancado até à morte numa sala de interrogatório do DOI-CODI do 2º Exército, então comandado pelo “Major Tibiriçá”, mais tarde conhecido pelo nome verdadeiro: Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, em S. Paulo.

Usamos a palavra tortura para descrever o que ocorreu com Alexandre.

Quase meio século depois, a sociedade brasileira ainda ouve como um eco declarações como essa: “Você sabe que eu sou a favor da tortura”! numa entrevista gravada e divulgada pelos meios de comunicação e redes sociais.

Ou ainda, diante da audiência de todo o país, ouvimos no Plenário da Câmara dos Deputados: “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e Deus acima de todos, meu voto é sim”! Era mais um voto a favor do impeachment de uma Presidente eleita democraticamente.

A segurança da impunidade dos crimes contra a humanidade cometidos pelos agentes militares e civis durante a ditadura 1964-1988, fez com que o indivíduo que proferiu essas frases, quando era deputado, fosse alçado à condição de Presidente da República, nas eleições fraudadas de 2018.

Ou seja, nessa república um indivíduo que defende publicamente a prática de espancar prisioneiros até à morte permanece no cargo de chefe do Poder Executivo, apesar dos inúmeros crimes de responsabilidade que cometeu ao longo de quase quatro anos de mandato.

O argumento: “Mas, o povo o elegeu”! levantado por seus apoiadores e pelos que, naquele momento, se empenharam em elucubrações a respeito da “escolha difícil”, não se sustenta de pé: não será justo com o povo brasileiro atribuir-lhe essa responsabilidade, se considerarmos as circunstâncias do pleito.

Recordemos que o principal adversário desse energúmeno, o ex-Presidente Lula, então favorito em todas as pesquisas de opinião, fora encarcerado pelo Judiciário e impedido de disputar as eleições nessa exemplar democracia tutelada pelos tuítes de um general.

O Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Fico, pesquisador do CNPQ, prestou um relevante serviço à luta pela democracia no Brasil ao revelar, nos últimos dias, para o grande público áudios das sessões do STM entre 1975 e 1985, que retratam de forma irrespondível a cadeia de omissões e cumplicidades que acobertou a prática institucionalizada da tortura no Brasil, durante a ditadura civil-militar.

Diz o professor, em entrevista à jornalista Denise Assis, sobre o assunto:

“Não ter havido o julgamento de violações dos direitos humanos, praticados por militares e civis também, por conta da Lei de Anistia foi muito negativo. Tornou a transição brasileira uma transição inconclusa. Não houve uma ruptura, não houve julgamento, não houve punição. E criou-se uma aberração jurídica. A anistia, regra geral, conceitualmente, ela é feita para anistiar as pessoas que são julgadas e condenadas. Muitos falam: tem que ver os dois lados.

Por que esta expressão não faz sentido? Porque os presos políticos, a esquerda que se intitulava revolucionária, ou mesmo aquelas pessoas que foram presas e julgadas, essas pessoas que foram presas e sobreviveram à tortura, elas foram julgadas pela justiça militar. Julgadas e condenadas, e, portanto, merecedoras de anistia, porque você só pode anistiar alguém que, em tese, tenha cometido um crime, ou tenha sido condenado mesmo que injustamente”. (Prof. Carlos Fico).

Se considerarmos que “Os repressores, os algozes, os agentes da repressão militar e, em parte, civis que cometeram violações aos direitos humanos, eles nunca foram julgados. Então eles foram anistiados em 1979, do quê? De modo que a gente tem esta aberração, que é uma anistia não se sabe do quê. Supostamente essas pessoas nunca foram criminosas, embora evidentemente tenham sido, mas, na medida em que nunca foram condenadas e punidas, foram anistiadas do quê?” (Prof. Carlos Fico).

Conclui-se então que o artigo 1º da Lei de Anistia – Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979 – que trata dos “crimes conexos” traz consigo um duplo significado: a confissão dos crimes cometidos pela ditadura e a prévia absolvição dos criminosos. Ou seja, o regime ao ceder a uma crescente mobilização social pela anistia aos presos e exilados políticos, abriu o texto da Lei com uma auto-anistia, como é de conhecimento dos setores sociais medianamente informados. O fato novo é que as revelações do professor Carlos Fico obtiveram um alcance social que nunca se havia conseguido em cinco décadas. Assim funciona a democracia brasileira.

A provocação fascista dirigida por um deputado reconhecido como porta-voz das milícias no Congresso Nacional, contra a jornalista Mirian Leitão, do jornal “O Globo”, vítima sobrevivente de tortura durante a ditadura militar, resultou num benefício para a luta pela reconstrução da democracia no Brasil ao explicitar para o grande público o caráter sistemático da prática da tortura como forma de manutenção dos militares no poder naquele período e seus vínculos com a escória que atualmente ocupa o Palácio do Planalto.

As revelações trazem para a pauta do país a necessidade de um debate sério sobre o papel institucional das Forças Armadas e a necessidade a extirpar o câncer do golpismo que contamina historicamente o estamento militar na história do Brasil.

Carlos Fico vai direto ao ponto: “Seria importante uma discussão no Congresso Nacional a respeito desse assunto. Porque eu estou convencido há muitos anos, de que o artigo 142 precisa ser alterado. Quase todos os oficiais militares em geral têm a convicção de que o artigo 142 dá às forças armadas a incumbência da intervenção militar. O próprio vice-presidente que é um general golpista, já falou isto. É isto que a gente tem que enfrentar”.

E conclui: “A Constituição de 1988 não deu conta de tirar, por isso eu acho que tem de ser discutido e retirado. É claro que o STF já disse que não é isto, mas ele é dúbio, ele é mal redigido e foi imposto pelos militares desde a Constituinte de 1987/1988. Então o Congresso é que deveria fazer esse esforço de revisão constitucional do 142.”

A declaração do vice-presidente da república, general da reserva Hamilton Mourão: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. [risos]. Vai trazer os caras do túmulo de volta? Não chega a surpreender. Está rigorosamente à altura do governo do qual faz parte.

O general da reserva Luís Carlos Gomes de Matos, atual presidente do STM, não fez por menos e brindou o país com essa pérola: “Não tenho resposta nenhuma para dar. Simplesmente, ignoramos uma notícia tendenciosa daquela, que nós sabemos o motivo. Aconteceu durante a Páscoa. Garanto que não estragou a Páscoa de ninguém – porque a minha não estragou. Garanto que não estragou a Páscoa de nenhum de nós”.

Como se vê, o general, Presidente de uma Corte Militar que não consegue sequer justificar sua existência, se expressa numa língua aparentada ao português. Ao que tudo indica, não dispõe de tempo para dar explicações sobre a prática sistemática de tortura nos porões do regime civil-militar, à sociedade que lhe assegura o salário no fim do mês. Seguirá insistindo na vã tentativa de manter sepultados os crimes contra a humanidade, cometidos pela ditadura civil-militar que periodicamente, como agora, assombram a sociedade brasileira.

Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo. Brasília, 22 de abril de 2022.

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