Crédito da ilustração: Benett.
Fui empurrado para dentro de um túnel. Ia aos tropeções. Não conseguia enxergar muito distante, era muita gente. Na multidão predominava as cores verde, amarela e azul.
Atrás de mim, e na frente, vozes gritavam e falavam coisas incompreensíveis. Compreendi perfeitamente quando perto de mim, e dirigida a mim, um sujeito de feição raivosa disse: “não fique parado, caminhe e não tente voltar se quiser continuar vivo. Vá em frente que do outro lado há vida e é melhor. Lá não é este inferno comunista que vocês construíram aqui”.
Empurrado e no meio da confusão – vi que outras pessoas também eram empurradas –, demorei em perceber que quanto mais entrava, mais o túnel se estreitava. Se estreitava de maneira imperceptível, coisa de poucos centímetros há cada muitos metros.
Conforme o túnel estreitava, a luz e o oxigênio diminuíam e o ambiente ficava mais confuso: muitas discussões e ordens erráticas dos líderes que nos levavam aos empurrões. Muitas pessoas se enfraqueciam por falta de comida, muitas adoeciam e morriam, inclusive algumas já morriam por falta de oxigênio.
Dentro do túnel, os mortos eram tantos que se tornou coisa normal. Seus corpos eram ignorados ou negados, renegados, pisoteados e deixados para trás.
Em relação à morte, e aos mortos, eles diziam: “é assim mesmo, todo mundo um dia vai morrer”.
Não sei quanto tempo caminhamos. Entre eles já havia discordância: continuar ou não; seguir a orientação doutrinaria do líder que os estimulou ou não.
Angustiado, ofegante com falta de oxigênio e desesperado, acordo e procuro entender onde estou. Poucos segundos depois constato – para a minha alegria – que estou na minha cama.
Busco entender o que passou: “foi um pesadelo ou vivi um processo de vigília/insônia com reflexos da realidade ou como falam os médicos, foi uma obnubilação?”
Sem sono pego o celular e vejo as notícias: mais de duas mil pessoas morreram hoje; os hospitais estão lotados, não há vagas em enfermarias e tampouco em UTIs; há pessoas que morreram por falta de oxigênio e não há esperança que em breve tenhamos vacinas para toda a população.
Vou para outro “canal” e lá há comentários sobre o “novo normal” e que é bom ir se acostumando com ele: uso de máscaras, álcool em gel. E comenta sobre as mudanças que ocorrerão nas relações pessoais.
O que acabei de viver é o novo normal?
É esse “novo normal” que muitos querem nos impor com a normalização do autoritarismo, fascismo, burrice, ignorância – para ficar só em alguns adjetivos – e o escárnio diante da pandemia e das mortes.
Prefiro o “velho” normal: encontrar os parentes, os amigos e as amigas, debater presencialmente os temas políticos e andar pelas ruas sem ser ameaçado pelo que penso.
Não quero o novo normal do – túnel – Brasil da insensatez.
Quero o velho normal de aglomerar-se para ouvir e cantar todos os bois: Boi de Mamão, Boi Bumba, Bumba Meu Boi, Boi Barrica…
Boi Barrica, estranho nome para um Boi.
No Maranhão – no velho normal – conheci Boi Barrica, numa festa popular, cujo ano não lembro. Logo depois encontrei num sebo de Brasília alguns discos do Boi e entre eles Baiante, gravado em 1989.
Godão de Zé Pereira – um dos criadores do Boi – escreve no encarte do disco que “Tonel seria o nome do boi, quando Wellington Reis, do Regional Tocado a Álcool, viajando cervejas e conversas comigo, brincou com o Boi Tonel e chamou de Barrica o boizinho sonhador. Pronto: tava batizado o novilho”.
Ainda no encarte, Godão, continua: “Foi uma noite iluminada aquela sexta de março de 85 no barzinho Beco, lá no canto do Teatro. A música madrugou nas pessoas. Apaixonados e bêbados saímos todos até à porta do…, cantando e dançando:…
Mas que boizinho seria esse, de toadas e quadrilhas, de cocos e ladainhas, que nas madrugadas de março descobri?“
Na capa do Baiante, do “velho normal”, há uma dedicatória:
Ao Dr.M.,
Com abraços especiais
Dos Amigos
A e G.
SL 300590
Dentro do túnel chamado Brasil vive-se pesadelos – imagino – semelhantes aos das crianças recentemente encontradas prisioneiras dentro de tonéis ou barris.
Prisioneiros e prisioneiras só pensam em liberdade.
Prisioneiro dentro do túnel e de tonéis não consigo imaginar qualquer hipóteses de porque o Dr. M. vendeu o disco.
Eu quero ver a lua / te iluminar / o sol luzindo a lua / pra bilhar no mar / e o mar de maré cheia / pra te namorar / …
Eu quero o velho normal com abraços especiais. Não quero o novo normal de túneis, tonéis e de tantas ladainhas em tantos velórios.
- Dr. Rosinha é médico aposentado e ex-deputado.
Publicação original: www.plural.jor.br/cronicas/florisvaldo-fier/abracos-especiais
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