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Alemanha: ameaças à liberdade de expressão | Flávio Aguiar

Na Alemanha há um verdadeiro torcicolo político doloroso e implacável, além do crescimento da intolerância e da militarização.

“Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querer o mal, por principiar.” (O ex-jagunço Riobaldo, em Grande sertão: veredas).

Prólogo

Tudo começou com a guerra na Ucrânia. Mesmo provocada — e o foi — quem invadiu outro país foi a Rússia. Houve a justa condenação da invasora na Assembleia Geral da ONU. Junto com este gesto, outro começou a se avolumar em vários quadrantes da Europa, inclusive e muito intensamente na Alemanha. Cresceram os dedos em riste — ainda que simbólicos — apontando “russófilos” e “putinistas” onde não havia.

A atitude da mídia alemã foi uníssona, desde o começo da guerra: a Ucrânia não só deveria ganhar a guerra, ela estava ganhando a guerra, chegassem que notícias chegassem da frente de batalha. E este era um discurso que alimentava e se alimentava de um sentimento difuso de russofobia que vinha do século XIX, para dizer o mínimo, de anti-sovietismo mais recente mas não menos vigoroso.

Criou-se uma espécie de think tank coletivo e disperso apontando: se você critica os Estados Unidos, a OTAN, Kiev, Zelensky, a presença tolerada de símbolos nazistas nas fardas ucranianas, é porque, automaticamente, você é pró-Rússia, pró-Putin, pró-invasão. Como corolário, naturalizou-se a guerra, a volta do militarismo europeu como solução defensiva e agressiva ao mesmo tempo.

O militarismo

Na Alemanha a crise econômica recessiva que se seguiu ao corte no suprimento do gás russo intensificou o militarismo. A indústria alemã alterou sua espinha dorsal, apoiando-se de novo na militarização. E a Alemanha não é exceção: França, Polônia e outros países passaram a se armar mais do que já estavam armados. A coalizão governamental alemã, neste ponto liderada pelo tom beligerante do Partido Verde transformado em verde-oliva, foi dando todos os passos na direção do maior envolvimento militar com o confronto, chegando ao ponto atual – dos mais perigosos – a autorização de que as Forças Armadas ucranianas possam atacar o território russo com armas alemãs.

Para bom entendedor, isto é sinal maior de que a Ucrânia, de fato, está perdendo a guerra em que desempenha o papel de utilidade nada inocente para a guerra do Ocidente contra Moscou. Mas para o caldo de cultura gerado pelo destravar do sentimento beligerante isto nada mais é do que uma obrigação de defender a democracia contra o autoritarismo agora sino-russo, desde que Moscou colocou-se debaixo da asa protetora de Pequim.

A névoa desviante

Uma espécie de névoa desviante espalhou-se, no dia a dia, pelas conversas deste mesmo dia a dia. Amigos que antes falavam sobre tudo passaram a evitar o assunto complicado: Ucrânia. O mal estar condensou-se e virou a norma consentida do ocultamento. Ao mesmo tempo, falar em “paz” e em “negociação” tornou-se sinônimo, para este sentimento beligerante, de “fazer o jogo russo”, de “defender a invasão” da Ucrânia, e assim por diante. Os dedos, na mídia e fora dela, continuavam duros e em riste. A posição neutra do governo brasileiro, não permitindo o uso de munição produzida no país pelos tanques alemães Leopard, cedidos à Ucrânia, foi bastante críticada como pró-Putin.

O protetorado militar

Enquanto isto, a União Europeia foi se tornando cada vez mais um protetorado militar dos Estados Unidos, via OTAN.

Criticar ambos virou um anátema. Cheguei a ouvir de viva voz o comentário de que que nós, latino-americanos, cometíamos o “erro” de considerar os Estados Unidos “um país imperialista”. Em outro comentário, ouvi no rádio um professor de história afirmar que os Estados Unidos nada tiveram a ver com a preparação do golpe de estado no Chile em 1973… Que os chilenos tinham condição de dar um golpe por eles mesmos… E por aí afora e a dentro…

Entra em cena o Hamas

Foi nesta moldura de crescente intolerância que explodiu a notícia do ataque terrorista promovido pelo Hamas em 7 de outubro, contra militares e civis em Israel. Seguiu-se imediata e justa solidariedade com as vítimas do ataque.

Na sequência, começou a se desenhar a absurda desproporção da resposta por parte do governo israelense de extrema-direita, promovendo a destruição da Faixa de Gaza e uma verdadeira carnificina da população civil palestina, atingindo um sem número de mulheres e crianças.

Além disto, a repressão contra os palestinos aumentou na Cisjordânia ocupada, junto com os ataques promovidos pelos colonos israelenses ocupantes de vastas áreas desta região tomada aos palestinos, contrariando resoluções da ONU. E ficou cada vez mais claro que o governo israelense não se deteria em violar as resoluções da ONU e as normas do direito internacional, sob a alegação de “defender-se” contra o ataque que sofrera.

A reação do governo israelense

No fundo, o governo de Benjamin Netanyahu e de seus aliados dentre o que há de mais reacionário em Israel, passou a exacerbar o já existente clima de discriminação contra a população palestina. Seguiram-se denúncias veementes de que ele estaria promovendo um genocídio contra os palestinos na Faixa de Gaza. A discussão se instalou e enveredou pelo campo jurídico, sobre se o uso da palavra “genocídio” seria adequado.

Não vou entrar em argumentações jurídicas. O que é mais do que claro é que as forças armadas israelenses vêm promovendo um massacre da população civil palestina brandindo a luta para “exterminar” o Hamas como pretexto. E destróem tudo em Gaza: eletrcidade, água, medicamentos, hospitais, escolas, universidades. E a vida.

E vieram as denúncias

As denúncias contra tal massacre pipocaram em vários locais do mundo, e seguiram-se manifestações de grande porte em favor dos direitos da população palestina e da solução dos dois estados prevista nas resoluções da ONU, que Netanyahu e seus governos do passado e do presente sabotaram e sabotam sem parar. É sabido, inclusive, que no passado o governo de Benjamin Netanyahu ajudou a promover o Hamas para enfraquecer a influência da Autoridade Palestina, que defende a proposta dos dois estados, reconhecendo, portanto, o de Israel.

O torcicolo político

Na Alemanha seguiu-se um verdadeiro torcicolo político doloroso e implacável. Ocorre que no passado a existência de Israel foi proclamada oficialmente como uma “Razão de Estado” do país. Diante desta proclamação fazer qualquer coisa que possa ser considerada como pondo em risco a existência de Israel é algo ilegal. E no clima de intolerância que já prevalecia na mídia e fora dela abriram-se as comportas para uma enxurrada de sofismas da pior espécie.

Criticar Benjamin Netanyahu, seu governo, condenar o massacre de civis na Faixa de Gaza, defender o direito do povo palestino à auto-determinação passou a ser sinônimo de “antissemitismo”, de “grave ameaça” contra o Estado Israelense. Os dedos, que já estavam em riste por causa da Ucrânia, se enrijeceram mais ainda e viraram metralhadoras giratórias, atirando contra tudo e contra todos que fossem alvos da mais leve suspeita deste “antissemitismo” de conveniência.

O antissemitismo existe, mas…

Não se põe aqui em dúvida a existência de antissemitismo na Alemanha e no mundo, muito menos a necessidade de combatê-lo também.

O que se levanta como denúncia é que por um acúmulo de culpa histórica misturada com defesa de um governo discricionário como o que hoje governa Israel, passou-se a promover uma histeria macarthista contra quem defenda os palestinos e seus direitos. Tal defesa passou a ser sinônimo automático de antissemitismo, as denúncias se avolumaram e passaram a ser aceitas sem maior exame de sua pertinência.

Primeiro, as metralhadoras voltaram-se contra artistas e intelectuais, muitos destes e destas judias e judeus que defendem ou alguma vez defenderam os palestinos. Prêmios foram anulados, convites foram cancelados, seminários foram suspensos, cursos programados foram desprogramados porque os artistas e intelectuais envolvidas e envolvidos alguma vez na vida assinaram alguma coisa em favor dos palestinos. Esquadrinhou-se a vida pregressa das pessoas, em busca de assinaturas suspeitas ou declarações consideradas “perigosas”.

As dependências perigosas

Explique-se que todo o setor cultural na Alemanha depende de financiamentos por parte dos poderes públicos. E qualquer suspeita de favorecimento ou tolerância de algum tipo de antissemitismo é motivo suficiente para o corte destes financiamentos. Ainda mais num clima em que qualquer suspeita transforma-se automaticamente em acusação e passa em julgado com a condenação do réu desta verdadeira lei de Lynch.

A vez da polícia

Entretanto, como em outras partes do mundo, avolumaram-se manifestações pró-palestinos, nas ruas e… nas universidades. Aí a polícia entrou em ação. E o caldo, já grosso, engrossou mais ainda, com amplo apoio entre políticos e também na mídia em favor da repressão contra aquele “antissemitismo” fantasmagórico.

Com frequência manifestações pró-palestinos foram proibidas ou reprimidas, sob a alegação que defendiam o terrorismo. Os estudantes envolvidos passaram, como nos Estados Unidos, a ocupar espaços dentro das universidades. E a repressão, em resposta, passou a invadir os campus das universidades, com aplauso de políticos e na mídia. Estes aplausos passaram a exigir das autoridades universitárias que reprimissem também os estudantes que protestassem. A prefeitura da cidade — Berlim é uma cidade-estado — passou a fazer o mesmo. Houve o agravante de que estudantes judeus passaram a dizer que se sentiam “ameaçados” dentro das universidades – até mesmo por olhares de manifestantes.

O incidente

Um incidente fora da Universidade Livre de Berlim, em que um estudante palestino desta esmurrou outro estudantes judeu, foi o estopim para que na prefeitura da cidade se levantassem vozes pedindo a expulsão daquele. As autoridades universitárias alegaram que o estatuto da universidade não permitiria tal pena máxima no caso, sendo possível a aplicação de outras medidas disciplinares, uma vez devidamente averiguadas as circunstâncias do fato. As mesmas vozes passaram a exigir que os legisladores da cidade modificassem o estatuto da universidade, à revelia desta. O estatuto da universidade virou moeda política.

A autonomia universitária no brejo

O resultado deste clima de pressão foi que o princípio da autonomia universitária – se é que era reconhecido – passou a ser questionado e neutralizado, com consequências funestas.

Conversei com uma pessoa que participou de manifestações pró-palestinos em duas das universidades berlinenses: a Livre de Berlim e a Humboldt. Pedi-lhe que me contasse o que acontecera em ambas.

O relato foi circunstanciado. No caso da Universidade Livre de Berlim os manifestantes organizaram um acampamento no espaço junto ao Restaurante Universitário – chamado de Mensa. Havia cartazes pró-Palestina. Perguntei se em algum momento esta pessoa viu ou ouviu qualquer manifestação pró-Hamas: a resposta foi negativa.

O reitor — aqui chamado de presidente — da Universidade deu um prazo para que eles desfizessem o acampamento e saíssem. Como isto não aconteceu, ele chamou a polícia para que retirassem aqueles que se recusavam a sair. Assim aconteceu.

Torções de braço

A polícia chegou e ordenou a retirada. Ao mesmo tempo, outros estudantes, que não estavam no acampamento, começaram a se manifestar ao redor, a favor dos acampados. A polícia partiu para cima daqueles, ao mesmo tempo em que começavam a retirada destes, à força.

Como forma de resistência, os manifestantes sentaram-se e cruzaram os braços uns com os outros, formando uma corrente. Seguiu-se uma série de empurrões, torções de braços, joelhos no peitos e pressões semelhantes para desfazer as correntes. A pessoa que entrevistei teve o braço torcido, ficou com um hematoma na região. A retirada processou-se, os manifestantes foram devidamente identificados e fichados, sendo informados que receberiam algum tipo de comunicado oficial sobre medidas legais que poderiam ser tomadas.

Segunda investia da polícia

Na Universidade Humboldt a ação foi mais violenta. Os estudantes em protesto ocuparam o prédio das Ciências Sociais, que fica fora do campus oficial, dando para a rua. Alguns deles foram até o quarto andar do prédio, erguendo barricadas com mesas, cadeiras e outros recursos junto às portas. Entre estes estava a pessoa que entrevistei. A presidenta da universidade dispôs-se a negociar com os ocupantes. Como a ocupação aconteceu à tarde, ela concordou que os ocupantes passassem a noite no prédio.

A negociação seria retomada no dia seguinte. Ao mesmo tempo, outros manifestantes reuniram-se na rua em frente ao prédio, e a polícia passou a reprimi-los com violência. Questionada a respeito, a presidenta declarou que nada podia fazer, uma vez que os manifestantes estavam na rua, fora dos limites do campus universitário.

A polícia atropela

No dia seguinte, antes que a negociação fosse retomada, a mando da prefeitura a polícia atacou os manifestantes dentro do prédio, com violência maior do que na Universidade Livre. Houve espancamentos e sacaram-se algemas à vontade. Os e as policiais chegaram ao quarto andar ocupado, desfizeram as barricadas e começaram a levar à força os manifestantes para baixo.

A pessoa que entrevistei disse-me que foi algemada com os braços nas costas e que em todo o trajeto pelas escadas até o térreo levou cacetadas na cabeça, no pescoço e na barriga. Relatou-me que viu gente sangrando, com o supercílio aberto.

Embaixo esta pessoa teve um ataque de asma e precisou pedir várias vezes para que lhe tirassem as algemas a fim de que pudesse usar a bomba de ar. Seguiram-se as mesmas cenas de exame dos documentos, identificação, fichamento e declarações de que receberiam correspondência anunciando possíveis medidas legais.

Novamente perguntei à pessoa se vira ou ouvira qualquer declaração, cartaz, palavra de ordem favorável ao Hamas. Disse-me que não. Houvera cantos e falas de protesto, sim, mas relativas à causa dos Palestinos e à violência da repressão israelense na Faixa de Gaza e Cisjordânia.

Entrevistei essa pessoa três dias depois dos acontecimentos na Universidade Humboldt. Na ocasião disse-me que ainda sofria de dores de cabeça e no pescoço devido às pancadas que sofrera.

Na Universidade Técnica

Alguns dias depois novo caso explodiu. Desta vez o cenário foi a Universidade Técnica. Alguém descobriu e divulgou que em algum momento anterior a presidenta da universidade dera um “like” em publicação na internet que protestava pela violência do governo de Israel contra os civis em Gaza. Acontece que nesta publicação havia uma montagem fotográfica em que aparecia o primeiro ministro israelense, Benjamin Netanyahu, com um avental coberto de manchas de sangue e uma suástica nazista num canto do mesmo.

As mesmas vozes de sempre denunciaram a publicação e o “like” da presidenta como manifestações de antissemitismo. Exigiu-se a sua destituição ou renúncia. Ela se recusou a renunciar. A gritaria contra ela prosseguiu, e o caso foi levado à consideração do Conselho Universitário da instituição. Este dividiu-se: 13 membros votaram a favor da renúncia da presidenta e 12 contra. Diante disto e de um manifesto com muitas assinaturas em seu favor, a presidenta decidiu não renunciar. Abriu um processo disciplinar contra si mesmo, para que uma comissão disciplinar exame os fatos, comprometeu-se a combater o antissemitismo na universidade e declarou-se arrependida de ter dado aquele “like”.

Afinal, uma defesa da autonomia

O caso foi levado então ao Conselho de Curadores da universidade, de onze membros, que funciona como uma espécie de conselho fiscal da mesma. Na manhã de segunda-feira, 10 de junho, em reunião digital, segundo o jornal Tagesspiegel, o Conselho decidiu não pedir a renúncia da presidenta, dando-lhe um “apoio crítico”, embora considerasse a sua atitude do “like” como reprovável e recomendasse a averiguação disciplinar do caso, como ela mesma pedira antes. A matéria deve voltar ao Conselho Universitário, onde uma proposta de destituição da presidenta precisa de uma maioria de dois terços para ser aprovada. A ver.

A “faca de muitos gumes”

Em conclusão, o que se pode dizer diante desta labiríntica a tortuosa trajetória de denúncias é que o caso é espinhoso, complicado, uma “faca de muitos gumes”, como dizia um amigo e colega de USP.

O antissemitismo, como qualquer outra forma de discriminação racial, de gênero, etnia, religião, cultura, etc., e ponha-se etc. nisto, inclusive a contra o povo palestino, é condenável e deve ser combatido em todas as suas formas. Porém retomando a epígrafe deste artigo, de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, citando provérbio sertanejo, “Viver é muito perigoso… Querer o bem, com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querer o mal, por principiar”.

As manifestações em defesa do ato terrorista do Hamas em 7 de outubro do ano passado têm sido claramente minoritárias. A maioria dos protestos se refere ao direito do povo palestino ter seu próprio estado, de acordo com as resoluções da ONU, e ao massacre da população civil cometido pelo governo de extrema-direita de Benjamin Netanyahu, sobretudo em Gaza e também na Cisjordânia. Além disto, pedem que os demais governos deixem de fornecer-lhe armas e apoio político.

O clima histérico que vê como reação a tudo o que seja crítica à carnificina a que a população civil palestina sofre, entretanto, está levando a rumos demais de perigosos na direção de afrontar a defesa de direitos humanos, de liberdade de expressão dentro e fora das universidades, nas instituições culturais e fora delas, numa situação em que vejo serem as atitudes discricionárias e violentas do atual governo israelense as maiores promotoras de antissemitismo no mundo inteiro.

Cria-se assim uma conjuntura em que qualquer um se vê autorizado a denunciar qualquer outro por qualquer coisa que julgue, em sua total subjetividade, como antissemitismo. É a promoção do linchamento.

Isto é demais assustador num momento em que partidos extremistas de direita, anti-democráticos, discricionários, muitas vezes querendo ocultar seu próprio passado antissemita através da islamofobia e outras formas de xenofobia, estão em ascensão na Europa e em outras partes do mundo.

Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP.

Via A terra é redonda.

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