Jornal DS – 18. Capítulos introdutórios de um novo cenário mundial.
No início da década passada, o triunfo da globalização neoliberal e do imperialismo estadunidense como única potência hegemônica inaugurou uma “ordem mundial” mais violenta, injusta e instável do que a da “Guerra Fria”. Isso não foi imediatamente óbvio nem para a opinião pública, nem para a esquerda – seja em âmbito mundial ou nos mais diversos países. Mas hoje estão em andamento, em diferentes cenários regionais e nacionais, respostas aos efeitos dessa “ordem”. É sobre esse terreno, com grandes potencialidades, que as esquerdas estão desafiadas a construir alternativas.
O capítulo mais interessante se desenvolve na América do Sul. Nesse contexto, o início do governo Evo Morales foi de extrema importância para toda a região, sobretudo para a área andina. Seu rechaço ao tratado de livre comércio (TLC) com os Estados Unidos – que os governos da Colômbia e Peru já assinaram e o do Equador quer assinar – reforçou enormemente a pressão popular contra o acordo nesses países.
A vitória do candidato Ollanta Humala no primeiro turno da eleição no Peru, um militar nacionalista que fez da crítica ao TLC sua bandeira eleitoral, acontece ao mesmo tempo em que, no Equador, um levante indígena bloqueou a intenção do governo de assinar o acordo. O governo colombiano, único aliado incondicional de Bush na região, está isolado na defesa do TLC na Comunidade Andina de Nações (CAN).
Para se entender a transcendência dessa disputa, há que se considerar que, derrotado o governo dos EUA na estratégia da Alca, sua prioridade passou a ser a firma de TLCs com países (Chile) e sub-regiões (América Central, Comunidade Andina). Nos Andes, os estadunidenses parecem estar em vésperas de colher um segundo fracasso estratégico. O TLC na América Central já foi muito desgastante para os governos que o assinaram (incluído o governo Bush).
Novo cenário na Bolívia
A posse de Evo foi revestida de simbolismos indígenas e políticos muito fortes. Mas o início do seu governo foi além, transformando rapidamente em atos alguns compromissos do candidato. Foi convocada uma Assembléia Constituinte, e nos próximos meses, o país inteiro vai discutir a “refundação do Estado” para superar definitivamente a “fase colonial”.
O governo formalizou o pedido de retirar o tema da água das negociações de liberalização na Organização Mundial do Comércio (OMC), bloqueando a estratégia das multinacionais (Coca Cola, Nestlé etc.) de obter uma normativa supranacional favorável à privatização desses recursos. Tomando posição contra o TLC, o governo Evo abriu um debate sobre uma nova modalidade de acordos comerciais – Tratado de Comércio entre os Povos, TCP – que deveriam estar baseados no princípio de que a distribuição dos ganhos deve ser equitativa entre os povos, e não pautada pelos interesses dos grandes grupos econômicos multinacionais.
Em cumprimento da nova legislação sobre hidrocarbonetos, o governo boliviano iniciou uma forte negociação com o governo brasileiro e a Petrobrás, afirmando que a quer não como “patrão”, mas como “sócio” na exploração do gás. Tudo indica que a Bolívia completará o ciclo da re-nacionalização dos recursos naturais, afetando interesses de diversas empresas multinacionais de países imperialistas e alterando sua relação com a Petrobrás.
Vale destacar outro fato. A Bolívia perdeu sua saída ao mar em uma guerra contra o Chile no final do século XIX. A recuperação do acesso ao mar é um tema que incendeia o nacionalismo dos dois lados da fronteira. Porém, a presença do Evo na posse da nova presidenta do Chile, Michele Bachelet, apontou, pela primeira vez em décadas, a busca de fórmulas aceitáveis para os dois países.
Os meses seguintes serão de intensa disputa política no país e na situação geopolítica na região. No período anterior à eleição, Evo foi atacado tanto pela direita e a embaixada dos Estados Unidos (que o vê como esquerdista perigoso e aliado do narcotráfico) como por setores esquerdistas (que o declararam “traidor” e o “expulsaram” da COB, a Central Obrera Boliviana). Isto é, pelas duas pontas ideológicas, há tensões latentes à espera de que o governo enfrente impasses.
Evo Morales ganhou as eleições porque foi capaz de reunir na sua candidatura os votos de setores urbanos radicalizados muito mobilizados, setores indígenas e camponeses empobrecidos pelo modelo neoliberal e setores médios cansados com a incapacidade dos partidos tradicionais de dar uma saída ao ciclo de crises políticas iniciado no ano 2000, quando o povo de Cochabamba se levantou contra a privatização da água (crises que “devoraram” a todos os que sentaram na cadeira presidencial desde então). Porém, a direita também conquistou espaços institucionais importantes e mantém capacidade de iniciativa.