A primeira grande revolta popular espontânea a nível nacional contra a globalização neoliberal foi o Caracazo de 1989. Em 1992, um grupo de militares venezuelanos rebeldes, liderados por Hugo Chávez, tratou de lhe dar expressão política.
Em 1990, em meio ao desconcerto provocado pela crise final do socialismo burocrático, por iniciativa do Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula, com apoio do Partido Comunista Cubano (PCC) de Fidel, se realizou o primeiro Foro de São Paulo com participação de um amplo leque de partidos progressistas e de esquerda de toda a América Latina, para debater estratégias políticas para sair do refluxo em que se encontrava a luta contra o neo-conservadorismo.
A primeira ação contra-hegemônica articulada internacionalmente foi a campanha dos 500 anos de resistência indígena, negra e popular que diversas organizações latino-americanas realizaram em torno das comemorações de 1992.
A primeira resposta política à globalização neoliberal organizada a nível nacional e com projeções mundiais foi o levantamento indígena zapatista de janeiro de 1994. O setor mais marginalizado e excluído, socialmente mais “atrasado” do hemisfério, os indígenas pobres do México, se lançaram contra a expressão mais “moderna” da ofensiva neoliberal, o NAFTA, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte.
A primeira grande manifestação contra os efeitos do neoliberalismo no Norte foi a greve geral de 1995 que sacudiu a França e questionou o marasmo do outrora poderoso sindicalismo europeu que havia construído o estado de bem-estar e agora impotente, o via desmoronar.
A primeira vitória eleitoral duradoura de um projeto político alternativo ao neoliberalismo foi a de Chávez em 1998. Casos anteriores como o de Aristide em 1991 no Haití, não resistiram as pressões da direita e do imperialismo e fracassaram ou desviaram seu curso.
Em 1996, no Encontro Intergalático convocado pelos zapatistas em Chiapas, México, convergiram em um mesmo espaço pela primeira vez diversos sujeitos sociais e políticos do Norte e do Sul do mundo, todos com o denominador comum de estarem dispostos a enfrentar o neoliberalismo.
Em 1999 nas manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, Estados Unidos, vencendo desconfianças mútuas, se juntaram tanto os “novos” movimentos como muitas das organizações sociais “tradicionais” de todo o mundo na primeira manifestação com representantes internacionais e com uma ampla diversidade político-ideológica, porém todos contra a globalização neoliberal.
No ano de 1997 surge a Aliança Social Continental (ASC) onde novos e tradicionais movimentos de todo o hemisfério se unem para questionar a ALCA, Área de Livre Comércio das Américas, projeto estrela do imperialismo norte-americano para o continente.
Todos esses processos e eventos ocorreram em um contexto mundial ainda dominado pela ofensiva política, econômica e cultural global neoliberal. Isso quer dizer, eram lutas contra a corrente, contra-hegemônicas, mas sob um ambiente amplamente favorável ao capitalismo neoliberal e às forças sociais e políticas a ele associadas. Quando a Cúpula dos Povos organizada pela ASC em Quebec, Canadá, em abril de 2001, paralela a cúpula oficial de presidentes, apenas um governante dos 34 presentes expressou seu descontentamento com a ALCA e sua proximidade com os movimentos contestatórios: Hugo Chávez, da Venezuela.
Nesse contexto ainda de defensiva frente ao pensamento único neoliberal e à onda ideológica do fim da história, no Fórum Social Mundial (FSM) de Porto Alegre em janeiro de 2001 se tentou armar um cenário para que todos esses atores tão diversos convergissem. Se buscava que encontrassem sinergias entre si. Que trocassem diagnósticos. Se conhecessem programaticamente. Decidissem ações conjuntas cada vez que assim quisessem. Foi como um ponto de apoio para muitas agendas: o FSM foi importante nesse momento em que as lutas se apresentavam dispersas em muitos pontos do planeta para interconecta-las, associa-las, internacionaliza-las.
Dentro dessa perspectiva, o primeiro Fórum abrigou a Assembleia de Movimentos Sociais (AMS) que desde o início teve um forte protagonismo para buscar agendas e ações comuns. Foi uma iniciativa das organizações da Via Campesina Internacional, do sindicalismo combativo de vários países e da Marcha Mundial das Mulheres, entre outras. O acerto do seu enfoque ficou visível quando, a partir do Fórum Social Europeu de 2002 em Florença, Itália, e no FSM de janeiro de 2003 em Porto Alegre, a AMS acordou impulsionar o dia de ação global contra a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque que mobilizou milhões de pessoal ao redor do mundo. Finalmente, a globalização neoliberal encontrava uma resposta a altura, e se cumpria a convocatória da internacional campesina de “Globalizemos a luta!”.
Hoje, a situação mundial e regional, do capitalismo e das forças que o enfrentam, é outra. E desafia não somente ao FSM mas a outras expressões dos movimentos internacionais ou regionais que se opuseram ao neoliberalismo em todos esses anos. É assim que também está em rediscussão a ASC que tão importante papel teve para derrotar a ALCA na campanha continental que culminou vitoriosa em 2005 em Mar del Plata.
Desde a vitória eleitoral de Chávez em 1998, boa parte da América Latina conheceu vitórias eleitorais presidenciais de forças progressistas; Ainda que também houveram golpes vitoriosos da direita, em Honduras, 2009, e Paraguai, 2012. Nos países com governos progressistas os movimentos sociais enfrentam desafios diferentes ao da oposição frontal a projetos neoliberais; mas o fato é que esses movimentos muitas vezes têm pontos de vista diferentes e até contraditórios com os governos progressistas em temas chave.
Essas experiências de governos progressistas são muito diversas. Seu mínimo denominador comum é sua oposição à hegemonia imperialista norte-americana. É um “piso” de convergência desses governos com os movimentos sociais. Porém o que ocorre nos vários casos onde o resto da agenda possui posturas diferentes e até opostas? E reconheçamos que isso não ocorre apenas nas experiências progressistas mais tímidas (como as do Cone Sul, que não obstante seu baixo perfil programático foram chave para barrar a ALCA em 2005), mas inclusive nos processos claramente revolucionários. Ou não é esse o caso do conflito do governo Evo Morales com alguns setores indígenas em relação ao TIPNIS na Bolívia? (sem entrar na discussão de quem tem a razão!)
A década de 1990 esteve marcada pela sensação de vitória do unilateralismo norte-americano inaugurado ne primeira guerra do Iraque. Porém de uns anos pra cá, as placas tectônicas do poder mundial estão movendo. EUA não perderam sua condição de primeira potência econômica, geopolítica e militar, porém diversos outros pólos disputam regionalmente (o caso mais claro é a China) e buscam articular-se a nível mundial. Entre os governos progressistas existem poucas dúvidas sobre a necessidade de jogar essa partida, nos términos em que está colocada: que surjam vários pólos X unipolaridade dos EUA. É possível pensar a geopolítica mundial desde os movimentos ou apenas pensaremos as reivindicações gerais dos setores representados? O internacionalismo dos movimentos sociais tem algo a dizer em relação ao redesenho do poder mundial inter-estatal?
As receitas neoliberais entraram em crise ideológica final durante o colapso capitalista de 2008. Porém, em muitos casos continuam sendo aplicadas, especialmente no Norte, inclusive sem o suporte de alguma legitimidade. Ainda operam no terreno ideológico aberto na década de 1980 pela recentemente falecida M. Thatcher, aquele de “não há alternativa” (TINA, na sua sigla em inglês) ao neoliberalismo. Porque se existem ideias alternativas, em geral não surgiram forças políticas capazes de impulsionar programas alternativos. Já não basta fazer a crítica ao capitalismo neoliberal, tem que afirmar uma contra-proposta e organizar uma força política majoritária com esse programa. Os movimentos sociais e ONGs (aos que no Fórum se mal denomina-os “sociedade civil” como separados o contrapostos aos partidos políticos e governos de esquerda) se caracterizaram por sua fragmentação. Os partidos políticos de esquerda e progressista que sobreviveram, estão marcados pelo seu atraso programático. De onde sairá a resposta? Apenas na Grécia parece estar realizando a combinação de protestos com a construção de uma força contra-hegemônica, política e social, que impulsione um programa de superação da crise. Importante, mas para uma crise europeia generalizada, é muito pouco.
As forças políticas de inspiração religiosa muçulmana há tempos se constituem como um dos principais pólos anti-imperialistas mundial e ainda assim possuem fartas diferenças de visão de mundo com o grosso dos movimentos sociais ocidentais. É possível construir pontes? Com qual metodologia, com quais objetivos?
Dessa forma, os acontecimentos nos rebaixaram a todos e todas. As revoluções anti-ditatoriais árabes e os movimentos de indignados e outros na Europa e EUA tiveram suas próprias dinâmicas por fora do FSM ou das articulações que se criaram ou fortaleceram a partir do FSM. Isso é, nenhuma articulação nem espaço internacional ou regional os a lançado nem orientado nem abrigado.
Os processos políticos que mais buscaram superar limites dos antigos regimes democrático-neocolonizados, a revolução bolivariana na Venezuela e a revolução plurinacional na Bolívia, são iniciativas de forças políticas em função de governos incitadas pelo cerco capitalista a essas experiências. E se desenvolveram mobilizações sociais poderosas, nelas não germinaram movimentos sociais que expressem o novo momento e que o impulsionem.
Não é possível que toda essa diversidade possa ser incluída em apenas um processo ou espaço. Por um bom tempo ainda haverá que continuar na diversidade de iniciativas e isso pode ser bom, se o trabalhamos corretamente.
Necessitamos que em cada uma dessas experiências se vá assentando conquistas comuns, aspectos sobre os quais já convergimos, sínteses possíveis. É necessário manter abertos os diálogos, na compreensão que hoje não há partidos-guia, não há farol do mundo, não há partido da revolução mundial ditando receitas contra-hegemônicas, e se há boas teorias críticas da civilização que morre, não existe ainda sínteses de quais seriam as alternativas.
No FSM, desde a “sociedade civil”, se criticou o dirigismo dos partidos políticos e dos governos de esquerda do século XX. Havia razão na crítica, mas faltava visão autocrítica sobre seus próprios limites. Os administradores do FSM –seu conselho internacional, seus comitês organizadores- priorizaram sua institucionalização e o controle de “sua marca” antes que tratar de interpretar os ares do mundo. E esses ares foram uns antes da sua criação, outros em seus primeiros anos e desde uns quatro anos atrás em nível global apresentam oportunidades inéditas.
O FSM algumas vezes e em certas circunstâncias soube ser flexível, e se aqueles que o administram se sintonizam mais com esses tempos, se ofereceria hoje como um espaço onde amigavelmente toda essa complexidade possa encontrar-se, sem condições, superando dogmas do próprio Fórum, buscando sínteses políticas que permitam construir forças com capacidade de disputar o poder com uma perspectiva política superadora das experiências fracassadas do século passado.
O mundo das lutas contra-hegemônicas e dos ensaios de alternativas no século XXI é amplo, muito diverso ao longo do planeta e sem donos. Melhor assim. Provavelmente não cabe em apenas um espaço, por mais aberto e flexível que seja. Para que nesse novo contexto o processo do Fórum seja algo mais que um passado importante, tem que estar aberto e ao invés de tratar de absorver energias ou recorta-las de acordo com critérios pré-estabelecidos, deve definir um novo método que ajude a libera-las.
* Gustavo Codas é jornalista e economista paraguaio, mestre em relações internacionais.
** Esse texto é parte da Revista América Latina em movimento n. 484, que nessa edição trata sobre “Fórum Social Mundial: momento de repensar?”
Fonte: http://alainet.org/active/63622