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André Singer e Carlos Árabe: Balanço de uma experiência histórica

I. A opção por um modelo de utilização das margens ou a expectativa de mudar sem grandes conflitos

1. Tendo em vista o histórico radical do Partido dos Trabalhadores, talvez o aspecto mais marcante da experiência de governo iniciada em 2003 tenha sido a opção em favor de um modelo de utilização intensiva das “margens disponíveis” para melhorar as condições de vida dos brasileiros de baixa renda, porém sem confrontar o capital. Por “margens disponíveis” entendemos os espaços que, em conjunturas favoráveis, se abrem para proceder a reformas tênues suportadas pelo capital. Assim, em lugar da perspectiva de ruptura alimentada pelo PT desde a sua origem, o “lulismo”, cuja invenção começa quando Lula passa a ser o presidente da República, inaugurou uma perspectiva moderada não prevista nos documentos partidários. Deve-se dizer que, também para a direita, a conduta “lulista” foi surpresa. Recorde-se o discurso do candidato José Serra ao final do segundo turno de 2002, quando previa que ou o novo mandatário trairia seus compromissos e seria abandonado pelas próprias bases ou manteria os compromissos e seria isolado pelo seu radicalismo.

2. É verdade que alguns gestos efetuados em 2002 prenunciavam o advento do “lulismo”, entendido como pacto de não agressão em relação aos capitalistas, tendo em troca a possibilidade de utilizar espaços no aparelho de Estado para diminuir a desigualdade. O primeiro movimento inusitado foi a escolha de José Alencar como vice de Lula. Ao acolher um grande empresário na chapa presidencial, o PT indicava a disposição de abrir um diálogo de classe, em nenhum momento sugerido pelos documentos partidários. Para tornar tal disposição ainda mais marcante, numa segunda atitude inovadora, realizou-se uma aliança com o Partido Liberal (PL), sigla à qual Alencar encontrava-se filiado e que trazia carga conservadora desde o Congresso Constituinte de 1986. A terceira manifestação de que algo havia mudado foi a jocosa declaração de Lula, de grande repercussão durante a campanha, segundo a qual tinha abandonado o perfil combativo anterior, apresentando-se agora como o “Lulinha paz e amor”. Por fim, a mais importante das transformações foi a assinatura da Carta ao Povo Brasileiro, cujo texto firmava de maneira explícita compromisso com o respeito aos contratos e com a redução do gasto público, sob a forma de superávits primários suficientemente altos para garantir que a relação dívida/PIB fosse cadente.

3. Apesar de o PT haver aprovado as decisões da campanha de 2002, nunca houve uma revisão das teses anteriores do partido, que iam em direção oposta, de modo a compatibilizar as novas posições  adotadas. Basta consultar as resoluções do Encontro Nacional Extraordinário realizado pelo PT em maio de 1998 para verificar a distância nunca preenchida. Depois de caracterizar a crise provocada pela orientação neoliberal do mandato deFernando Henrique Cardoso, o texto de 1998 aponta que “o PT, as entidades populares, os partidos de esquerda e setores da sociedade civil são a grande força de oposição ao governo FHC e ao neoliberalismo”. Nem uma palavra sobre aproximação com o empresariado ou agremiações do campo conservador. Antes, pelo contrário, ressaltava-se que “o avanço das lutas populares é o principal instrumento de resistência ao conservadorismo e de sustentação a um futuro governo democrático-popular” – (Resoluções de Encontros e Congressos, p. 670).

4. Na mesma linha estão as resoluções do XII Encontro Nacional, realizado em Olinda, em 2001: “A implementação de nosso programa de governo para  o  Brasil, de caráter democrático e popular, representará uma ruptura com o atual modelo econômico, fundado na abertura e na desregulação radicais da economia nacional e na consequente subordinação de sua dinâmica aos interesses e humores do capital financeiro globalizado. Trata-se, pois, de  propor para o Brasil um novo modelo de desenvolvimento economicamente viável, ecologicamente sustentável e socialmente justo. Será preciso ousar, rompendo com o conformismo fatalista pretensamente pragmático que sonega direitos básicos da população e resgatando os valores éticos que inspiraram e inspiram as lutas históricas pela justiça social e pela liberdade. Será necessário, de igual modo, avaliar com objetividade as restrições e potencialidades do atual quadro sócio-político e econômico do país, para evitar um voluntarismo que poderia frustrar a proposta de transformação da economia e da sociedade brasileiras.” – Resoluções de Encontros e Congressos & Programas de Governo. Partido dos Trabalhadores (www.pt.org.br) e Fundação Perseu Abramo (www.fpabramo.org.br).

5. Do ponto de vista programático, o documento de 1998 reafirmava as posturas tradicionais do partido: “A implementação de um programa radical de reformas (…) contribuirá para a refundação de uma perspectiva socialista no país” (Idem, p. 265). Isto é, o PT mantinha-se favorável a um reformismo democrático vigoroso que prometia rupturas fundamentais com a orientação neoliberal do país. No que tange ao problema crucial da dívida interna, o documento de 1998 formulava posição antagônica ao expresso na Carta ao Povo Brasileiro, “estabelecendo um teto para os gastos com juro/principal que seja compatível com as necessidades de custeio e investimentos previstos em nosso programa” (Idem, p. 676).

6. Em suma, a virada realizada em 2002 jamais foi elaborada pelo partido. Ela se deu na prática, sem teoria, consistindo na adoção de uma estratégia bem diferente para enfrentar os problemas postos tanto pelas dificuldades eleitorais da esquerda quanto pelos desafios da globalização. Em lugar da proposta de uma ruptura, que havia caracterizado a construção petista desde a fundação, foi desenhado um acordo, por meio do qual as linhas macroeconômicas neoliberais seriam respeitadas para que certas políticas sociais, sobretudo aquelas voltadas aos mais pobres, pudessem ser transformadas em realidade. É a isso que estamos chamando de política de utilização intensiva das margens, o que pode ser retratado, igualmente, como um reformismo fraco.

7. Conforme veremos adiante, o caminho do reformismo fraco revelou-se capaz de produzir inúmeros frutos, fortalecendo o “lulismo” enquanto direção para o País. Tal sucesso teve por base, junto com a reconhecida capacidade política do ex-presidente Lula, uma conjuntura mundial favorável e medidas econômicas que ampliaram o mercado interno. A partir de 2003, a economia globalizada passou por anos de forte crescimento, com expressivo protagonismo chinês e excepcional valorização das commodities. Assim, até 2008, quando irrompe grave crise internacional, conforme será discutido à frente, o “lulismo” foi beneficiado por contexto favorável a soluções de conciliação, pois as margens haviam se ampliado. Além disso, a recuperação do salário mínimo e a redução do desemprego, aliados aos novos programas sociais, funcionaram como alavancas para o desenvolvimento.

II. O que foi possível fazer dentro desse modelo?

8. Os avanços conquistados pelo reformismo fraco foram lentos, de acordo com a premissa de não haver radicalização. No entanto, à medida que houve continuidade nas reformas, o ganho para as camadas populares se revelou significativo. Do muito que foi feito entre 2003 e 2014, devem-se destacar três iniciativas e um importante resultado indireto.

9. A primeira medida a ser mencionada não é necessariamente a mais importante, mas, além da extensa abrangência que adquiriu, possui um caráter simbólico notável. Trata-se do Bolsa Família. Lançado em setembro de 2003, começou a transferir renda, mediante cartão da Caixa Econômica Federal destinado prioritariamente às mulheres, às famílias mais pobres do país, a base da sociedade brasileira. Ao cabo de algum tempo, 13 milhões de famílias passaram a ser beneficiadas. Embora para o orçamento nacional o valor transferido fosse relativamente pequeno, para muitos beneficiários tratava-se da diferença entre comer e não comer. Lula conseguiu, dessa maneira, caminhar para cumprir a promessa de que, ao final de seu mandato, todo brasileiro poderia fazer três refeições ao dia.

10. A segunda decisão transformadora foi a instituição do crédito consignado, proposta original da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Todo trabalhador (a) ou aposentado (a) passou a ter acesso a empréstimos com juros menores que os de mercado, uma vez que as parcelas devidas seriam descontadas diretamente da folha de pagamento. Ao ativar a capacidade de consumo da população de baixa renda, o governo petista deu concretude a outro dos itens centrais do programa partidário, a saber, a construção de um mercado de consumo de massa.

11. Por fim, cumpre assinalar aquele que, possivelmente, seja, do conjunto de realizações governamentais, a que individualmente tenha maior relevo. Ao longo dos mandatos de Lula e Dilma, o salário mínimo foi valorizado em mais de 70%. Principal indexador da renda de dezenas de milhões de aposentados e trabalhadores no Brasil, o salário mínimo é considerado, até por economistas do campo liberal, a grande alavanca capaz de distribuir renda no país. Por meio de acordo inédito estabelecido com as centrais sindicais em 2005, foi fixado um mecanismo permanente de valorização, com a elevação do mínimo pelo crescimento do PIB de dois anos antes.

12. No conjunto, tais decisões, tomadas nos primeiros três anos do governo Lula, permitiram uma reativação da economia por baixo, o que resultou em progressivo declínio do desemprego, principal flagelo ao final da era Cardoso. Mais tarde, em 2010, quando a situação mundial já apresentava outra configuração (ver adiante), foi lançado o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), cujo sucesso contribuiu para fixar o principal resultado da política petista: o pleno emprego.

13. Tendo Lula recebido o país com uma taxa de desemprego de 12% em 2002, Dilma Rousseff encerrou seu primeiro mandato, em 2014, com uma taxa de apenas 4,3%. Infelizmente, decisões equivocadas da própria companheira Dilma fizeram com que o pleno emprego – cuja conquista gradual permitiu a elevação de 30% na renda real dos assalariados ao longo de dez anos – fosse abalado por um ajuste recessivo no decorrer do segundo mandato da presidenta, conforme será discutido logo mais.

14. A par do aumento do emprego e dos salários, bem como das transferências estatais para os mais necessitados, que podem ser considerados os mais importantes ganhos dos mandatos petistas, os governos Lula e Dilma desenvolveram um sem número de programas voltados para as camadas de baixa renda. Do Prouni à Farmácia Popular, passando pelo Fies, criação de universidades e escolas técnicas, regularização de terras dos quilombos, fortalecimento da agricultura familiar, abertura de cisternas no semiárido, entre outros, pode-se dizer que todas as margens para beneficiar os pobres sem confrontar os ricos foram utilizadas com criatividade, responsabilidade e competências por nossos governos. O resultado foi que o índice de Gini, principal sinalizador da desigualdade, caiu de 0,55 para 0,49 na década que vai de 2004 a 2014.

15. Cabe, também, registrar que no delicado campo das relações exteriores, em que parte do crucial tema da globalização é decidido, o Brasil, sob a condução do PT, deu passos significativos para a unidade dos países periféricos em face dos núcleos capitalistas centrais. O arquivamento do projeto de Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), o estreitamento dos laços com os vizinhos da América do Sul, em particular os que passavam por experiências parecidas com as dos governos petistas, o aprofundamento de projetos comuns aos BRICS e o estabelecimento de pontes com inúmeras nações do sul global foram valiosos progressos no sentido de construir uma posição soberana do país em face das pressões globais.

III. Efeitos da crise da globalização: mudanças na política econômica

16. A eclosão da crise internacional de 2008 teve como resposta do governo um conjunto de medidas anticíclicas, as quais puderam se apoiar em políticas postas em prática, sobretudo a partir de 2006, quando Guido Mantega substituiu Antônio Palocci no Ministério da Fazenda. A meta de superávit primário foi afrouxada e os bancos públicos adotaram uma estratégia agressiva de ampliação do crédito e do financiamento de longo prazo. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) retomou, em alguma medida, o planejamento estratégico. O Estado começou a recuperar parcialmente o seu papel na coordenação de investimentos públicos e privados.

17. A taxa de investimento voltou a subir (sem, no entanto, recuperar padrões históricos). O crescimento econômico impulsionou as receitas fiscais, melhorando as contas internas. A relação dívida líquida do setor público/PIB declinou de 60% (2002) para 35% (2014). Este resultado foi obtido pelo crescimento econômico e pela redução da taxa de juros básicos que, em 2012, atingiu o patamar de 7,25% (o que, descontada a inflação, representava taxa real de menos de 1% ao ano), graças à política ousada então desenvolvida pela presidenta Dilma. Em decorrência, reduziu-se a parcela dos recursos públicos destinada ao pagamento dos juros (de 8,5% do PIB em 2002 para 4,9% do PIB em 2012). Convém notar, em particular, o esforço envidado pela Nova Matriz Econômica, do primeiro mandato de Dilma, em sustentar o crescimento, com reindustrialização do país, em um momento que a conjuntura internacional já havia se tornado restritiva (2011-14). [Sobre essa passagem, ver André Singer: “A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista” (2016)].

18. A crise internacional iniciada em 2008 propiciou uma reaproximação parcial, mas significativa, com o programa partidário, com a abertura de um novo curso na experiência liderada pelo PT. À medida que o Estado confrontava as restrições ao desenvolvimento e intensificava os mecanismos de distribuição de renda, o programa original era mais contemplado.

19. Esse processo ganhou certa autonomia face ao mercado internacional, embora não tenha chegado a entrar em conflito com ele, pois coincidiu com o momento de grandes intervenções do Estado nos países capitalistas desenvolvidos. Lá, no entanto, o objetivo era salvar o sistema financeiro privado. A diferença com a experiência brasileira, que deve ser realçada, é que aqui os bancos públicos saíram fortalecidos. Em 2007, os bancos públicos eram responsáveis por algo como 30% dos empréstimos; em 2014 passaram a responder por mais de 50% do total de empréstimos bancários. O BNDES se transformou num dos maiores bancos de fomento do mundo.

20.  As capacidades públicas de financiar investimentos a longo prazo e de ofertar crédito são elementos centrais numa estratégia de enfraquecer o capital financeiro e superar restrições por ele impostas ao desenvolvimento nacional. Por outro lado, a política de recuperação do salário-mínimo, sobre o qual já nos referimos acima, com seu efeito distribuidor de renda, ganha impulso à medida que o PIB avança e passa a ser instrumento de ampliação (e mesmo criação) do mercado interno de massas.

21.  Dissemos que o reencontro programático entre a ação de governo e as diretrizes do partido, apesar de significativo, foi parcial. Expliquemos: foi parcial ao não subordinar o BCB à política econômica desenvolvimentista, isto é, ao não tornar a redução dos juros uma diretriz permanente e compatível com o conjunto de objetivos da política econômica. Embora tenha reduzido os juros entre 2011 e 2012, o BCB, a partir de certo momento (2013) conspira contra o crescimento ao iniciar uma nova fase de aumento da Selic.

22. Igualmente, o reencontro com o programa partidário foi parcial ao não acumular forças para a realização de reformas essenciais para a democracia, como seria o caso de uma reforma política capaz de coibir a financeirização dos processos eleitorais, os quais acabaram fortemente controlados pelo poder econômico. É preciso ter claro que mudanças como as envolvidas em uma reforma política não se fazem por atos de vontade, requerendo grande apoio social e parlamentar para acontecer. No entanto, uma das características do “lulismo” consiste em evitar temas que gerem confronto. Em consequência, o período “lulista” não avançou na mobilização e organização ao redor das bandeiras de transformação democrática da política.

Como o desenvolvimento nacional com autonomia face à globalização e com distribuição de renda necessariamente implica em conflitos maiores e requer mudanças na própria correlação de forças, embora tenha havido a adoção de inúmeras políticas públicas positivas, quando veio a reação conservadora, não havia a correspondente rede social e partidária, construída de baixo para cima, necessária para defender e aprofundar as conquistas.

23.  Esses aspectos, ao mesmo tempo impulsionadores e limitadores de uma nova dinâmica econômica, social e política, implicaram profundas contradições. Por um lado deram fôlego à manutenção do emprego e ao aumento da renda em um ambiente internacional de crise e recessão, mantendo o apoio das massas ao nosso projeto. Por outro lado, se mostraram insuficientes para superar os conflitos deflagrados.

24. Enquanto isso, o forte endividamento governamental nos países centrais passou a ser enfrentado por políticas de austeridade, provocando um longo ciclo de estagnação global. O efeito da segunda onda da crise internacional (2011) atingiu diretamente a dinâmica dos países emergentes com a queda dos preços das commodities, a crise do comércio internacional e o acirramento da competição intercapitalista.

25. Uma vez salvo o sistema financeiro privado nos países centrais, havia chegado o momento de pagar a conta. Com decisões macroeconômicas absolutamente acima de qualquer controle democrático (por meio do Tesouro dos EUA, do Banco Central Europeu, FMI, etc), instalaram-se políticas de superausteridade, tendo como objetivo garantir a riqueza financeira e elevar as taxas de lucro.

26. No Brasil, a partir de 2012, as classes dominantes, à medida que a Nova Matriz Econômica empacava, se unificaram no enfrentamento ao modelo surgido na superação da crise de 2008 e optaram pelo ajuste recessivo. O movimento reacionário das classes dominantes – nada inédito e em certa medida repetindo o comportamento golpista de 1964 – assumiu o programa da superausteridade.

IV. Guinada neoliberal e golpe

27. O confronto generalizado entre dois projetos para o Brasil em que se transformou o período que vai da segunda metade do primeiro governo Dilma até agosto de 2016 marca um dos períodos mais dramáticos e plenos de lições no Brasil.

28. Neste cenário de antagonismo e mobilização das forças políticas centrais da sociedade brasileira constituíram-se:

– uma poderosa rede de comunicação voltada a alarmar e atiçar a população contra os supostos descontrole da inflação e da situação fiscal, e contra a corrupção;

uma maioria na Câmara de Deputados abertamente golpista e reacionária, comandada pelo notório Eduardo Cunha;

– a chamada “República de Curitiba”, ação integrada por setores do Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal, em conluio com setores da mídia, que passou a centralizar e direcionar a investigação e condenação (a priori e a posteriori) contra filiados do PT. Não cabe a este texto abordar o assunto da corrupção de maneira específica. Cumpre registrar, contudo, que, desde o nosso ponto de vista as constatações acima não eximem o PT da necessidade de apresentar as suas próprias explicações para as fortes denúncias que apareceram contra membros do partido no bojo da Lava Jato;

– por fim, as hordas antipetistas compostas por setores da classe média e insuflados pela mídia que terminaram por encher a Avenida Paulista com visível hostilidade pelas políticas populares realizadas no período “lulista”.

29. É evidente que esses acontecimentos não se deram em um único momento, mas em processo. É difícil alguma análise séria negar a sua conexão. É evidente, também, que uma avaliação retrospectiva se beneficia da observação e reflexão de diversas análises e depoimentos. É possível, ainda, dizer que cada um desses grandes acontecimentos germinou a olhos vistos. O perigo apareceu e cresceu à luz do dia, sem que conseguíssemos dar conta dele!

30. A guinada neoliberal do segundo governo Dilma, depois de conquistar a maioria justamente para um programa de aprofundamento das orientações progressistas na economia e na democracia, foi um dos principais fatores que nos levaram a perder o pé. É necessário compreender com cuidado o por que das decisões tomadas por Dilma, na medida em que as razões dessa guinada capitulacionista nunca foram debatidas pelo partido e ela mesma nunca foi uma decisão tomada pelo partido. É necessário assumir os riscos de interpretar o ocorrido e, ao mesmo tempo, rejeitar o pior dos riscos, que seria o da omissão de juízo face um acontecimento histórico central.

31. O balanço do Diretório Nacional do PT de maio de 2016 aponta, com razão, o seguinte: “Diante  da  crise,  o  país  foi  colocado  em  uma  encruzilhada:  acelerar  o  programa distributivista,  como  havia  sido  defendido  na  campanha  da  reeleição  presidencial, ou  aceitar  a  agenda  do  grande  capital,  adotando  medidas  de  austeridade  sobre  o setor  público,  os  direitos  sociais  e  a  demanda,  mais  uma  vez  na  perspectiva  de retomada dos investimentos privados. O governo enveredou pela segunda via. O  ajuste  fiscal,  além  de  intensificar  a  tendência  recessiva, foi  destrutivo  sobre  a  base social petista, gerando confusão e desânimo nos trabalhadores, na  juventude e na intelectualidade progressista, entre os quais se disseminou a  sensação, estimulada pelos monopólios da comunicação, de estelionato  eleitoral. A popularidade da presidenta rapidamente despencou. As forças  conservadoras sentiram-se animadas para buscar a hegemonia nas ruas, pela  primeira vez desde as semanas que antecederam o golpe militar de 1964. O enfraquecimento da esquerda, nos meses seguintes à vitória apertada no  segundo turno de 2014, rapidamente alterou a correlação de forças no país, dentro e fora das instituições. A direita retomou a ofensiva. As frações de centro, assistindo à rejeição do governo na opinião pública, começaram a se  afastar da coalizão presidencial, deslocando-se para uma aliança conservadora  que impôs seguidas derrotas parlamentares à administração federal.”

32. É preciso, portanto, desvendar a brusca mudança de rumos exatamente para conseguir enfrentar seus efeitos (sobretudo na esfera do programa e consciência política sobre as tarefas estratégicas do PT). Deve-se assinalar que tais efeitos ainda perduram e é necessário preparar uma superação programática deles.

33. Desde logo, é preciso rejeitar a razão da direita, especialmente aquela que representa o capital financeiro (e que dirige as demais frações do capital), de que teria havido um descalabro da gestão da moeda e da dívida publica, que o país estava à beira da falência nas finanças públicas e da espiral inflacionária. Essa versão não resiste aos fatos e aos números. Foi contestada com fortes argumentos durante a campanha eleitoral e, por isso, derrotada. Tivesse ressonância na realidade, possivelmente teríamos amargado uma derrota na eleição presidencial. Essa versão, na verdade, representa no campo da economia política, os interesses do capital financeiro. (Ver Brasil justo e democrático. FPA et al.)

34. A guinada neoliberal guarda relação, entretanto, com o pensamento majoritário no partido nos primeiros anos da experiência dos governos nacionais do PT. Remonta, portanto, às razões que levaram à Carta ao Povo Brasileiro e ao que denominamos de modelo de utilização das margens do crescimento econômico e de negociação com as classes dominantes como método para produzir reformas. Em seu tempo foi extremamente polêmica; em 2015 abriu as portas para a maior derrota sofrida pelo Partido dos Trabalhadores.

Referências:

FPA e outros. POR UM BRASIL JUSTO E DEMOCRÁTICO. SP, SETEMBRO/2015

PT DN. RESOLUÇÃO SOBRE CONJUNTURA. SP, MAIO/2016

PT. Resoluções de Encontros e Congressos. Partido dos Trabalhadores (www.pt.org.br) / Fundação Perseu Abramo – Resoluções de Encontros e Congressos & Programas de Governo 41 (www.fpabramo.org.br)

SINGER, André. “A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista” Em André Singer e Isabel Loureiro. As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? São Paulo, Boitempo, 2016.

ANEXO: 2003-14: destaques

1. Salário Mínimo cresce e tem impacto na Renda Nacional

  • é a remuneração básica dos trabalhadores “formais” e aposentados
  • serve como referência para as remunerações do mercado “informal” de trabalho
  • tem impacto sobre os pisos das diversas categorias de trabalhadores
  • impulsiona a distribuição de renda e reduz desigualdades regionais

2. Desemprego, pobreza e desigualdade caem

Fonte: IPEA

EVOLUÇÃO DO ÍNDICE DE GINI* NO BRASIL

Fonte: IBGE

Fonte: IPEAFonte: IPEA

* O Índice de Gini mede o grau de concentração de renda. Quanto mais aproxima de 1 maior a concentração

3. Bancos públicos crescem, juro cai e investimento sobe

Fonte: BCB

TAXA DE JUROS BÁSICA

Fonte: BCB

FORMAÇÃO BRUTA DE CAPITAL FIXO
(Indicador do Investimento)

Fonte: IBGE

4. Reservas internacionais multiplicam por 10

Fonte: BCB

5. Vitórias na política externa


NÃO À ALCA

Nos dias 4 e 5 de novembro de 2005, foi realizada a IV Cúpula das Américas, na cidade argentina de Mar del Plata. Na ocasião, os presidentes do continente, liderados por Hugo Chávez, Néstor Kirchner e Lula, disseram não ao tratado continental de livre comércio proposto pelos Estados Unidos, a chamada Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), uma iniciativa de ecolonização continental.

UNASUL – União Sul-Americana das Nações

O Brasil apresentou, em 2004, durante a reunião presidencial da América do Sul, em Cuzco no Peru, o projeto da criação da Comunidade Sul-Americana das Nações (CASA) com o objetivo de formar um espaço sul-americano integrado composto no âmbito político, social, econômico, ambiental e de infraestrutura entre todos os Estados sul-americanos. Em maio de 2008, a partir das iniciativas e dos entendimentos da CASA, se estabelece a União Sul-Americana das Nações (UNASUL).

CELAC – Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos

Em dezembro de 2008, na Costa do Sauipe, Bahia, ocorre a I Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da América Latina e Caribe sobre Integração e Desenvolvimento (CALC). Reuniu, pela primeira vez, os 33 países latino-americanos e caribenhos. Para Cuba, foi um importante meio de reinserção. Em fevereiro de 2010, no México ocorre a II CALC que aprovou construir a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Com a Cúpula de Caracas, em dezembro de 2011, deu-se início ao funcionamento da CELAC.

COOPERAÇÃO SUL-SUL

O Brasil investiu na criação de instituições no esforço de engajar parceiros do Sul – a UNASUL no continente americano, o G-20 na OMC e os BRICS como grupo de países emergentes mais importantes após a crise de 2008. Instituições já existentes foram mobilizadas nesse esforço – a Venezuela foi convidada para o MERCOSUL.


Referências:

AUGUSTIN FILHO, A. Os fatos são teimosos. Revista Democracia Socialista nº 4. SP: Democracia Socialista, dez/2016
DIEESE. Salário Mínimo no Brasil: a luta pela valorização do trabalho.  SP:  LTR/DIEESE,  2015
DIEESE. Nota Técnica Nº 153 – Dez/2015/Atualizada em jan/2016
PRATA, J. Reservas Internacionais. FPA/DeFato http://www.fpabramo.org.br/fpadefato/?p=210 (acesso em 23/12/16)
SECRETARIA DE POLÍTICA ECONÔMICA/MINISTÉRIO DA FAZENDA. Relatório da Distribuição Pessoal da Renda e da Riqueza da População Brasileira. Maio de 2016. in http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/transparencia-fiscal/distribuicao-renda-e-riqueza/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09.pdf (acesso em 27/12/2016)
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/integracao-regional/689-comunidade-de-estados-latino-americanos-e-caribenhos (acesso em 23/12/2016)

(*) Parte integrante do caderno de contribuições para o 6º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores. Leia outros artigos do caderno aqui. Baixe aqui o PDF com todos os textos.

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