É com muita saudade deste personagem incrível que escrevo estas recordações que, espero, poderão dizer algo para que as próximas gerações tomem conhecimento e se espelhem na sua vida de lutas incansáveis
Conhecia o Apolônio de Carvalho de fama, histórias contadas pelo meu irmão-camarada Paulo Pinheiro, mas só fui vê-lo em carne e osso pela primeira vez em outubro de 1972. Eu vinha de um longo período de intensas viagens por Europa e América do Norte em campanhas de denúncia da ditadura desde que deixei o Chile no começo de março de 1971 e decidi dar uma trégua.
Aceitei um convite do Paulo para viajarmos de férias em um carro emprestado, num amplo circuito que começou ao nos encontrarmos em Annemasse, fronteira da França com a Suíça, descendo o vale do Ródano até Marseille e seguindo pela costa do mediterrâneo até Andorra, entrando pela Espanha, Portugal e voltando pelo Norte até Paris. No programa estava um encontro com Apolônio de Carvalho em Marseille.
Era um lindo outono, do tipo chamado de été d’indien ou verão índio, um prolongamento dos dias quentes antes de uma queda mais brutal dos termômetros. Apolônio de Carvalho chegou a Marseille apenas um dia antes de nós e nos vimos em seguida. Ele estava felicíssimo por ter vencido uma peleia forte com o governo francês que tinha recusado a permissão para ele entrar no país desde sua libertação em julho de 1970. Ficou retido um bom tempo na Argélia, para onde foram mandados os banidos do grupo dos quarenta.
O governo Pompidou foi obrigado a ceder pela pressão dos movimentos de antigos resistentes antinazistas que, independentemente de suas posições políticas, juntaram-se para exigir que o herói da libertação de Marseille pudesse voltar. A permissão, mesquinhamente, restringia a liberdade de circulação do Apolônio de Carvalho, limitando-a à cidade onde comandou a resistência. Mas Apolônio estava na maior alegria e logo se propôs a nos mostrar a Marseille da resistência.
Batemos perna um dia e meio com Apolônio contando as peripécias desde a primeira ação realizada contra soldados alemães, usando uma garrucha velha que negou fogo, facas e porretes. Abateram três soldados e tomaram as armas com as quais puderam fazer outras operações com maior segurança e assim foram armando os recrutas escolhidos pelo Partido Comunista Francês para se juntarem aos FTP (franc tireurs et partisans – guerrilheiros). Contou também da sua prisão e fuga organizada em articulação com os bombardeiros ingleses que puseram abaixo o presídio onde estava.
Notamos que a geografia da cidade não facilitava as surpresas e fugas nas ações, pois todas as ruas pareciam convergir para o porto. Apolônio de Carvalho riu e disse que os alemães também ficaram intrigados até o fim da guerra. A Gestapo ofereceu recompensas para quem mostrasse as rotas de fuga, torturou e matou quem ela conseguiu prender, mas o segredo foi bem guardado.
Apolônio de Carvalho nos levou até a beira do cais e disse que a rota de fuga passava por baixo do mar, de uma ponta da doca até a outra. Como? “naquele restaurante à direita há uma adega com uma passagem subterrânea que atravessa a enseada e sai por um armazém do outro lado”. Era algo pouco conhecido, velha herança das guerras religiosas do século XVI, recuperado pelos guerrilheiros.
Fomos andando até o restaurante e Apolônio de Carvalho disse: “está igualzinho! Será que os proprietários ainda estão vivos”? e entramos para verificar. Era um meio de tarde modorrento, pedindo uma sesta em rede e o restaurante estava vazio. Apenas uma jovem de uns 20 anos lia uma revista sentada no caixa. Apolônio perguntou pelo Monsieur Bernard (se não me engano) e a jovem respondeu que era seu avô, mas falecido há muitos anos. Apolônio de Carvalho ficou triste com a notícia, mas perguntou pela esposa e deu um pulo de alegria ao saber que a Madame Machine (essa eu não me lembro o nome) estava viva e muito bem, embora muito velhinha.
A neta foi buscá-la enquanto nos sentávamos nos abanando no calor húmido típico marselhês. Logo uma senhora de preto desceu lentamente as escadas dos fundos do restaurante e chegou-se a nós. Apolônio de Carvalho se levantou e perguntou: “madame Machine, lembra-se de mim”? A velha fixou uns olhos míopes no nosso companheiro e colocou uns óculos de fundo de garrafa para olhar de novo. “Monsieur Martin! C’est bien vous?” E pôs-se a chorar quando Apolônio a abraçou. Ele ficou sem palavras, emocionado, e nós dois mais ainda, com o famoso nó na garganta. Ambos lamentaram que o marido falecido não estivesse lá para rever o companheiro de lutas clandestinas.
E não houve jeito: a velhinha nos levou para a cozinha e assistimos a produção da melhor bouillabaisse que eu já comi. Depois do lauto almoço regado a um ótimo sauvignon blanc bem seco e gelado a madame mandou a neta nos levar à cave para que Apolônio de Carvalho pudesse nos mostrar a rota submarina de fuga da resistência francesa em Marseille. Entre muitos barris deitados de vários tamanhos a garota parou em frente a um dos maiores e nos mandou bater na madeira. O som era de barril cheio em qualquer lugar que batêssemos e a jovem abriu uma torneira e verteu vinho em uma caneca.
Ela fez girar um dispositivo que abriu o barril como uma porta, mostrando um espaço seco que levava a uma abertura no fundo do barril atravessando o muro de pedra da adega. Entramos no barril e descemos uma escada em alvenaria muito desgastada pela passagem de fugitivos ao longo de muitos séculos. Caminhamos uns duzentos metros e sentimos as paredes molhadas – estávamos sob o mar. Logo esbarramos com uma grade grossa que impedia a passagem e nos explicaram que a prefeitura tinha interditado o túnel por risco de desabamento.
Apolônio de Carvalho nos disse que os combatentes passavam por ali depois de atentados contra os militares alemães e polícias do regime colaboracionista de Vichy, às vezes esperando por horas enquanto o inimigo cercava o porto de todos os lados.
A história dos combatentes brasileiros da resistência francesa foi marcada pelo papel de liderança de dois deles. O de Apolônio de Carvalho era mais conhecido, pois foi o comandante de toda a área sudeste da Provence. O outro personagem foi outro militante e dirigente do PCB, Davi Capistrano, que comandou a área de resistência do sudoeste da Provence, com base em Toulouse. Ambos fizeram o mesmo itinerário, chegando à Espanha para lutar do lado republicano em 1936, por orientação do partido.
Apolônio de Carvalho nos contou um episódio da guerra civil, já nos últimos dias da frente da Catalunha em 1938. Fiquei impressionado com a riqueza de detalhes da descrição, tanto do ponto de vista militar como humano e até da geografia do terreno por onde passavam os restos dos regimentos republicanos em direção à fronteira com a França. Ele, promovido a capitão de uma companhia de metralhadoras, cobriu a retirada tanto dos combatentes como de uma leva de civis que buscavam escapar das tropas de Franco, famosas pelos massacres cometidos após os combates.
Depois de manter a distância o inimigo por algumas horas, Apolônio de Carvalho recuou com a sua companhia, destruíram as armas e cruzaram fronteira francesa perto de Baniuls. Neste momento Apolônio consolou um tenente espanhol que chorava de desespero impotente: “corage compañero! En un año estaremos en Madrid”. Ele ria muito do seu otimismo em plena derrocada da causa republicana e completou: “já se passaram 34 anos e ainda estou esperando…”. E ainda esperou mais uns seis até que o Pacto de Moncloa deu um fim negociado ao sinistro regime franquista.
Em 1977 participei de um evento pela anistia em Lisboa, organizado pelo CBA Portugal (Mink, Sirkis, Domingos, Almir e outros) com o apoio do governo do MFA. Éramos quatro convidados de fora: Artur Poerner veio da Alemanha, José Barbosa (ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo) da Suíça, Apolônio de Carvalho e eu da França. Depois de uma semana de debates e eventos sobre vários temas da agenda democrática encerramos com uma manifestação em uma enorme praça com 10 mil portugueses solidários, mobilizados por todos os grupos de esquerda do país.
Decidimos que discursaríamos por ordem de importância política, começando pelo Poerner, seguido por mim e pelo Zé e, fechando com chave de ouro, o Apolônio. Conseguimos fazer discursos curtos e impactantes que esquentaram o público para a entrada em cena de Apolônio de Carvalho. Não vou esquecer nunca a apresentação do mestre de cerimônias: “e agora vai falar o tenente da insurreição de 1935 no Brasil, o capitão do exército republicano espanhol em 1937, o coronel da resistência francesa em 1944, Apolônio de Carvalho”. Foi uma apoteose. As “massas ululantes”, como dizia o Vladimir, urravam “A-PO-LÔ-NIO, A-PO-LÔ-NIO”, sem parar por uns cinco minutos. Era de arrepiar.
Voltamos juntos para Paris em um avião que teve que fazer uma escala técnica no Porto e eu tive o privilégio de escutar Apolônio de Carvalho contando histórias da sua vida por várias horas, tomando mais de uma garrafa de vinho do Douro. Impressionado com a riqueza dos relatos e a saborosa maneira de contá-los, insisti com o René sobre a necessidade de se escrever a história daquele personagem excepcional. René simplesmente me disse que se eu quisesse poderia tentar e eu tentei.
Não deu certo. Assim que eu liguei um gravador na frente do Apolônio de Carvalho ele incorporou a personalidade de dirigente partidário e respondia a todas as minhas perguntas com análises políticas, esquecendo os episódios que eu tinha escutado em mais de uma ocasião e que me pareciam mais interessantes do que as abstrações políticas. Desisti.
Foram anos até que ele se abrisse mais para falar das suas vivências riquíssimas que resultaram em dois livros de memórias muito interessantes, mas ainda longe do que eu tinha escutado em conversas informais. Acho que o Apolônio tinha um viés de humildade comum nos melhores entre os velhos comunistas e que tendia a apagar o indivíduo e seu papel para valorizar o das forças sociais e do partido.
É com muita saudade deste personagem incrível que escrevo estas recordações que, espero, poderão dizer algo para que as próximas gerações tomem conhecimento e se espelhem na sua vida de lutas incansáveis pelo socialismo, aqui e em outras arenas da história contemporânea.
Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
Via A terra é redonda.