Democracia Socialista

Apontamentos II | Dr. Rosinha

As ruas estão tomadas de “fantasmas” vivos. Nos dias frios aparecem com cobertores nas costas.

Lazarillo de Tormes

Finalmente debruço-me sobre “La vida de Lazarillo de Tormes, y de sus fortunas y adversidades”. Manuseio-o, folheio-o e ao mesmo tempo – se já o tinha feito antes não lembro – observo a composição do livro.

Início a leitura pelo Apêndice. É a primeira vez que começo a ler um livro de trás para frente. E foi ótimo ter sido assim.

“Los enigmas del Lazarillo” – título do Apêndice – localiza-nos sobre o período em que o livro foi escrito e traça, já que quem escreveu nunca foi identificado, perfis de alguns possíveis autores.
Informa sobre o local e o período em que ocorrem a – autobiografia – história e os fatos relatados; a forte presença da religião, no caso o catolicismo, na sociedade e na obra; a transição da língua, do castelhano para o espanhol; e, período – na órbita do surgimento do Renascimento – em que se situa Lazarillo e a corrente literária a que pertence.

O relato, rico de detalhes, com duras críticas – sempre com picardia – às injustiças sociais, aos nobres e clérigos. Condena a tortura, as chibatadas em público.

Trata o tema da prostituição e da fome epidêmica (não com estas palavras) como sofrimento, mas o faz com humor, uma vez que ele é um dos famintos. Com picardia brinca com as palavras e faz de suas desgraças o riso.

Após a leitura imaginei que uma das razões de o autor preferir o anonimato foi a Inquisição.

Ah! Importante: o livro que li é da edição publicada em 1997 pela Acento Editorial, edición de Pedro Alonso y Josep Santamaria, que assinam as notas e o apêndice e contribuem com o rico rodapé.

Lamento não ter lido antes.

***

Necessito voltar a Beja

Em Beja, cidade do interior de Portugal, num domingo ensolarado enquanto esperava na fila de um dos poucos restaurantes abertos avistei uma cabine de telefone daquelas – antigas – vermelhas que a gente vê em filmes. Por curiosidade fui até ela. Surpresa: em vez de descobrir uma cabine de telefone deparei-me com uma Cabine de Leitura.

Havia vários livros e a orientação: os mesmos podem ser recolhidos lidos e devolvidos ou trocados.

Ali mesmo, enquanto esperava o chamado para o almoço comecei a ler “O tempo esse grande escultor”, Marguerite Yourcenar. Devorava-o quando fomos chamados para ocupar uma das mesas.

Almocei com o livro sobre a mesa e ao final fui tomado pela dúvida: leva-lo ou devolvê-lo?
Decidi leva-lo até o hotel e voltar com outro para substituí-lo. Não consegui: o carro que nos transportaria para a Espanha chegou e o motorista, um homem de mau humor, de pouca conversa e nenhum sorriso.

O livro que usaria para troca – “Menina Moça”, Bernardim Ribeiro – está comigo.

Necessito pagar a dívida com a Cabine de Leitura de Beja. Dúvida: guardo Menina Moça para a troca ou levo outro?

***

Será que foi castigo?

“O tempo esse grande escultor”, Marguerite Yourcenar, emprestado pela Cabine de Leitura de Beja foi se desmontando enquanto lia. A cada página lida seguia o suspense: quantas páginas descolariam: uma, duas, três….?

Será que o desmonte é fruto de uma sentença a que o livro foi condenado?

Ou será que eu fui o condenado, por não ter cumprido o compromisso de substituí-lo?

Enquanto leio ele se desmonta. Termino a leitura em páginas soltas.

***

Coincidência.

Termino “O tempo esse grande escultor” e começo a ler “La Nada Cotidiana”, Zoé Valdés, escritora cubana.

A coincidência não está em ler duas escritoras em seguida, mas sim encontrar uma frase de Yourcenar – “Tener miedo del futuro, eso nos facilita la muerte” – no primeiro texto do livro de Valdés.

***

Fantasmas

As ruas estão tomadas de “fantasmas” vivos. Gente que vaga com andar claudicante, suja e malcheirosa. Nos dias frios aparecem com cobertores nas costas.

Dia desses encontrei um antes das sete horas da manhã. Passamos um pelo outro e quase em uníssono no cumprimentamos:

– Bom dia.

Cada um seguiu seu caminho. Pensei: o que será um bom dia para ele? Manter-se vivo? Não ser agredido? Na próxima noite não dormir na rua? Ganhar roupa limpa e confortável?

Ou só um prato de comida?

 

Leia mais: Apontamentos – I

Dr. Rosinha é médico aposentado e ex-deputado.

Via Plural