Ao mencionar em nota recente o Estado de Calamidade como “antessala do Estado de Defesa”, Augusto Aras deixou que a garra perfurasse a luva das palavras para quem desejasse entende-lo. A sociedade entendeu o recado e o gesto. E reagiu.
Num momento em que se agrava o isolamento social do capitão que ocupa o Palácio do Planalto, à frente do governo de liquidação nacional, o Procurador Geral da República reafirmou de forma cristalina para a os brasileiros o pacto de sangue firmado com Jair Bolsonaro que – como sabemos – viabilizou sua chegada ao posto. Ao mesmo tempo, deixou claro o descompromisso com os critérios e atribuições institucionais do cargo que ocupa: “independência, honestidade, alto saber jurídico e respeito à Constituição”.
Uma retribuição, digamos, agradecida por permiti-lo “furar a fila”, saltar à frente dos três primeiros indicados e alcançar a chefia do Ministério Público.
Seis subprocuradores do Conselho Superior do Ministério Público Federal se manifestaram com uma clareza tão contundente quanto rara sobre o conteúdo da nota de Aras que, entre outras afirmações surpreendentes, decreta: “Eventuais ilícitos cometidos por autoridades da Cúpula dos Poderes da República devem ser julgadas pelo Poder Legislativo.”
A contestação dos seis subprocuradores, não tergiversa:
“A referida nota (do Procurador Geral) parece não considerar a atribuição constitucional para a persecução penal de crimes comuns e de responsabilidade da competência do Supremo Tribunal Federal, conforme o artigo 102, I, b e c da Constituição Federal, tratando-se, portanto, de função constitucional conferida ao Procurador Geral da República, cujo cargo é dotado de independência Funcional”.
Não cabe dúvida sobre a obrigação do Procurador Geral atuar como “titular da ação penal” em casos de crimes comuns cometidos por autoridades com foro no STF, seja pedindo abertura de inquéritos para investigar delitos, seja apresentando denúncias ao Tribunal. Tão vulnerável ficou a posição de Aras que se viu na contingência de tomar, nos últimos dias, a iniciativa de investigar as ações e omissões criminosas do general Eduardo Pazuello, titular do Ministério da Saúde, frente à calamidade sanitária de Manaus que abala a sociedade brasileira.
Volto à manifestação dos subprocuradores:
“No Brasil, além da debilidade da coordenação nacional de ações para o enfrentamento à pandemia, tivemos comportamento incomum de autoridades, revelado na divulgação de informações em descompasso com orientações das instituições de pesquisa científica, na defesa de tratamentos preventivos sem comprovação científica, na crítica aos esforços de desenvolvimento de vacinas, com divulgação de informações duvidosas sobre sua eficácia, de modo a comprometer a adesão ao programa de imunização da população”.
A nota dos subprocuradores, como vemos, se empenha em observar as normas do respeito protocolar para expor o que a sociedade brasileira tem diante dos seus olhos. Sem eufemismos, a conduta do Presidente da República e do seu Ministro da Saúde é uma conduta de sabotagem criminosa e explícita contra a saúde da população, cujo resultado é um acumulado de mais de 225 mil brasileiros e brasileiras mortos em menos de um ano, pela covid-19, em razão da incúria, do engodo e da incompetência.
Um crime de proporções inéditas na história do país que leva, hoje, setores empresariais e corporações midiáticas responsáveis pelo golpe de 2016, que violou o Estado Democrático de Direito, até ontem sustentáculos do governo neofascista de Jair Bolsonaro, a engrossar o clamor social que ganha corpo pelo impeachment Presidente da República. Daí o empenho plenamente exitoso do capitão em manobrar o orçamento público para eleger os presidentes da Câmara e do Senado e adquirir o salvo conduto de dois anos para preparar a campanha da reeleição.
A rigor a nota do Procurador Geral da República, Augusto Aras busca antecipar-se ao aprofundamento de uma conjugação de crises que ganha velocidade e desperta os conhecidos apetites ditatoriais do capitão, sempre disposto a lançar mão de instrumentos de força como o AI-5, lembrado em todos os momentos em que se agravam as crises que fustigam o governo quando não são produzidas por ele.
A segunda onda da pandemia da covid-19, que alcança o Brasil de forma agravada pelo negacionismo e as trapalhadas do Ministro da Saúde; a suspensão do auxílio emergencial; a elevação do desemprego que já alcança mais de 14% dos trabalhadores, agravada com a retirada de montadoras como a Ford; o corte de investimentos externos no país, apontam para um quadro de tensões sociais cada vez mais elevadas, fazem Bolsonaro mirar as Forças Armadas e o Centrão como seu último refúgio.
Os subprocuradores apontam para a “Recente declaração do Presidente da República, em clara afronta à Constituição Federal, atribuindo às Forças Armadas o inconcebível papel de decidir sobre a prevalência ou não do regime democrático em nosso país”. E alertam: “Nesse cenário, o Ministério Público Federal e, em particular o Procurador Geral da República, precisa cumprir o seu papel de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular da persecução penal devendo adotar as necessárias medidas investigativas a seu cargo – independentemente de “inquérito epidemiológico e sanitário” na esfera do próprio Órgão cuja eficácia ora está publicamente posta em cheque –, e sem excluir previamente, antes de qualquer apuração, as autoridades que respondem perante o Supremo Tribunal Federal, por eventuais crimes comuns ou de responsabilidade.” (CF, art. 102, I, b e c).
De forma inequívoca, os subprocuradores interpelam Augusto Aras com uma pergunta para a qual não apenas eles mas a sociedade civil e política do país, os defensores do Estado Democrático de Direito, os movimentos sociais dos trabalhadores exigem uma resposta: o Ministério Público investigar os delitos cometidos por Bolsonaro e Pazuello é por em risco a estabilidade institucional do país?
Outra iniciativa, agora encaminhada à Procuradoria Geral da República pelo Ministro do STF Marco Aurélio Melo, nos últimos dias é a notícia-crime apresentada pelo PDT. Para o Partido “O caso envolve possível crime de peculato, argumentando que há fortes indícios de que Bolsonaro teria desviado recursos públicos com a aquisição desmedida de itens como leite condensado, iogurte natural, refrigerantes e chicletes, sem a demonstração da necessidade das compras.” (Carta Capital, 3 de fev. 2021).
As amarrações e pactos escusos de Jair Bolsonaro devolveram o Brasil aos tempos de Geraldo Brindeiro, o “Engavetador Geral da República” de triste memória? A nota dos subprocuradores aponta para uma grave situação que se caracteriza facilmente como prevaricação.
Os cidadãos e cidadãs brasileiros devem mobilizar os meios necessários para que sua excelência o Procurador Geral da República entenda que sua atribuição constitucional é a defesa da sociedade. Mais que isso, o Ministério Público não deve servir de escudo aos desmandos de um governo inepto para enfrentar a maior calamidade sanitária da história do país e muito menos, oferecer guarida aos arreganhos autoritários de um mandatário que, quando se julga acuado, não perde oportunidade para explicitar seu descompromisso com a democracia e chantagear o país com ameaças autoritárias.
No momento em que cresce a pressão social sobre o desgoverno de Jair Bolsonaro e com ela a exigência do impeachment, o capitão Presidente corre para se blindar com o controle das mesas da Câmara e do Senado. Como se moverá o Ministério Público? Terá à sua frente um Prevaricador Geral da República?
- Pedro Tierra , Poeta, ex-Presidente da Fundação Perseu Abamo.