Democracia Socialista

Argentina: os desafios da esquerda não-kirchnerista II – Libres del Sur

Dando continuidade a série de artigos sobre a esquerda argentina que está na oposição aos governos Kirchner (o primeiro pode ser lido aqui), constituindo a Frente Ampla Progressista (FAP), publicamos agora uma análise de Humberto Tumini, secretário-geral do Movimento Libres del Sur. Nesse texto, Tumini faz uma reconstrução da história político-partidária da Argentina e ao final aponta os rumos que defende para a FAP.

http://libresdelsur.org.ar/editorial/la-reformulacion-del-sistema-politico
A reformulação do sistema político argentino
Humberto Tumini*
O  sistema político argentino entrou em crise, sem dúvida, em 2001. Primeiro nas eleições legislativas de outubro daquele ano, quando os milhões de votos perdidos, em especial pela Aliança , mas também pelo opositor justicialista , foram ao que ficou então conhecido como “voto bronca”: gente que não foi votar, o fez em branco ou anulou diretamente seu sufrágio. Logo nas massivas mobilizações de 19 e 20 de dezembro daquele ano, que deram por terra com o governo de Fernando De la Rúa, nas quais o grito dominante dos cidadãos foi “que se vão todos”; dirigido fundamentalmente as direções políticas da UCR e do PJ.
Foi tão duro o impacto sobre estes, que nas presidenciais de 2003 ambos se dividiram em três candidaturas cada um.
Desde então até agora o sistema de partidos anterior a aquela crise não se recompôs e nem conseguiu voltar ao que foi de 1983 em diante. O kirchnerismo predominou nas três eleições para presidente que houve desde então e, em todos os casos, teve um componente justicialista em sua proposta política, mas nunca pôde reagrupar o dito partido em sua totalidade; sempre uma fração do mesmo foi por fora.
O radicalismo por sua parte, como já dissemos, em 2003 se dividiu em três expressões (Carrió, López Murphy e Moreau); em 2007 precisou levar a um peronista como candidato (Lavagna) e ficou em terceiro; finalmente em 2011 foi unido, porém repetiu com Alfonsín filho a pobre performance prévia, conseguindo novamente o terceiro lugar, abaixo da recém-constituída FAP.
É evidente então que, ainda quando não termina de morrer, o sistema de partidos de nosso país com o PJ e a UCR como fatores dominantes, está esgotado. Uma das mais importantes tarefas democráticas então é reformula-lo, de acordo com a nova etapa política, econômica, social e cultural que vivemos. De tal maneira que se consiga restabelecer a credibilidade da cidadania na vida política; conseguindo paralelamente recuperar sua participação nela, que foi durante décadas e décadas um selo distintivo de nossa nação.
Diz a Constituição Nacional em seu Artigo 38: “Os partidos políticos são instituições fundamentais do sistema democrático”. Para que realmente o sejam os cidadão têm que confiar neles, aderi-los, ver neles refletidas suas ideias, interesses e anseios, confiando que podem ser representados da melhor forma. Isso está longe de ocorrer atualmente, para além de que se são mais ou menos votados, a desconfiança é o sentimento generalizado.
O bipartidarismo na nossa história
O traço dominante de nossa história política, desde que nos constituímos como nação, foi que o sistema de partidos, no qual se organizaram em cada momento os diversos setores da sociedade para defender suas ideias e interesses, esteve sempre dominado por duas grandes formações: unitários e federalistas primeiro, conservadores e radicais depois, radicais e peronistas a partir de 1946. Com outros partidos menores, muitas vezes aliados de uns ou outros; e em algum período com apenas um partido de fato: o partido militar, usado pelas minoria rica para tomar o governo e impor seus desígnios.
Nesse percurso histórico ainda se pode observar uma diferença muito importante: até 1983 esse bipartidarismo tinha – com seus altos e baixos – como característica fundamental, que um dos partidos expressava em linhas gerais as ideias das minorias locais mais poderosas, normalmente reacionárias e com interesses vinculados ao país imperialista dominante na região (Inglaterra primeiro, EUA depois). Esses foram sucessivamente os unitários, os conservadores e, com suas idas e voltas, os radicais desde a década de 40 em diante; com a exceção dos três anos de governo de Arturo Illia .
Paralelamente o outro partido em questão, tendia a representar, não sem contradições, projetos que contemplavam em importante medida os interesses da nação e seu povo. O federalismo, o radicalismo yrigoyenista  e o peronismo durante a vida de seu líder, expressaram isso em cada um dos três períodos.
Dali que a confrontação – por vezes duríssima – nesses sistemas bipartidários, se bem que sempre tinha uma parte da luta pelo poder em si mesmo, inerente a política, era essencialmente o reflexo na superestrutura de contradições reais referentes ao rumo que tomaria a Argentina ao predominar um ou outro.
Porém, a partir da saída da última ditadura, o bipartidarismo político adquiriu outro traço: o modelo de país que promoveram e levaram adiante as cúpulas do radicalismo e do justicialismo foi, em linhas gerais, o mesmo. Houve no princípio do governo de Raúl Alfosín possibilidades que expressavam – pela via de uma UCR renovada – um projeto nacional e progressista; o que seguramente seria confrontado por um PJ já esvaziado de conteúdo e posicionado a direita desde a segunda metade da década de setenta. Mas não foi assim, em 1985, através do plano Austral, o rumo governamental mudou – cercado por um contexto externo e interno adverso – e se aproximou paulatinamente do neoliberalismo. A oportunidade de então virou fumaça, e durante os anos seguintes ambos os partidos tradicionais se revezaram no governo para implementar em essência o mesmo modelo, paridos nas usinas do Consenso de Washington.
Foi então inteiramente justo levantar nesse período o lema de opor-se ao bipartidarismo peronista-radical. Aqueles que aceitaram nesse período a hegemonia de alguma das formações tradicionais (como Oscar Alende a liderança do PJ e Chaco Alvarez da UCR) levaram suas experiências políticas progressistas a derrota.
Em 2003 com a ascensão de Néstor Kirchner a presidência, pareceu abrir uma brecha para romper com o bipartidarismo retrógrado. Embora tenha chegado em uma aliança com um setor nem um pouco desprezível do PJ encabeçado por Eduardo Duhalde, estava claro que este não conduzia nem condicionava muito ao novo governo. O desprestígio ante a sociedade da direção tradicional, da qual o ex-governador de Buenos Aires formava parte, desempenhava seu papel. Ao mesmo tempo, o novo mandatário, se bem vinha da entranha do justicialismo de Santa Cruz, iniciava a gestação de uma nova força política que acompanharia seu projeto; no início um esboço nacional e popular. “Transversalidade” se chamou essa suposta tentativa, porque contemplava um recorte da maioria dos partidos existentes, agrupando o melhor de cada um em uma nova organização política; algo parecido ao “terceiro movimento histórico”, que Alfonsín postulou no início de seu mandato.
Foi o próprio Kirchner o que enterrou essa possibilidade quando no final de 2007, e tendo eleito à presidência sua esposa no primeiro turno, em um contexto econômico extremamente favorável, decidiu ser presidente do PJ. Partido que havia sido o principal responsável pela destruição do país nos anos anteriores. Evidentemente seu abandono da estratégia de constituir um novo movimento político, vinha do fato que seu projeto não era, definitivamente, transformar seriamente a Argentina no sentido progressista.
A reconstrução de outro bipartidarismo
Os partidos políticos em nosso país, e seus posicionamentos, sempre tiveram relacionados com a etapa histórica que se transitava. A luta entre unitários e federalistas tinha como substrato o modelo de nação que se pretendia construir a posteriori da independência. É sabido que após 50 anos de guerras civis (desde o conflito interior versus Buenos Aires por volta de 1820, quando Estanislao López e Pancho Ramírez amarram seus cavalos na Pirâmide de Maio, até a derrota de López Jordán em terras correntinas em 1870) a Argentina se organizou sob a hegemonia dos primeiros.
Se iniciou assim, particularmente desde a presidência do tucumano  Nicolás Avellaneda, uma nova etapa nacional, caracterizada pela implementação de um modelo agroexportador, dirigido por uma minoria de fortes traços oligárquicos vinculada a Grã-Bretanha. Após quinze anos, onde o sistema de partidos foi ocupado por dois que representavam a frações do mesmo projeto (os Autonomistas próximos aos latifundiários e os Liberais, expressão da burguesia comercial portenha), se produziu a partir de 1890 uma mudança significativa: os Conservadores, ex-Autonomistas, incorporam os restos do partido Liberal e passam a representar ao conjunto dos defensores do regime em andamento, ao mesmo tempo com a Revolução do Parque irrompe outro partido: a União Cívica Radical, que, como expressão dos novos setores sociais emergentes, confronta aqueles com um projeto mais nacional e progressista.
O golpe de 1930 que derrubou Yrigoyen é o começo do fim do modelo agroexportador, ao mudar profundamente o contexto mundial onde este havia se formado. É um impacto também sobre o sistema de partidos. Nos 15 anos que vão até 1945 o Conservador encolhe, expressão como dissemos, até esse momento, dos setores do poder; e paulatinamente o radicalismo transforma suas posições até substituir – em importante medida – a àqueles como representação política do status quo que haviam combatido. Vinculando-se de fato a UCR, ao mesmo tempo, com a estratégia dos norte-americanos, que vieram substituir ao império inglês nessa região logo após a segunda guerra mundial. Por debaixo, no econômico e social, vinha se desenhando outra Argentina, com um modelo vinculado crescentemente com a substituição de importações. A expressão política deste irrompe em 17 de outubro de 1945, e se chamará peronismo.
Com suas variantes, esse modelo produtivo se estenderá até 1976. Ainda que haja um crescente papel político dos militares nesses anos, que interrompem a ordem democrática em 1955, 1962 e 1966 –  e uma irrupção na primeira metade dos anos setenta de organizações armadas de esquerda que convulsionaram a vida política, se mantêm vigentes como partidos majoritários o peronista e o radical. Esse último, como dissemos acima, dominado por seus setores mais conservadores – salvo o período do governo de Arturo Illia – serviu como um dos canais de expressão dos setores dominantes. O peronismo, proscrito até 1973, ainda que com suas grandes contradições, foi em um grau aceitável a expressão de resistência àqueles.
Tudo isso tende a modificar-se com a feroz ditadura que assolou nossa nação de 1976 a 1983; além de introdutora de um novo modelo econômico, o neoliberal, conduzido pelos EUA, o capital financeiro internacional e seus sócios nativos.
Na recuperação da democracia, parecia que a ordem dos fatores políticos se invertia, e que no bipartidarismo nosso de então o peronismo, da mão de sua direção surgida dos anos setenta, passava a ocupar o lugar de representação dos setores do poder, e, ao revés, o radicalismo, descolado de sua direção balbinista, o portador de um projeto melhor de nação.
Não foi finalmente assim, como dissemos mais acima. Logo de resistir alguns anos, Raúl Alfonsín cedeu pouco a pouco a pressão dos grupos dominantes; e assim, para fins da década de oitenta, ambos os partidos tradicionais, PJ e UCR, passaram a ser no essencial duas expressões de um mesmo modelo que assolava a região e a nosso país em particular. A revolta de dezembro de 2001 os afetou até suas bases, e sua crise política, com seus altos e baixos se estende até nossos dias.
Não é casual isso que sucede, ocorreu quase sempre nos períodos de transição de nossa história: de 1862 a 1874, de 1930 a 1945, e de 1969 a 1976, quando estivemos passando de um modelo de nação a outro.
Atualmente o kirchnerismo expressa, na superestrutura, justamente um período de transição em vias de terminar. Ali, em 2003, era claro que o neoliberalismo como expressão dominante se retirava de cena em meio de um retumbante – e terrível – fracasso. Os quase dez anos que seguiram, os de Néstor e Cristina Kirchner, não materializaram um novo rumo nacional para além do “contado”, que muitas vezes mostrasse muito longe dos fatos. Na realidade sua prolongada administração tem sido uma mistura de continuidade da década de noventa, junto de mudanças econômicas, sociais e culturais que não conseguiram predominar sobre o velho. Um processo que mostra, como dissemos, sinais de esgotamento mais que claros.
O que virá agora? Certamente se colocará sobre a mesa o verdadeiro conflito subjacente desse período nacional. Isso é, sobre um contexto internacional favorável a Argentina pela modificação dos termos de troca do comércio exterior – e pela perda relativa do peso econômico dos EUA e Europa – por onde caminharemos. Nos inseriremos no mundo de acordo com os interesses e planos dos setores oligárquicos, ou o faremos um projeto dos que pretendem um país mais integrado, equitativo e que abarque as maiorias? Não é uma contradição menor, por certo, nem secundária, como dizia o velho Mao. Não nos esqueçamos que durante o século dezenove, quando tivemos junto a outras nações o que agora se denomina “vento de cauda”, não conseguimos sair do subdesenvolvimento das atividades primárias pela ação de uma minoria de latifundiários que nos governaram, nesses anos, em função de suas prerrogativas. Um rumo oposto ao que recorreram Canadá e Austrália, que alavancaram com diversidade e sustentabilidade suas forças produtivas e nos levam quilômetros de vantagem no bem-estar de suas sociedades.
Esse é o caminho que aparece, porém não a do discurso de Kirchner, mas a sério. Sobre esse projetos em conflito que temos que pensar o novo sistema partidário. Os setores do poder – uma parte dos quais apoiaram os Kirchner todos esse anos e outros que se opuseram – já estão vendo como unificar-se em uma expressão política que os represente, para além dos seus costumeiros conflitos e contradições. Buscam agrupar desde o PRO de Mauricio Macri, às diversas correntes do PJ que planejam suceder Cristina, com a ala conservadora da UCR. Como quem diz, propõe uma representação política “transversal” que vai do centro à direita, com peso nas classes altas e medias, e, de ser possível – como o menemismo  – também nos setores humildes. Trabalham ativamente nessa direção, para chegarem ao governo em 2015 e terminar assim, sob sua hegemonia, com a transição que se abriu no início desse século. Também buscam, com todos os recursos ao seu alcance, que aqueles que expressamos um projeto contraposto ao seu não nos unamos, que não consigamos confluir. Já se sabe, os ingleses os ensinaram: divida e reinarás.
Nós, pelo contrário, na busca justamente de derrotar essa tentativa dos regime dos ricos e abri-lo para um projeto de país progressista, que consiga transformar a Argentina nesse período histórico favorável, devemos propor a unidade em outra aliança política, bem diferente. Uma que vá do centro à esquerda, que ganhe o apoio dos setores médio e que consiga paralelamente reunir o apoio e a participação popular nela. Esse é o grande desafio que nos oferece a história, particularmente à nossa FAP. Temos que ser capazes de agrupar, com um programa transformador, em um novo pólo nacional e popular, aos mais amplos setores sucetíveis a ele. Sem estreitezas ideológicas, vamos pela construção de outro país, não esqueçamos. Objetivo enorme que requer uma grande unidade para termos possibilidades reais de conquistar a supremacia política.
Temos que visualizar o advento de um novo bipartidarismo. Que diferentemente dos conformado pelo PJ e UCR nas últimas décadas – partidos que nesse período expressaram no fundo o mesmo – agora seja a representação de dois projetos de país diferentes: o das maiorias pelo nosso lado, o das minorias pelo outro.
*Humberto Tumini
Movimiento Libres del Sur–Frente Amplio Progresista

A reformulação do sistema político argentino

Por Humberto Tumini*

O  sistema político argentino entrou em crise, sem dúvida, em 2001. Primeiro nas eleições legislativas de outubro daquele ano, quando os milhões de votos perdidos, em especial pela Aliança (1), mas também pelo opositor justicialista (2), foram ao que ficou então conhecido como “voto bronca”: gente que não foi votar, o fez em branco ou anulou diretamente seu sufrágio. Logo nas massivas mobilizações de 19 e 20 de dezembro daquele ano, que deram por terra com o governo de Fernando De la Rúa, nas quais o grito dominante dos cidadãos foi “que se vão todos”; dirigido fundamentalmente as direções políticas da UCR e do PJ.

Foi tão duro o impacto sobre estes, que nas presidenciais de 2003 ambos se dividiram em três candidaturas cada um.

Desde então até agora o sistema de partidos anterior a aquela crise não se recompôs e nem conseguiu voltar ao que foi de 1983 em diante. O kirchnerismo predominou nas três eleições para presidente que houve desde então e, em todos os casos, teve um componente justicialista em sua proposta política, mas nunca pôde reagrupar o dito partido em sua totalidade; sempre uma fração do mesmo foi por fora.

O radicalismo por sua parte, como já dissemos, em 2003 se dividiu em três expressões (Carrió, López Murphy e Moreau); em 2007 precisou levar a um peronista como candidato (Lavagna) e ficou em terceiro; finalmente em 2011 foi unido, porém repetiu com Alfonsín filho a pobre performance prévia, conseguindo novamente o terceiro lugar, abaixo da recém-constituída FAP.

É evidente então que, ainda quando não termina de morrer, o sistema de partidos de nosso país com o PJ e a UCR como fatores dominantes, está esgotado. Uma das mais importantes tarefas democráticas então é reformula-lo, de acordo com a nova etapa política, econômica, social e cultural que vivemos. De tal maneira que se consiga restabelecer a credibilidade da cidadania na vida política; conseguindo paralelamente recuperar sua participação nela, que foi durante décadas e décadas um selo distintivo de nossa nação.

Diz a Constituição Nacional em seu Artigo 38: “Os partidos políticos são instituições fundamentais do sistema democrático”. Para que realmente o sejam os cidadão têm que confiar neles, aderi-los, ver neles refletidas suas ideias, interesses e anseios, confiando que podem ser representados da melhor forma. Isso está longe de ocorrer atualmente, para além de que se são mais ou menos votados, a desconfiança é o sentimento generalizado.

O bipartidarismo na nossa história

O traço dominante de nossa história política, desde que nos constituímos como nação, foi que o sistema de partidos, no qual se organizaram em cada momento os diversos setores da sociedade para defender suas ideias e interesses, esteve sempre dominado por duas grandes formações: unitários e federalistas primeiro, conservadores e radicais depois, radicais e peronistas a partir de 1946. Com outros partidos menores, muitas vezes aliados de uns ou outros; e em algum período com apenas um partido de fato: o partido militar, usado pelas minoria rica para tomar o governo e impor seus desígnios.

Nesse percurso histórico ainda se pode observar uma diferença muito importante: até 1983 esse bipartidarismo tinha – com seus altos e baixos – como característica fundamental, que um dos partidos expressava em linhas gerais as ideias das minorias locais mais poderosas, normalmente reacionárias e com interesses vinculados ao país imperialista dominante na região (Inglaterra primeiro, EUA depois). Esses foram sucessivamente os unitários, os conservadores e, com suas idas e voltas, os radicais desde a década de 40 em diante; com a exceção dos três anos de governo de Arturo Illia (3).

Paralelamente o outro partido em questão, tendia a representar, não sem contradições, projetos que contemplavam em importante medida os interesses da nação e seu povo. O federalismo, o radicalismo yrigoyenista (4) e o peronismo durante a vida de seu líder, expressaram isso em cada um dos três períodos.

Dali que a confrontação – por vezes duríssima – nesses sistemas bipartidários, se bem que sempre tinha uma parte da luta pelo poder em si mesmo, inerente a política, era essencialmente o reflexo na superestrutura de contradições reais referentes ao rumo que tomaria a Argentina ao predominar um ou outro.

Porém, a partir da saída da última ditadura, o bipartidarismo político adquiriu outro traço: o modelo de país que promoveram e levaram adiante as cúpulas do radicalismo e do justicialismo foi, em linhas gerais, o mesmo. Houve no princípio do governo de Raúl Alfosín possibilidades que expressavam – pela via de uma UCR renovada – um projeto nacional e progressista; o que seguramente seria confrontado por um PJ já esvaziado de conteúdo e posicionado a direita desde a segunda metade da década de setenta. Mas não foi assim, em 1985, através do plano Austral, o rumo governamental mudou – cercado por um contexto externo e interno adverso – e se aproximou paulatinamente do neoliberalismo. A oportunidade de então virou fumaça, e durante os anos seguintes ambos os partidos tradicionais se revezaram no governo para implementar em essência o mesmo modelo, paridos nas usinas do Consenso de Washington.

Foi então inteiramente justo levantar nesse período o lema de opor-se ao bipartidarismo peronista-radical. Aqueles que aceitaram nesse período a hegemonia de alguma das formações tradicionais (como Oscar Alende a liderança do PJ e Chaco Alvarez da UCR) levaram suas experiências políticas progressistas a derrota.

Em 2003 com a ascensão de Néstor Kirchner a presidência, pareceu abrir uma brecha para romper com o bipartidarismo retrógrado. Embora tenha chegado em uma aliança com um setor nem um pouco desprezível do PJ encabeçado por Eduardo Duhalde, estava claro que este não conduzia nem condicionava muito ao novo governo. O desprestígio ante a sociedade da direção tradicional, da qual o ex-governador de Buenos Aires formava parte, desempenhava seu papel. Ao mesmo tempo, o novo mandatário, se bem vinha da entranha do justicialismo de Santa Cruz, iniciava a gestação de uma nova força política que acompanharia seu projeto; no início um esboço nacional e popular. “Transversalidade” se chamou essa suposta tentativa, porque contemplava um recorte da maioria dos partidos existentes, agrupando o melhor de cada um em uma nova organização política; algo parecido ao “terceiro movimento histórico”, que Alfonsín postulou no início de seu mandato.

Foi o próprio Kirchner o que enterrou essa possibilidade quando no final de 2007, e tendo eleito à presidência sua esposa no primeiro turno, em um contexto econômico extremamente favorável, decidiu ser presidente do PJ. Partido que havia sido o principal responsável pela destruição do país nos anos anteriores. Evidentemente seu abandono da estratégia de constituir um novo movimento político, vinha do fato que seu projeto não era, definitivamente, transformar seriamente a Argentina no sentido progressista.

A reconstrução de outro bipartidarismo

Os partidos políticos em nosso país, e seus posicionamentos, sempre tiveram relacionados com a etapa histórica que se transitava. A luta entre unitários e federalistas tinha como substrato o modelo de nação que se pretendia construir a posteriori da independência. É sabido que após 50 anos de guerras civis (desde o conflito interior versus Buenos Aires por volta de 1820, quando Estanislao López e Pancho Ramírez amarram seus cavalos na Pirâmide de Maio, até a derrota de López Jordán em terras correntinas em 1870) a Argentina se organizou sob a hegemonia dos primeiros.

Se iniciou assim, particularmente desde a presidência do tucumano (5) Nicolás Avellaneda, uma nova etapa nacional, caracterizada pela implementação de um modelo agroexportador, dirigido por uma minoria de fortes traços oligárquicos vinculada a Grã-Bretanha. Após quinze anos, onde o sistema de partidos foi ocupado por dois que representavam a frações do mesmo projeto (os Autonomistas próximos aos latifundiários e os Liberais, expressão da burguesia comercial portenha), se produziu a partir de 1890 uma mudança significativa: os Conservadores, ex-Autonomistas, incorporam os restos do partido Liberal e passam a representar ao conjunto dos defensores do regime em andamento, ao mesmo tempo com a Revolução do Parque irrompe outro partido: a União Cívica Radical, que, como expressão dos novos setores sociais emergentes, confronta aqueles com um projeto mais nacional e progressista.

O golpe de 1930 que derrubou Yrigoyen é o começo do fim do modelo agroexportador, ao mudar profundamente o contexto mundial onde este havia se formado. É um impacto também sobre o sistema de partidos. Nos 15 anos que vão até 1945 o Conservador encolhe, expressão como dissemos, até esse momento, dos setores do poder; e paulatinamente o radicalismo transforma suas posições até substituir – em importante medida – a àqueles como representação política do status quo que haviam combatido. Vinculando-se de fato a UCR, ao mesmo tempo, com a estratégia dos norte-americanos, que vieram substituir ao império inglês nessa região logo após a segunda guerra mundial. Por debaixo, no econômico e social, vinha se desenhando outra Argentina, com um modelo vinculado crescentemente com a substituição de importações. A expressão política deste irrompe em 17 de outubro de 1945, e se chamará peronismo.

Com suas variantes, esse modelo produtivo se estenderá até 1976. Ainda que haja um crescente papel político dos militares nesses anos, que interrompem a ordem democrática em 1955, 1962 e 1966 –  e uma irrupção na primeira metade dos anos setenta de organizações armadas de esquerda que convulsionaram a vida política, se mantêm vigentes como partidos majoritários o peronista e o radical. Esse último, como dissemos acima, dominado por seus setores mais conservadores – salvo o período do governo de Arturo Illia – serviu como um dos canais de expressão dos setores dominantes. O peronismo, proscrito até 1973, ainda que com suas grandes contradições, foi em um grau aceitável a expressão de resistência àqueles.

Tudo isso tende a modificar-se com a feroz ditadura que assolou nossa nação de 1976 a 1983; além de introdutora de um novo modelo econômico, o neoliberal, conduzido pelos EUA, o capital financeiro internacional e seus sócios nativos.

Na recuperação da democracia, parecia que a ordem dos fatores políticos se invertia, e que no bipartidarismo nosso de então o peronismo, da mão de sua direção surgida dos anos setenta, passava a ocupar o lugar de representação dos setores do poder, e, ao revés, o radicalismo, descolado de sua direção balbinista, o portador de um projeto melhor de nação.

Não foi finalmente assim, como dissemos mais acima. Logo de resistir alguns anos, Raúl Alfonsín cedeu pouco a pouco a pressão dos grupos dominantes; e assim, para fins da década de oitenta, ambos os partidos tradicionais, PJ e UCR, passaram a ser no essencial duas expressões de um mesmo modelo que assolava a região e a nosso país em particular. A revolta de dezembro de 2001 os afetou até suas bases, e sua crise política, com seus altos e baixos se estende até nossos dias.

Não é casual isso que sucede, ocorreu quase sempre nos períodos de transição de nossa história: de 1862 a 1874, de 1930 a 1945, e de 1969 a 1976, quando estivemos passando de um modelo de nação a outro.

Atualmente o kirchnerismo expressa, na superestrutura, justamente um período de transição em vias de terminar. Ali, em 2003, era claro que o neoliberalismo como expressão dominante se retirava de cena em meio de um retumbante – e terrível – fracasso. Os quase dez anos que seguiram, os de Néstor e Cristina Kirchner, não materializaram um novo rumo nacional para além do “contado”, que muitas vezes mostrasse muito longe dos fatos. Na realidade sua prolongada administração tem sido uma mistura de continuidade da década de noventa, junto de mudanças econômicas, sociais e culturais que não conseguiram predominar sobre o velho. Um processo que mostra, como dissemos, sinais de esgotamento mais que claros.

O que virá agora? Certamente se colocará sobre a mesa o verdadeiro conflito subjacente desse período nacional. Isso é, sobre um contexto internacional favorável a Argentina pela modificação dos termos de troca do comércio exterior – e pela perda relativa do peso econômico dos EUA e Europa – por onde caminharemos. Nos inseriremos no mundo de acordo com os interesses e planos dos setores oligárquicos, ou o faremos um projeto dos que pretendem um país mais integrado, equitativo e que abarque as maiorias? Não é uma contradição menor, por certo, nem secundária, como dizia o velho Mao. Não nos esqueçamos que durante o século dezenove, quando tivemos junto a outras nações o que agora se denomina “vento de cauda”, não conseguimos sair do subdesenvolvimento das atividades primárias pela ação de uma minoria de latifundiários que nos governaram, nesses anos, em função de suas prerrogativas. Um rumo oposto ao que recorreram Canadá e Austrália, que alavancaram com diversidade e sustentabilidade suas forças produtivas e nos levam quilômetros de vantagem no bem-estar de suas sociedades.

Esse é o caminho que aparece, porém não a do discurso de Kirchner, mas a sério. Sobre esse projetos em conflito que temos que pensar o novo sistema partidário. Os setores do poder – uma parte dos quais apoiaram os Kirchner todos esse anos e outros que se opuseram – já estão vendo como unificar-se em uma expressão política que os represente, para além dos seus costumeiros conflitos e contradições. Buscam agrupar desde o PRO de Mauricio Macri, às diversas correntes do PJ que planejam suceder Cristina, com a ala conservadora da UCR. Como quem diz, propõe uma representação política “transversal” que vai do centro à direita, com peso nas classes altas e medias, e, de ser possível – como o menemismo (6) – também nos setores humildes. Trabalham ativamente nessa direção, para chegarem ao governo em 2015 e terminar assim, sob sua hegemonia, com a transição que se abriu no início desse século. Também buscam, com todos os recursos ao seu alcance, que aqueles que expressamos um projeto contraposto ao seu não nos unamos, que não consigamos confluir. Já se sabe, os ingleses os ensinaram: divida e reinarás.

Nós, pelo contrário, na busca justamente de derrotar essa tentativa dos regime dos ricos e abri-lo para um projeto de país progressista, que consiga transformar a Argentina nesse período histórico favorável, devemos propor a unidade em outra aliança política, bem diferente. Uma que vá do centro à esquerda, que ganhe o apoio dos setores médio e que consiga paralelamente reunir o apoio e a participação popular nela. Esse é o grande desafio que nos oferece a história, particularmente à nossa FAP. Temos que ser capazes de agrupar, com um programa transformador, em um novo pólo nacional e popular, aos mais amplos setores sucetíveis a ele. Sem estreitezas ideológicas, vamos pela construção de outro país, não esqueçamos. Objetivo enorme que requer uma grande unidade para termos possibilidades reais de conquistar a supremacia política.

Temos que visualizar o advento de um novo bipartidarismo. Que diferentemente dos conformado pelo PJ e UCR nas últimas décadas – partidos que nesse período expressaram no fundo o mesmo – agora seja a representação de dois projetos de país diferentes: o das maiorias pelo nosso lado, o das minorias pelo outro.

*Humberto Tumini é secretário-geral do Movimiento Libres del Sur–Frente Amplio Progresista.  

Tradução Iuri Farias Codas. Original aqui

1. Refere-se a “Aliança por Trabalho, Justiça e Educação”, coalizão da União Cívica Radical (UCR) e Frente País Solidário, base de sustentação do presidente Fernando de la Rua (N.T.)
2. Refere-se ao Partido Justicialista (PJ), peronista. (N.T.)
3. Presidente entre 1963 e 1966 (N.T.)
4. Refere-se a Hipólito Yrigoyen, fundador da UCR e duas vezes presidente da Argentina, 1916-1922 e 1928-1930 (N.T.)
5. Refere-se a Província de Tucumán, interior da Argentina;
6. Refere-se a Carlos Menem, presidente da Argentina entre 1989 e 1999 pelo PJ, principal implementador do projeto neoliberal no país.