Formalmente, a escravidão foi extinta no Brasil em 13 de maio de 1888 – o último país, aliás, a abolir essa forma de exploração de mão de obra nas Américas. Mas, como mostraram historiadores como Eric Williams, o capitalismo pode recriar relações de trabalho arcaicas de modo a potencializar seus lucros. No Brasil, há muito a existência de trabalho em condições análogas à servidão é denunciada no campo. Mas, igualmente grave e pouco conhecida, é a existência de trabalho escravo em grandes metrópoles como São Paulo. E é justamente na capital econômica e financeira do país que empresas de grifes da área têxtil se valem da exploração de imigrantes, a maioria latino-americana, que trabalham em condições semelhantes à dos operários do século XIX, retratados por Marx, Victor Hugo e Émile Zola.
No último dia 19 de junho, por exemplo, o Ministério do Trabalho-Superintendência Regional de São Paulo, acompanhado por parlamentares integrantes da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Trabalho Escravo, à qual tenho a honra de presidir, resgataram um grupo de oito pessoas vindas da Bolívia de condições de trabalho análogas à escravidão. Além de indícios de tráfico de pessoas, comprovou-se que as vítimas estavam sendo submetidas a jornadas de trabalho exaustivas, servidão por dívida, cerceamento do direito de ir e vir e a condições de trabalho degradantes. Esse grupo de bolivianos costurava para a marca sul-coreana Talita Kume, cuja sede fica no Bom Retiro, no centro de São Paulo.
Existe um grupo criminoso organizado no setor têxtil em São Paulo. Nos últimos anos, vários casos vieram à tona. Em maio de 2011, ironicamente no mesmo dia em que a grife de roupas femininas Gregory lançava a sua coleção Outono-Inverno 2012, uma equipe do Ministério do Trabalho na zona leste paulista libertava 23 pessoas, todas bolivianas, que trabalhavam para a empresa em condições de privação de liberdade, jornada exaustiva, servidão por dívida e ambiente de trabalho degradante. Em 2010, a Defensoria Pública da União em São Paulo ajuizou uma ação civil pública contra a empresa de vestuário Collins, também envolvida em flagrante de trabalho análogo à escravidão. Em anos anteriores, empresas como a Argonaut, das Casas Pernambucanas, Marisa, C&A e 775 também foram flagradas em práticas semelhantes.
Está comprovado que são setores dinâmicos da economia nacional que alimentam o trabalho escravo. É uma lógica perversa, na qual empresas ultramodernas contribuem para a reprodução de práticas arcaicas ao contratarem empresas terceirizadas que exploram trabalhadores em condições análogas às dos escravos. É preciso aprofundar o processo de fiscalização e responsabilizar as grandes empresas que alimentam esse mecanismo, pois somente elas podem interromper este círculo vicioso, mudando suas práticas e exigindo das empresas terceirizadas contratadas por elas observância à lei e respeito aos direitos dos trabalhadores.
A erradicação do trabalho escravo passa então pelo cumprimento das leis existentes, mas isso não é suficiente para acabar com essa exploração. Punições como multas, corte de crédito ao empresário infrator e apreensões das mercadorias nas oficinas de costura não inibem totalmente a prática do trabalho escravo. Pior: quando flagrados, os infratores simplesmente pagam os direitos trabalhistas antes sonegados e tudo volta ao “normal”. E a impunidade, como se sabe, é o que alimenta a repetição dos crimes.
É preciso, portanto, endurecer a legislação e aumentar a fiscalização. Depois do que viu em São Paulo, a CPI do Trabalho Escravo tem mais ferramentas para propor leis e medidas que colaborem com a erradicação dessa degradação do trabalho humano.
(*) Cláudio Puty é deputado federal (PT-PA), presidente da CPI do Trabalho Escravo e militante da DS.