Por Estevão Cruz *
Da privatização à democratização das políticas educacionais
Durante os governos FHC resistimos ao sucateamento da educação básica, ao desmonte e privatização da universidade pública, à expansão vigorosa do ensino superior privado e ao desempenho pífio da pesquisa. Ao longo dos últimos anos de governos democrático-populares as políticas educacionais passaram por uma alteração significativa e está se constituindo uma transição em disputa para um novo padrão.
De modo geral, durante o último período o balanço é altamente positivo para uma perspectiva de transição nas políticas educacionais. O sentido público das universidades começou a ser recuperado; a forte expansão da rede de universidades federais e do ensino técnico iniciou um processo importante de democratização que está popularizando o acesso à educação; o financiamento se expandiu, com triplicação do orçamento do MEC, FUNDEB, etc. Todo esse processo passou a ser construído de forma articulada e sistêmica, através do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE).
No entanto, esse balanço não permite o arrefecimento das lutas, que continuam sendo necessárias para superar graves limites ainda existentes. Ainda que tenha aumentado, o financiamento é estruturalmente baixo; a expansão das universidades e escolas técnicas exige o investimento na qualidade do ensino; os professores continuam pouco qualificados e valorizados; a juventude ainda está majoritariamente excluída do ensino médio de qualidade e consequentemente do ensino superior; as políticas de assistência estudantil são pouco consistentes e não absorveram as demandas inerentes ao novo perfil de estudantes; as estruturas institucional, acadêmica e curricular ainda refletem as reformas do período da ditadura, aprofundadas sob o neoliberalismo; entre outras questões fundamentais.
A agenda da educação continua fortemente vinculada às estratégias de desenvolvimento nacional. Essa vinculação tende a se intensificar no próximo período. A disputa, tanto do projeto de desenvolvimento, quanto dos objetivos das políticas educacionais, continuarão se dando fortemente entre os setores representantes do grande capital financeiro e os que lutam pelo avanço da revolução democrática.
A luta por um Plano Nacional de Educação
A trajetória do Plano Nacional de Educação (PNE) é turbulenta e marcada pela disputa com os setores privatistas e mercantis da educação. A pressão do movimento social de educação fez com que, a partir da LDB 1996, a aprovação de um PNE ganhasse força e em 1997 fosse apresentado o “PNE da sociedade”. Esse plano tramitou até a sua aprovação em 2001, quando foi emendado com as propostas do governo FHC. Em seguida, as propostas da sociedade, particularmente a que obrigava o Estado a investir 7% do PIB em educação, sofreram veto presidencial.
Durante os governos Lula o movimento social de educação se reorganizou através dos processos de conferências nacionais. Primeiro a CONEB (Conferência Nacional da Educação Básica) e depois a CONAE (Conferência Nacional da Educação). Esse processo foi fundamental para rearticular o programa do movimento educacional brasileiro, de modo a incidir na disputa de rumos da educação durante esse período.
O resultado programático mais importante da CONAE foi o de organizar o movimento educacional em torno da criação do Sistema Nacional de Educação. O novo PNE deveria criar as bases para a construção desse sistema. Do ponto de vista da articulação política, o saldo foi a criação do Fórum Nacional de Educação (FNE), responsável por encaminhar as deliberações da CONAE e acompanhar a construção do novo plano.
Estamos caminhando para o final das discussões sobre o Projeto de Lei 8035/2010, que trata do novo PNE, na Câmara dos Deputados. O PL foi enviado pelo governo Lula ao congresso no final de 2010 e é bem mais conciso do que o PNE anterior, o que facilita o acompanhamento das suas metas pela sociedade civil. No entanto, refletiu de modo bastante insuficiente as deliberações da CONAE. O principal problema é a meta 20, relacionada ao investimento, em que o governo propõe investir apenas 7% do PIB ao final dos 10 anos de vigência. A consequência desse processo (de mobilização social, por um lado, e de respostas insuficientes, por outro) foi a formulação de quase 3000 emendas ao texto original e cerca de outras 400 ao relatório do Dep. Ângelo Vanhonni (PT-PR).
No nosso entendimento, o novo PNE deveria responder aos desafios de: continuar a ampliação da educação com metas de universalização e qualidade; alterar estruturalmente o patamar de financiamento; dar condições para a criação do Sistema Nacional de Educação, formulado pela CONAE, reforçando a sintonia do desenvolvimento da educação com um projeto democrático e popular para o país.
A partir disso, a UNE organizou emendas relativas principalmente ao financiamento (10% do PIB e 50% do Pré-sal pra educação), à expansão do ensino superior público e presencial, à assistência estudantil (fundo público, creches, PNAES), à gestão democrática e regulamentação do setor privado e às políticas afirmativas.
Todo o processo de mobilização e articulação que se seguiu foi feito com bastante unidade entre as entidades do movimento educacional. A UNE assumiu um papel muito importante. A nossa pressão institucional combinada com a ocupação das ruas, em diversas manifestações ao lado de outras entidades (CNTE, FASUBRA, CONTEE, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, PROIFES, CUT, ANPED, etc) foi decisiva para produzir avanços ao projeto do governo e continua sendo fundamental para o enfrentamento com o setor privado.
As prioridades para o Ensino Superior
De modo geral, o relatório final apresentado pelo Dep. Ângelo Vanhonni, a ser votado a partir do dia 29/05, absorveu boa parte do debate acumulado pelo movimento educacional. A posição do Fórum Nacional de Educação de insistir no diálogo, buscando aproximar o projeto das resoluções da CONAE, foi decisiva para o aprimoramento do relatório. Do ponto de vista das prioridades apresentadas pela UNE, o relatório se aproximou dos nossos anseios, embora os limites relativos ao financiamento não permitam que comemoremos plenamente.
Em relação à regulamentação do setor privado, o relatório não foi explícito, mas considerou a criação do Sistema Nacional de Educação, que terá entre suas prerrogativas a regulamentação da educação pública e privada. O relatório também absorveu ao conjunto de estratégias as emendas relativas à assistência estudantil e às políticas afirmativas.
Frente ao projeto do governo, a meta 12, que trata do Ensino Superior, passou a indicar um percentual mais elevado para a participação do setor público (atualmente em 25% das matrículas) e reduziu o peso da EAD, priorizando a expansão do ensino presencial como estratégia fundamental. A redação da meta, no entanto, não ampliou o percentual de expansão, mantendo a orientação de chegarmos ao acesso de 50% na taxa bruta de matrículas (que considera o total de jovens) e de 33% na taxa líquida (que considera apenas os/as jovens entre 18 a 24 anos). Considerando os cálculos disponibilizados, o relatório propõe que o país alcance ao final dos 10 anos, pelo menos, o equivalente a 12 milhões de jovens no ensino superior, sendo 3,85 milhões no setor público (32%) e 8,15 milhões no setor privado (68%). Embora dobrar o número de matrículas seja um esforço importante (em 2009 eram cerca de 6 milhões de matrículas), é ainda muito abaixo do necessário.
O problema crucial continua sendo o do financiamento. O relatório apresentou um patamar de 7,5% no investimento público direto, ao contrário dos 10% defendido por todo movimento social e por instituições de pesquisa como o IPEA. A impossibilidade de chegarmos a esse patamar tem duas consequências para a educação brasileira: 1) não realizaremos o esforço de expansão necessário e 2) não garantiremos um nível de qualidade necessário para essa expansão. O governo justifica a rigidez por conta das consequências da crise sobre o país e por conta da incapacidade de execução orçamentária pelos municípios. Essa motivação da equipe econômica do governo reflete uma incompreensão do PNE como uma política de estado e a força do capital financeiro sobre a estruturação do orçamento público.
PNE Já! 10% do PIB e 50% do Pré-Sal para a educação!
Os próximos dias serão de intensa articulação em torno da aprovação do PNE e as definições sobre o financiamento terão um caráter mais dramático. Não desconsideramos em nenhum momento os limites desse novo PNE. Pelo contrário, identificamos esses limites aos desafios da luta política no país e suas consequências sobre a consolidação de um novo caminho para as políticas educacionais no país.
Acreditamos, contudo, que é preciso reforçar a opinião de que o PNE deve ser aprovado o quanto antes. A proposta de constituir diretrizes para nortear a ação do Estado no campo da educação ainda não foi completamente assimilada pela sociedade como se pode ver e será bastante fragilizada caso isso não ocorra. A sua aprovação, por outro lado, reforçará a agenda do movimento educacional, elevando o patamar de disputa ao incorporar conquistas importantes dos últimos anos como políticas de estado.
Para isso, é importante reposicionar a luta pelos 10% do PIB. Essa é uma bandeira histórica do movimento educacional e uma das principais resoluções da CONAE. A UNE está completamente identificada com essa luta e, nesse sentido, busca formas de concretizar a ampliação do financiamento da educação. A proposta de se investir 50% do Fundo Social do Pré-Sal na educação, lançada pela UNE quando da descoberta do petróleo na camada pré-sal, vem ganhando força, sendo assimilada pelo relatório do PNE e por outros projetos de lei em tramitação. Entendemos que a aprovação imediata do PNE acompanhada da destinação desses recursos para a educação será fundamental para sairmos do impasse a que chegamos, no qual a luta pelo melhor PNE pode significar a própria inexistência do plano.
Por fim, a luta por uma educação de qualidade, transitando entre um projeto voltado para o desenvolvimento do capital e outro voltado para o trabalho e para a democracia, não se esgotará com a aprovação do PNE. É preciso enraizar essas políticas por meio dos planos estaduais e municipais de educação e fortalecer o papel do Fórum Nacional de Educação e da Conferência Nacional de Educação no acompanhamento e formulação das políticas educacionais. A próxima CONAE, prevista para o início de 2014, será um espaço privilegiado de balanço e novas proposições por parte do movimento educacional.
* Estevão Cruz é diretor de Políticas Educacionais e representante da UNE no Fórum Nacional de Educação.