A ECONOMIA FEMINISTA E REPRODUÇÃO SOCIAL: UMA ANÁLISE CONCEITUAL E HISTÓRICA DOS TRABALHOS REPRODUTIVOS NÃO REMUNERADOS E DE CUIDADOS

Introdução

O termo trabalho de cuidados vem sendo amplamente utilizado, tanto na esfera política, nos planos de governos, pelos organismos internacionais, como também no âmbito acadêmico e dos movimentos sociais e feministas. A questão dos cuidados ganhou ainda mais destaque com a pandemia da covid-19, em que nos diversos países do mundo, devido ao fechamento principalmente dos serviços voltados aos cuidados de crianças, muitas mulheres foram forçadas a saírem do mercado de trabalho e permanecerem em casa exercendo estas atividades, somada a sobrecarga de trabalho doméstico. Ou seja, a pandemia explicitou a importância econômica e social destas atividades ao mesmo tempo em que evidenciou os cuidados como um direito individual e uma responsabilidade coletiva.

CRISTINA VIECELLI é economista, mestra e doutora em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

MARILANE TEIXEIRA é economista, doutora em Economia pela Unicamp, professora e pesquisadora do CESIT/IEUnicamp, assessora sindical e estudiosa das relações econômicas e do trabalho. É membro da Coordenação Nacional da DS.

Apesar da ampla utilização, o termo cuidados é utilizado muitas vezes como sinônimo de trabalhos reprodutivos, reprodução social, trabalhos não remunerados. A ideia de reprodução social inclui naturalmente a reprodução de toda a força de trabalho, incluindo as pessoas dependentes e a sua incorporação contribuiu para construir caminhos para a reflexão da ideia da dependência até então abordadas apenas pelas filósofas e psicólogas (Carrasco; Borderias. Torn, 2011, p. 53). É importante notar ainda, que a crítica à divisão sexual do trabalho e a subordinação das mulheres aos trabalhos não remunerados é bastante antiga, e incorporada de forma diferente pelas diversas correntes do pensamento feminista. Mas é a partir do feminismo que os trabalhos de cuidados são incorporados ao processo de reprodução social e as economistas feministas o fazem a partir dos anos de 1990 e ainda de forma bastante restrita.

Uma das principais críticas do pensamento feminista à ciência econômica é o fato de, ao longo da história do pensamento econômico, o trabalho exercido de forma não remunerada ter sido excluído dos seus sistemas de análise. Ainda que os economistas clássicos e marxistas reconheçam a importância da reprodução social como condição de assegurar a manutenção do sistema, a teoria não os incorpora como fatores fundamentais para explicar as dinâmicas econômicas e sociais.

Já no século XIX, o movimento feminista, principalmente de raiz liberal, estabelece críticas à exclusão feminina dos direitos de cidadania e ao fato das mulheres serem relegadas à esfera doméstica. As teóricas feministas reivindicavam a igualdade de direitos entre homens e mulheres e o acesso ao mercado de trabalho, e acusavam o contrato de casamento como forma de subjugação das mulheres ao domínio masculino.

Já nos anos 1960/70 os estudos sobre trabalhos reprodutivos ganham maior visibilidade política. Uma de suas dimensões trata da reprodução social (RS) ao reconhecer nesta atividade a sua importância na produção de mercadorias e reprodução da força de trabalho. O conceito de reprodução social ganha destaque neste contexto por integrar os de trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, sem estabelecer hierarquias.

Ao longo dos anos, a partir das reivindicações das diversas correntes do movimento feminista, as discussões acerca da reprodução do trabalho foi ganhando maior institucionalização, e sendo inclusive incorporada pelas estatísticas oficiais. Os termos “trabalhos não remunerados” e “afazeres domésticos e de cuidados” passaram a ser utilizados na definição de políticas voltadas à valorização das atividades não monetizadas. As pesquisas de uso do tempo passaram a ser instrumentos importantes para a elaboração das políticas públicas e incorporação dos trabalhos não remunerados em contas satélites.

Podemos notar, neste sentido, que os conceitos de trabalhos reprodutivos, trabalhos não remunerados, afazeres domésticos e de cuidados convergem e divergem. Ainda que tratem do mesmo objeto, ou seja, os trabalhos voltados à manutenção da vida, os diferentes olhares estão relacionados com os objetivos a que se propõe.

Por outro lado, a existência de uma crise de cuidados recrudesce no capitalismo atual (Pérez Orozco, 2012) já que parte importante dos trabalhos de cuidados realizados pelas mulheres, invisibilizados na sociedade e materializados por meio uma divisão sexual do trabalho tradicional, altera-se, trazendo à tona conflitos antes latentes. Os elementos centrais dessa crise dizem respeito à entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, à alteração nos modelos de famílias com diminuição do número de filhos e, de maneira mais recente, ao envelhecimento da população.

A partir deste preâmbulo, o objetivo deste capítulo é resgatar o debate sobre reprodução social,e identificar as principais diferenças conceituais entre a teoria de reprodução social, os trabalhos não remunerados e de cuidados e sua utilização no âmbito políticoe dos movimentos sociais. Buscamos também resgatar a crítica às escolas econômicas pela ausência de uma abordagem que integre o trabalho das mulheres na reprodução da força de trabalho. Além disso, mostraremos a evoluçãodo conceito de reprodução social com a incorporação da dimensão dos cuidados em diálogo com outras autoras fora do campo da economia feminista e a atualidade do debate econômico sobrea reprodução social. Por fim, faremos uma análise das principais políticas que estão sendo adotadas nos países da América Latina a fim de fortalecer os sistemas de relações de cuidados.

O capítulo se divide em três partes, além desta introdução e da conclusão. Na primeira, iremos discorrer sobre o conceito de reprodução social e como este foi incorporado na perspectiva feminista de raiz marxista. Na segunda seção analisaremos as críticas das feministas à não incorporação dos trabalhos das mulheres na economia, e na terceira trataremos sobre a questão atual dos cuidados e influência nas políticas públicas nos países da América Latina.

O CONCEITO DE REPRODUÇÃO SOCIAL E A CRÍTICA AO SISTEMA CAPITALISTA

O conceito de reprodução social remonta às lutas pela visibilização dos trabalhos femininos que ocorreram principalmente nos anos 1960 e 1970. Estas foram protagonizadas pelas correntes feministas marxistas, que criticavam a dupla opressão feminina no sistema capitalista.

Dentro da teoria feminista de raiz marxista o conceito de reprodução social se refere aos trabalhos, desempenhados majoritariamente pelas mulheres, e relacionados à reprodução de pessoas em um aspecto amplo, referindo-se tanto aos cuidados com o bem-estar físico, quanto às emoções e relações interpessoais (Picchio, 2005). Há uma interdependência dos processos de produção de mercadorias e de reprodução e manutenção da força de trabalho, na medida em que os trabalhos ligados ao mercado produzem bens que são transformados pelos trabalhos reprodutivos – por exemplo para cozinhar, limpar a casa etc. – e os trabalhos reprodutivos, por sua vez, reproduzem a força de trabalho a ser utilizada no sistema mercantil. Segundo Picchio:

O processo de reprodução requer mercadorias, e, por conseguinte, trabalho assalariado necessário para produzi-las, mas também, o trabalho não remunerado necessário para transformá-las para seu uso efetivo. Por exemplo, o trabalho necessário para cozinhar alimentos, lavar a roupa, limpar a casa. A porção deste trabalho “doméstico” que não recebe uma retribuição monetária(a maior parte deste trabalho), é geralmente ignorada no sistema econômico e nos sistemasde contas nacionais. Mais ainda, o processo de reprodução social, relativo à reprodução de pessoas, e não de objetos, requer também o trabalho de cuidar dos corpos, das emoções e das relações. Este trabalho também é invisível quando não é retribuído monetariamente (2005, p. 4, tradução nossa).¹

1. 1 No original: “El proceso de reproducción requieremercancías y, por lo tanto, el trabajoasalariado necesario para producirlas, pero también el trabajo no remunerado necesario para transformarlas para su uso efectivo. Por ejemplo, el trabajo necesario para cocinar alimentos, lavar la ropa, limpiar la vivienda. La porción de este trabajo “domestico” que no percibe una retribución monetaria (la mayor parte de este trabajo), es generalmente ignorada en el análisis del sistema económico y en los sistemasde contas nacionales. Más aún, el proceso de reproducción social, relativo a la reproducción de personas y no de objetos, requiere también del trabajo de cuidar los cuerpos, las emociones y las relaciones. Este trabajo también es invisible cuándo no es retribuido monetariamente” (Piccнio, 2005, p. 4).

A perspectiva feminista de raiz marxista amplia a visão da reprodução social para além da reprodução e manutenção dos indivíduos aptos a vender sua força de trabalho no mercado. Os trabalhos reprodutivos destinam-se também à manutenção dos indivíduos que, por diferentes motivos, não integram a força de trabalho assalariada, seja por estarem fora da força de trabalho (estudantes, aposentados), terem alguma doença ou incapacidade física e/ou mental, ou trabalharem exclusivamente para os trabalhos reprodutivos, dentre outros motivos.

Vogel (2000) distingue três diferentes formas de reprodução da força de trabalho: as atividades diárias, destinadas a restaurar as energias para o retorno ao mercado de trabalho; as mesmas atividades, mas destinadas à manutenção das pessoas que estão fora do mercado de trabalho; por fim, a produção de novas pessoas que irão substituir o trabalhador que morre ou não vende mais sua força de trabalho.

Bakker e Gill (2003, p. 32) analisam a reprodução social a partir de sua relação com os níveis micro (indivíduo), meso (instituições) e macro (formas de estado e a organização mundial). Esses níveis interagem com a ordem de gênero interligada com a ordem mundial. Existem três principais definições relacionadas à reprodução social, segundo as autoras: a reprodução biológica das espécies, em que se encontram condições como as mulheres gestam as crianças em diferentes sociedades; a reprodução da força de trabalho, relacionada aos trabalhos de subsistência, mas também educação e treinamento e, por fim, a reprodução das provisões e de cuidados, que podem ser ofertadas somente pelas famílias, ser totalmente socializadas, ou também podem expressar uma combinação de ambas. Estas dimensões se relacionam com a ordem de gênero que formam e são formadas pela ordem mundial.

Bakker e Gill (2003), também, se preocupam em entender as particularidadesrelacionadas às diferentes regiões domundo e, também, como elas interagem dentro dos níveis macro, meso e micro no sistema capitalista globalizado. Por exemplo, o aumento da mercantilização da força de trabalho feminina, por um lado, levou à maior autonomia pessoal das mulheres e controle sobre as decisões de suas famílias, mas, por outro, intensificou o tempo de trabalho e as múltiplas responsabilidades e tarefas.

Ainda dentro da análise marxista, Saffioti (2013) indica que o sistema capitalista se apropria de estruturas anteriores, como patriarcado e racismo, para justificar a ocupação de espaços marginalizados dentro da esfera produtiva por determinados grupos de pessoas. A força de trabalho feminina, por consequência, seria relegada a ocupações vulneráveis e semiocupações. Mesmo em países industrializados, o trabalho feminino, em uma fase anterior, era absorvido majoritariamente nos setores primário e secundário do sistema produtivo e, hoje, esse trabalho é ressignificado e avança para o setor terciário, mas sempre recebendo menores salários e estando mais propenso a demissões.

O modo capitalista de produção não faz apenas explicitar a natureza dos fatores que promovem a divisão da sociedade em classes sociais; lança a mão da tradição para justificar a marginalização efetiva ou potencial de certos setores da população do sistema produtivo de bens e serviços. Assim é que o sexo, fator de há muito selecionado como fonte de inferiorização social da mulher, passa a interferir de modo positivo para a atualização da sociedade competitiva, na constituição das classes sociais. (Saffioti, 2013, p. 66)

O sistema capitalista convive com outras formas de produção, não capitalistas, ocupadas pela população de baixa renda. Um exemplo é o emprego doméstico, e outras categorias de trabalho de

baixa qualificação e remuneração, em especial no âmbito rural, mas também urbano (Saffioti, 1978). A população de baixa renda, dessa forma, flutuaria entre as atividades capitalistas e não capitalistas, a depender da conjuntura econômica em que o sistema se encontra:

Nas formações sociais capitalistas, como é sabido, o modo de produção capitalista coexiste com as formas não capitalistas de trabalho. Trata-se de coexistência dinâmica e integrada. A força de trabalho, em sua integridade, não se fixa parte em atividades organizadas em moldes capitalistas e parte em funções econômicas não capitalistas. Há mobilidade de parcela da mão de obra que se desloca das atividades não capitalistas para as capitalistas em momentos de expansão do capitalismo e das últimas para as primeiras em momentos de retração deste sistema produtivo (Safiotti, 1978, p. 183-184).

As mulheres, por consequência da sobrecarga dos trabalhos reprodutivos, estariam vulneráveis a compor o exército industrial de reservas, sendo esse fator determinante para a pauperização feminina. A exploração do trabalho doméstico não remunerado, especialmente das mulheres que vivem em uma situação semiproletarizada, possibilita aos capitalistas a expropriação da mais valia de duas formas: com a diminuição do salário total para a classe trabalhadora e com a exploração do trabalho de reprodução não remunerado (Danaway, 2014).

Partindo da teoria marxista do valor trabalho, a Teoria da Reprodução Social (TRS) analisa as relações existentes no sistema capitalista entre a produção de mercadorias e reprodução da mercadoria força de trabalho, em particular, de forma integrada e interagindo sistematicamente. Também analisa como essas relações

interagem com os diferentes tipos de opressões e explorações que estruturam o sistema capitalista e se modificam histórica e geograficamente. A teoria econômica e as estatísticas oficiais em geral excluem os trabalhos voltados à reprodução da sociedade, quando não remunerados, bem como as pessoas que realizam estes trabalhos, em sua análise. Segundo Bhattacharya (2017, p. 3)

A percepção fundamental do STR [Sistema de Reprodução Social] é, simplificando, que o trabalho humano está no coração da criação ou reprodução da sociedade como um todo. O capitalismo, no entanto, reconhece somente o trabalho produtivo voltado para o mercado como a única forma legítima de “trabalho”, enquanto uma grande quantidade de trabalho realizado pela família e pela comunidade para sustentar e reproduzir os trabalhadores, e, mais especificamente, sua força de trabalho é naturalizada como não existente. Contra isso, as teorias de reprodução social investigam a relação entre o trabalho dispendido para produção de commodities e os trabalhos dispensados para a produção de pessoas como parte sistêmica totalizante do capitalismo. Essa abordagem procura visibilizar o trabalho que é analiticamente escondido pelos economistas clássicos e politicamente negado pelos decisores políticos (Bhattacharya, 2017, p. 3, tradução nossa)²

2. No original: “The fundamental insight of SRT [Social Reproduction System] is, simply put, that human labor is at the heart of creating or reproducing society as a whole. […] Capitalism, however, acknowledges productive labor for the market as the sole form of legitimate “work”, while the tremendous amount of familial as well as a communitarian work that goes on to sustain andreproduce the worker, or morespecifically her labor power, isnaturalized into nonexistence. Against this, social reproduction theorists perceive the relation between labor dispensed to produce commodities and labor dispensedto produce people as part of the systemic totality of capitalism. The framework thus seeks to make visible labor and work that are analytically hidden by classical economists and politically denied by policy makers.”

O fato de os trabalhos reprodutivos serem realizados fora do mercado e de forma não remunerada, em um mundo onde o dinheiro é o principal veículo de poder, torna as pessoas que realizam prioritariamente este trabalho subordinadas às que o recebem. Ainda que relegados fora da esfera do mercado, o sistema

capitalista depende para a sua sobrevivência dos trabalhos reprodutivos, ao mesmo tempo em que o processo de acumulação de capital coloca em risco as condições para manutenção da reprodução social.

AS TRANSFORMAÇÕES CONCEITUAIS E O PROCESSO DE REPRODUÇÃO SOCIAL NA ABORDAGEM DATEORIA ECONÔMICA

Os primeiros debates econômicos nos marcos do feminismo buscavam o reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho, colocando em questionamento as teorias até então vigentes. É importante frisar que a abordagem da reprodução social na economia é muito antiga, e tanto Ricardo quanto Marx enfocaram a análise econômica baseando-se em características reprodutivas. Os sistemas socioeconômicos para poderem existir precisavam reproduzir suas próprias condições de existência (Carrasco, 2017, p. 5).

Ainda de acordo com Carrasco, nos marcos da economia feminista o conceito de cuidados como parte dos trabalhos realizados nos lares surge a partir do feminismo italiano dos anos de 1960 e 1970 e passa a integrar o conceito de reprodução social como parte relevante desse processo: “A conceituação de processo de reprodução social não incluía ocuidado como aspecto constituinte e fundamental até que foi visibilizado e nomeado a partir do feminismo.” (Carrasco, 2017, p. 16).

Assim, a ideia de reprodução social se amplia para incorporar os cuidados, mas, também, simultaneamente, amplia-se o conceito de cuidados para considerar como tais todos os trabalhos orientados para o cuidado da vida e realizadofora dos domicílios.

Portanto, uma das contribuições mais significativas da economia feminista é a sua análise sobre o cuidado na perspectiva de sustentabilidade da vida em que situa a interdependência entre os sujeitos, mas também evidencia as conexões entre o funcionamento econômico e o trabalho doméstico e de cuidados.

De acordo com Pérez Orozco, não é possível questionar como cada pessoa sustenta a sua vida, nem compreender a economia como uma soma de individualidades uma vez que a economia é um fato social, uma rede de interdependência. A questão que se coloca, portanto, é como se organizar e de forma comum para que a vida aconteça e como tratamos com essa interdependência. (2014a, p. 80).

Conforme descreve Hirata (2018b), no Brasil existe uma continuidade entre os estudos feministas sobre trabalho, divisão sexual do trabalho e trabalho doméstico e de cuidados. Para Moreno (2019), na recuperação histórica do debate sobre o cuidado no campo da economia feminista, localiza-se o debate sobre trabalho doméstico, nos anos de 1970, de modo que ao mesmo tempo em que há um reconhecimento de origens, marca-se também uma diferenciação entre os limites daquele debate e a emergência contemporânea de noção de cuidado (Carrasco; Borderias; Torns, 2011; Rodríguez Enrique, 2013; Pérez Orozco, 2014b). Essas autoras compartilham a avaliação de que o debate sobre o trabalho doméstico na década de 1970 esbarrou em limites, uma vez que procurou enquadrá-lo a partir da articulação produção/reprodução, procurando equivalências conceituais que não se sustentavam.

Para essas autoras (Hirata; Kergoat, 2003, p. 122), o movimento de ampliação do trabalho doméstico e de cuidado, na experiência brasileira, tem raízes históricas estruturais no mercado de trabalho

pós-abolição, construído a partir de uma lógica profundamente racista (Gonzalez, 2018). Ainda para Souza-Lobo (2011, p. 168) a precariedade das formas de reprodução social no âmbito da sociedade e do Estado reforçam o papel das mulheres nessa esfera sob duas condições: para as mulheres dos setores populares, o trabalho doméstico é a estratégia de sobrevivência ao mesmo tempo em que se cria demanda privada de serviços domésticos assalariados.

Retomando a crítica socialista voltada à invisibilidade dos trabalhos reprodutivos na perspectiva marxista, o movimento feminista liberal também incorpora em sua agenda a crítica à invisibilidade dos trabalhos exercidos pelas mulheres nos domicílios. Em paralelo à ascensão do pensamento econômico clássico e neoclássico, surgiram as críticas por parte do movimento feminista que reivindicava o reconhecimento das mulheres como cidadãs dentro da sociedade capitalista, a igualdade de direitos e o reconhecimento dos trabalhos não remunerados.

Ao não incorporar o trabalho doméstico dentro de uma perspectiva analítica global, a Economia Clássica não enxerga seu sujeito como parte do sistema econômico, na condição de produtor ou consumidor e, como consequência, não inclui em sua abordagem as desigualdades de gênero no mercado de trabalho que advêm da referida separação. O emprego feminino seria circunstancial e complementar ao masculino. Este modo de pensar foi alvo de críticas das primeiras economistas feministas, em que se destacam Priscilla Wakefield, Julie Victoire Daubié,Barbara Bodichon, Harriet Taylor e Ada Heather-Bigg (Carrasco, 2006).

Estas teóricas denunciaram a invisibilidade do trabalho feminino dentro da teoria clássica, bem como a exclusão das mulheres dos trabalhos melhor remunerados, o que as levaria à situação de pobreza. Além da questão do trabalho, outros aspectos importantes abordados foram as diferenças legais entre dos trabalhos melhor remunerados, o que as levaria à situação de pobreza. Além da questão do trabalho, outros aspectos importantes abordados foram as diferenças legais entre homens e mulheres e a falta de liberdade feminina para a escolha profissional, de educação e de pensamento, e para tomar suas próprias decisões, já que elas eram “tuteladas” por homens (Carrasco, 2006).

De acordo com Jefferson e King (2001), o primeiro teórico que excluiu explicitamente os trabalhos domésticos do escopo da economia foi Alfred Marshall, segundo o qual, seriam consideradas econômicas somente as atividades que poderiam ser mensuradas em termos monetários ou que poderiam ser trocadas. Marshall influenciou a definição de Arthur Cecil Pigou sobre a renda nacional, que considera todos os bens e serviços que podem ser comprados monetariamente, mesmo que fossem serviços utilizados para a manutenção da casa. Segundo sua lógica, se um homem se casasse com a sua empregada doméstica a renda nacional diminuiria.

Uma das exceções entre os economistas clássicos, foi o economista e filósofo John Stuart Mill, crítico sobre o papel subordinado da mulher na sociedade, Mill foi importante defensor do voto feminino, tendo apresentado uma petição sobre o sufrágio das mulheres no Parlamento Britânico em 1866, foi também casado com a feminista e sufragista Harriet Taylor, e escreveu o livro The Subjection of women, em 1869, defendendo a igualdade de direitos entre homens e mulheres como fator importante para o desenvolvimento da humanidade.

Pujol (1992) aponta que, a despeito da importância de Mill e Taylor relativa ao trabalho feminino e aos direitos políticos das mulheres, os autores não enxergavam o trabalho doméstico como produtivo, tampouco possuíam uma crítica à estrutura capitalista e de propriedade que servem para perpetuar as relações patriarcais de poder. Além disso, de forma diferente de Taylor, Mill não enxergava que as relações idealizadas por ele, de família e casamento perpetuam a sujeição das mulheres na sociedade, já que o casamento seria uma alternativa de sobrevivência das mulheres em uma sociedade que as exclui dos recursos financeiros, o que aproxima sua visão à de Adam Smith.

Ainda que a teoria clássica não tenha incorporado o trabalho doméstico em seus esquemas analíticos de maneira global, ela reconhece de alguma maneira a importância destes para a reprodução da força de trabalho. Por outro lado, tanto na escola marginalista como nas primeiras décadas da teoria econômica neoclássica, os trabalhos domésticos são negligenciados e invisíveis, já que o seu enfoque deixa de ser a teoria do valor trabalho, passando a se concentrar nas escolhas racionais dos agentes econômicos em mercados. Os neoclássicos irão examinar o trabalho doméstico somente a partir dos anos 1960, com a Nova Economia Doméstica. Por esta perspectiva, o homem é considerado um ser racional, que faz escolhas baseado na maximização da utilidade, de modo que as questões de segregação e as diferenças salariais por gênero seriam determinadas por fatores exógenos ao sistema mercantil. Além disso, a perspectiva neoclássica considera as mulheres como mães e especializadas nos trabalhos voltados para o cuidado; dessa forma, as esposas tenderiam a ser dependentes de seus maridos por serem menos produtivas e racionais (Carrasco, 2006).

Por procurar explicações para as desigualdades de gênero a partir das diferenças inatas entre mulheres e homens, a teoria neoclássica se afasta em sua totalidade da teoria feminista. Esta procura explicar as diferenças de gênero por meio de uma análise crítica da relação social de opressão das mulheres pelos homens e a repercussão dessas desigualdades dentro do sistema econômico e social.

As primeiras pesquisas feministas que tratavam sobre os trabalhos domésticos e a questão de gênero foram realizadas no século XIX, nos Estados Unidos, por Helen Stuart Campbelle Charllotte Perkins Gilman. Campbell se preocupou com a pobreza das mulheres, relacionando-a com o trabalho doméstico. Gilman, por sua vez, parte do reconhecimento do lar como um centro de produção em que tanto a tecnologia como as condições de trabalho são precárias e não evoluem como a economia industrial. A autora enxerga a necessidade de incorporação das atividades domésticas pelo mercado a fim de liberar as mulheres para os trabalhos mercantis (Carrasco, 2006).

Contudo, a obra pioneiraa tratar especificamente sobre a produção doméstica é de Margaret Gilpin Reid: The economics of household production, de 1934. Nesta, Reid propõe um conceito de produção doméstica que tenha como referência o mercado. Além disso, busca analisar as melhores maneiras de definir um valor monetário ao trabalho doméstico não remunerado.

Mais recentemente, a partir dos anos 1990, a questão de gênero dentro da economia ganha uma linha de investigação própria a partir da Economia Feminista. Esta surgiu com a inclusãode pautas concernentes às perspectivas feministas sobre a economia na conferência anual da “American Economic Association”. Sua consolidação ocorreu com a criação da “International Association for Feminist Economics” em 1992, e com a publicação da revista Feminist Economics, a partir de 1995 (carrasco, 2006). Atualmente, essa linha de pesquisa abrange várias escolas do pensamento econômico – marxista, institucionalista, pós-keynesiana– e tradições do feminismo – radical, socialista, liberal –, bem como comunga com outras áreas das ciências humanas, como sociologia, história e antropologia.

As primeiras contribuições das economistas feministas ao tema dos cuidados se deram no início dos anos de 1990 e com destaque para os artigos publicados por Himmelweit (1995) e Folbre (2015) na revista Feminist Economics. Ambos abordam o tema do ponto de vista conceitual destacando as conexões subjetivas e emocionais que diferenciam do trabalho medido e pago. Para Himmelweit (1995), a conceituação de trabalho doméstico formulada pelo feminismo nos anos de 1970 era reducionista ao adotar como referência o trabalho assalariado, um conceito de trabalho abstrato produtor de mercadorias, excluindo da definição outras tarefas como aquelas relacionadas as atividades de cuidados. A autora também propunha que nossas sociedades deveriam estar orientandas para as atividades de cuidado e não para o trabalho no mercado (Carrasco; Borderias; Torns, 2011, p. 37).

As elaborações de Folbre (1995) enfatizam a relação mercado e vida, a subvalorização dos cuidados presente nas distintas teorias econômicas. A mediação do tempo de distintas tarefas foi mostrando a existência de algumas que eram difíceis de serem quantificadas em razão de aspectos subjetivos que estão presentes. Como medir atividades que implicam suporte e cuidado emocional. Essas autoras propõem uma ruptura com as abordagens anteriores ao destacar a valorização do trabalho doméstico e de cuidados para além de busca e reconhecimento em termos de trabalho de mercado e passou-se a valorizar o trabalho realizado por suas próprias características e por sua importância para o cuidado e o bem-estar das pessoas.

Uma das contribuições mais importantes da economia feminista é a sua incorporação ao circuito macroeconômico. Ao integrar a economia de cuidados aos modelos econômicos, destaca-se a sua contribuição para a sustentabilidade da vida humana.

O AVANÇO NA AGENDA DE CUIDADOS
E O DEBATE NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA

Esta seção será dedicada à análise da situação atual dos trabalhos reprodutivos não remunerados, indicando como eles foram incorporados na agenda das Nações Unidas, das Estatísticas do Trabalho e das políticas públicas. Também iremos discorrer sobre as políticas adotadas no âmbito dos países da América Latina, em que se destaca principalmente o Uruguai, com o desenvolvimento do Sistema Integral de Cuidados em 2015.

O reconhecimento do cuidado como base para a sustentabilidade da vida é uma contribuição importante das economistas feministas. O cuidado é uma necessidade de todas as pessoas ao longo da vida, intensificada por motivos de idade ou de saúde (crianças menores, idosos, pessoas com deficiência). O direito ao cuidado inclui a garantia de ser cuidado, mas também os direitos das pessoas que cuidam. O cuidado é um bem público essencial para o funcionamento da sociedade e da economia, o exercício dos direitos e a igualdade. Mas sua forma atual de organização gera e aprofunda a pobreza e a desigualdade.

A divisão sexual do trabalho faz com que a maior parte dos cuidados seja assegurada pelo trabalho das mulheres no âmbito das famílias, de forma não remunerada, com profundos impactos nas condições de participação feminina em várias esferas da sociedade, especialmente no mundo do trabalho. E mesmo quando esse trabalho é realizado de forma assalariada, na maior parte das vezes os salários são baixos e sem a garantia de direitos.

3. O conceito de dependência utilizado no relatório da Cepal é baseado nos critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS), que classifica como: “dependência severa: pessoas que necessitam de cuidados diários; dependência moderada: pessoas que eventualmente podem requerer ajuda periódica.”

As mulheres são as principais, senão exclusivas, prestadoras de cuidados. A atual organização social do cuidado é baseada em um modelo de cuidado familiar que se sustenta no trabalho não remunerado das mulheres e cada família resolve como pode, geralmente comprometendo o tempo e o bem-estar das mulheres, com limitada ou inexistente solidariedade entre os demais membros da família. De acordo com dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL (2011), a carga do trabalho doméstico e de cuidado não remunerado é maior entre as mulheres mais pobres, o que contribui para a reprodução da pobreza e da desigualdade social. Esta realidade tem importantes repercussões sobre as meninas, considerando que 70% das jovens que não estudam nem estão engajadas em trabalhos assalariados não o fazem por motivo de estarem ocupadas em atividades domésticas e de cuidado não remuneradas; aproximadamente metade já são mães. Essa proporção é bem maior entre jovens afrodescendentes e mulheres indígenas. Ainda de acordo com fontes da CEPAL para a América Latina e Caribe, entre 2000 e 2050, o número de pessoas com dependência moderada dobrará e a dependência severa aumentará significativamente³. Nesse sentido, a organização social do cuidado requer respostas públicas e sistemas integrados.

Tema presente nas agendas globais e regionais e vem ganhando força nos diversos países do mundo, o que é ilustrado nas conferências internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), bem como nas políticas regionais. Os esforços que uniram movimentos feministas, de pesquisadoras(es)e ativistas resultaram em mudanças importantes tanto nas estatísticas de trabalho, com a ampliação do conceito de trabalho, bem como na formulação de pesquisas de uso do tempo, contas satélites sobre trabalhos não remunerados e políticas voltadas aos trabalhos não remunerados, dentro de sistemas integrados de trabalhos de cuidados.

Em nível internacional, alguns marcos importantes ganham destaque, como a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW, sigla em inglês para Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women), de 1991, esta incluiu na recomendação 16, sobre as “Mulheres que trabalham sem remuneração e em empresas familiares rurais e urbanas”. O documento indica a necessidade de os Estados tomarem medidas necessárias para garantir a remuneração, seguridade social e prestações sociais às mulheres que trabalham sem receber remuneração. A Convenção recomenda ainda a necessidade de mensurar os trabalhos não remunerados, argumentando que há um alto percentual de mulheres exercendo-os e que estes constituem uma forma de exploração feminina (Cedaw, 1991).

Ainda no âmbito internacional, cabe destacar o Relatório da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim em 1995,que define, dentre os objetivos estratégicos, o A4: “Desenvolver metodologias baseadas no gênero e realizar pesquisas voltadas para o problemada feminização da pobreza”. Também se

destaca o objetivo H.3: “Elaborar e divulgar dados e informações desagregados por gênero para fins de planejamento e avaliação” (ONU, 1995). Mais recentemente, a agenda de gênero e dos trabalhos não remunerados ganham espaço no relatório “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável” (ODS).

Concomitante aos marcos internacionais relacionados aos direitos das mulheres, e ao reconhecimento dos trabalhos não remunerados, destaca-se o desenvolvimento de metodologias para harmonizar a mensuração do tempo nos diversos países do mundo. Ganha destaque, nesse ínterim, a International Classification of Activities for Time-Use Statistics (ICATUS), realizada pelas Nações Unidas, que incorpora os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável supracitados. Para tanto, amplia o conceito de trabalho, conforme as resoluções das comissões de estatística, a fim de estimar todas as suas formas, incluindo os não remunerados, os voltados para o mercado ou não (UNSD, 2017). A ICATUS utiliza o conceito de trabalho adotado pela 19ª Sessão da Conferência Internacional das Estatísticas do Trabalho (ICLS) de 2013, que realizou a primeira definição estatística do que é considerado trabalho, ampliando as suas fronteiras.

Os esforços para ampliar o conceito de trabalho, padronizar formas de mensuração, levaram à definição de recomendações voltadas ao reconhecimento dos trabalhos não remunerados e ao desenvolvimento das pesquisas de uso do tempo. Estas são extremamente importantes tanto para a análise da qualidade de vida das pessoas como para identificar as desigualdades de gênero, mas também de raça e classe na distribuição dos trabalhos remunerados e não remunerados. Nesse sentido, são importantes ferramentas no desenvolvimento de políticas públicas com viés de gênero.

Atualmente, as pesquisas de uso do tempo são realizadas em diversos países de forma periódica, principalmente entre os desenvolvidos. A OIT, em 2018, identificou 117 pesquisas coletadas em 94 países entre os anos de 2000 a 2016. Dentre as regiões, as pesquisas são encontradas comumente na Europa Central e Ásia, em que se constata 43 pesquisas, seguido das Américas, com 34 pesquisas identificadas, e Ásia e Pacífico, onde foram constatadas 20 pesquisas. Já na África e nos Estados Árabes, foram constatadas 16 e 4 pesquisas somente (iLo, 2018).

Dentre os países do Sul Global, a América Latina se destaca em relação aos marcos institucionais de apoio às políticas voltadas para os trabalhos reprodutivos. Ganha evidência, nesse sentido, a 10ª Conferência Regional sobre a Mulher na América Latina e Caribe que decorreu no Consenso de Quito em 2007, o Consenso de Brasília, fruto da 11ª Conferência regional sobre a Mulher em 2010. Neste último, foi definido o programa 3R: reconhecer, redistribuir e reduzir os cuidados. No âmbito da pandemia da covid-19, destaca-se o Compromisso de Santiago, em 2021, que trata sobre medidas para alcançar a igualdade de gênero em resposta à crise da covid-19.

Atualmente há um debate importante na América Latina, mas também no Brasil, sobre a necessidade de avançar no reconhecimento do cuidado como um bem público, um direito de todas as pessoas e um elemento central e transversal dos sistemas de proteção social. As propostas são no sentido de fortalecer políticas, serviços e equipamentos públicos de cuidado dirigidos a crianças, pessoas idosas, com deficiências e enfermas de longa duração que apoiem as famílias e promovam relações mais equitativas entre homens e mulheres no seu interior e contribuam a diminuir a carga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado exercido fun-

mentalmente pelas mulheres, liberando o seu tempo para a educação, capacitação profissional, participação política e comunitária, lazer e cultura. A exemplo de creches, refeitórios, restaurantes e lavanderias populares, centros de cuidado de idosos e de pessoas com deficiência, entre outros.

Diversos países latino-americanos implementaram políticas voltadas aos cuidados, abrangendo desde a elaboração de pesquisas de uso do tempo, a exemplo da Colômbia, Venezuela e Equador, até políticas de expansão das licenças maternidade e paternidade, direitos de licença parental, leis antidiscriminação às gestantes. No entanto, poucos são os modelos de sistemas de cuidados integrativos e com olhar sistêmico. Um exemplo importante e que serve como modelo para a região é o Sistema Nacional Integrado de Cuidados (SNCI), desenvolvido no Uruguai a partir da Lei 19.353 de 2015.

A concepção do SNCI parte da ideia de que os trabalhos de cuidados se inserem em um universo amplo de políticas sociais e setoriais, como as voltadas para o mercado de trabalho. Além disso, entende-se que os cuidados possuem influência e são influenciados pelas políticas de educação, saúde, seguridade social e trabalhistas. Há, portanto, uma inovação na concepção de classe trabalhadora, em que as normas deixam de estar voltadas dentro de um modelo de provedor universal, para um modelo de cuidador universal, em que a(o) trabalhador(a) seja concebida(o) sempre como alguém com responsabilidades de cuidados (Sierra, 2021).

Outras iniciativas importantes de programas de cuidados sistêmicos foram elaboradas na República Dominicana, a partir do Gabinete de Coordenação de Políticas Sociais, em que está se debatendo a possibilidade de estabelecer políticas com foco no Piso

Básico de Proteção Social. A formação do grupo Interinstitucional Impulsor das Políticas de Cuidados no Paraguai, em 2019, encarregado de formular as políticas Nacionais de Cuidados, neste ano também foi publicado o “Documento Marco para el Diseño de la Política Nacional de Cuidados en el Paraguay”. A Colômbia também se destaca no empenho de realizar um sistema integral de cuidados com a criação do sistema distrital de cuidados (FEs, 2021, p. 48).

Apesar dos avanços, os sistemas de cuidados na América Latina apresentam muitas brechas que vão desde a abrangência restrita, a falta de integração com políticas setoriais, como saúde e educação, bem como falta de informações e monitoramento. Algumas características gerais do sistema de cuidados na América Latina são traçadas por FES (2021, p. 39 e 40):

  1. As legislações relativas aos cuidados não possuem como prerrogativa a mudança nas normas de gênero – a exemplo disso, as licenças maternidades são muito mais extensas do que as licenças paternidades;
  2. Os direitos aos cuidados são garantidos principalmente para as trabalhadoras e trabalhadores formais, a despeito do percentual elevado de informalidade na região, e ainda, que boa parte destas(es) são mulheres;
  3. Falta de oferta de cuidados para o período de lactância, e a não correspondência entre os horários de trabalho remunerado e a oferta de horários escolares, situações que são resolvidas por meio de arranjos familiares em que as mulheres em geral escolhem horários mais flexíveis;
  4. A oferta de cuidados ocorre principalmente para a primeira infância, sem considerar outros grupos populacionais demandantes de cuidados, como as pessoas idosas, adultos doentes, adultos com necessidades especiais. Este ponto é especialmente importante considerando o crescimento demográfico na região.

Outra característica importante elencada por FES (2021) é a falta de informações sobre a cobertura dos serviços, o que ocorre inclusive nos programas voltados para a primeira infância, o que dificulta o controle das metas e implementação dos planos. Nesse sentido, é importante ressaltar sobre a necessidade de as políticas de cuidados estarem integradas e articuladas em sistemas bem monitorados, em que se conectam as normas, políticas, programas e serviços. As políticas de cuidados devem, portanto, estar relacionadas com as de geração de emprego, de renda, partindo das normas de gênero, raça, idade e território.

Há muitos desafios na implementação da agenda de políticas de cuidados, para que ocorra de forma integrativa, e que abranja os diferentes atores e atrizes sociais. Os avanços, por outro lado, são muito importantes, considerando a potencialidade de impacto sobre toda a sociedade, sobretudo para as mulheres. Estas se beneficiam com maiores oportunidades de emprego formal e ampliação de acesso a recursos tanto monetários como de tempo. A sociedade como um todo, ao incluir a reprodução como central nas políticas públicas, se beneficia com melhoria nos indicadores sociais relacionados à saúde, educação e renda.

De acordo com Godinho e Silveira (2022, p. 30) há toda uma rede de ações necessárias para a construção de uma política integrada de cuidados, com destaque para as seguintes áreas: as necessidades do cuidado decorrente do envelhecimento, o cuidado infantil, a imensa gama de cuidados relacionados à saúde e seguridade social, os afazeres demandados no âmbito doméstico cotidiano, a demanda por alimentação e, finalmente, o acesso à renda.

No Brasil, a frágil implantação de políticas sociais e as mudanças demográficas com o rápido envelhecimento da população se conjugam de forma perversa com os níveis de pobreza, com as mudanças nas estruturas familiares e um alto número de famílias chefiadas por mulheres de baixa renda, associadas à inserção feminina em trabalhos precários e de baixo rendimento, criando um círculo de vulnerabilidade e pobreza.

Pensar no cuidado como política integrada, que articule as distintas necessidades da reprodução cotidiana da vida, exige uma mudança nas relações sociais visando romper com a cômoda e invisibilizada divisão sexual do trabalho, o que demanda ações em distintas áreas. Além da efetiva priorização de investimento na consolidação de uma rede de serviços públicos, distribuindo socialmente o alto custo pessoal do tempo e do trabalho despendido pelas famílias – leia-se mulheres – nas tarefas do cuidado, é preciso dar visibilidade à imensa desigualdade social que torna o acesso aos recursos necessários para o cuidado das pessoas um privilégio de classe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A urgência por uma reorganização social dos cuidados lança luz em um conjunto de agentes sociais coletivos envolvidos, como famílias, Estado, mercado e comunidade. Os cuidados são um aspecto estratégico a partir do qual é possível questionar a perversidade de um sistema socioeconômico que nega a responsabilidade social pela sustentabilidade da vida. Faz recair sobre os grupos familiares essa responsabilidade, concentrando-se de forma excessiva no trabalho não pago das mulheres.

A premissa de que o cuidado das pessoas é central para o bem- estar é cada vez mais posicionado na sociedade saindo da esfera familiar para a esfera pública. Assim, a agenda em relação ao trabalho doméstico e de cuidados ganha cada vez mais relevância nos debates vinculados à formulação e implementação de políticas públicas, bem como é parte de estudos acadêmicos em várias disciplinas e no movimento feminista.

O fato é que há vários anos se identifica uma crise dos cuidados como um “complexo processo de desestabilização de um modelo prévio de divisão das responsabilidades sobre os cuidados e a sustentabilidade da vida que acarreta uma redistribuição e reorganização do trabalho de cuidados” (Pérez Orozco, 2012). Ou seja, mesmo que nunca tenha sido a realidade de todas as pessoas, já não é possível mais operar com a normatização de que há sempre uma mulher totalmente disponível para o trabalho doméstico e de cuidados em famílias heterossexuais mantidas pelo homem provedor com seu salário.

Porém um fator determinante no debate sobre a implementação de políticas públicas é o crescimento de orientações produzidas no âmbito dos organismos internacionais no interior do debate sobre desenvolvimento. Isso ganhou mais relevância a partir do reconhecimento da crise dos cuidados que foi intensificada pelos processos de liberalização da economia. Um elemento dessa crise e que pressiona a definição de respostas globais é o processo de migrações para os países desenvolvidos em que um dos elementos determinantes é a resposta à demanda por trabalhadoras(es) no cuidado de crianças e, em particular, dos idosos. Há um aumento da delegação dos cuidados nos países do Norte, fenômeno que ficou conhecido como globalização das cadeias de cuidado. As mulheres

que migram para o trabalho de cuidados também precisam delegar o cuidado de seus filhos nos seus países de origem.

Afrontar a profunda desigualdade em relação ao trabalho doméstico e de cuidados pressupõe problematizar uma possível visão homogênea dos quatro níveis de provisão de cuidados: família, mercado, Estado e comunidade. Em particular, é fundamental reforçar o papel do Estado e buscar diminuir o papel do mercado. Essa perspectiva, inclusive, é o que poderá contribuir para que as políticas de conciliação sejam mais efetivas para garantir um horizonte de alteração das bases da desigualdade de classe, raça e gênero. Essa proposição vinculava à compreensão que a lógica do mercado de acumulação é incompatível com a lógica de colocar o cuidado no centro, como prioridade.

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CRISTINA PEREIRA VIECELI E MARILANE TEIXEIRA

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