DE KARL MARX AO ECO-MARXISMO¹

A reflexão sobre a contribuição de Marx para uma perspectiva ecológica tem feito progressos consideráveis nas últimas décadas. A imagem um tanto caricatural de um Marx “prometéico”, produtivista, indiferente aos desafios ambientais, transmitida por alguns ecologistas, ansiosos por “substituir o paradigma vermelho pelo verde”, perdeu muita credibilidade. O pioneiro no redescobrimento da dimensão ecológica em Marx e Engels foi, sem dúvida, John Bellamy Foster, com sua obra AEcologiadeMarx: MaterialismoeNatureza— publicada no Brasil pela Editora Expressão Popular —, que destaca as análises de Marx sobre a “ruptura metabólica” (Riss des Stoffwechsels) entre as sociedades humanas e o meio natural, provocada pelo capitalismo. Bellamy Foster transformou a MonthlyReview, uma das publicações mais importantes

MICHAEL LÖWY é
sociólogo, nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).

  1. Publicado em Viento Sur: https://vientosur.info/ de-karl-marx-al-eco- marxismo.Tradução por Vânia Ribeiro.

da esquerda norte-americana, em uma revista eco- marxista, promovendo o avanço de toda uma escola de pensamento marxista em torno da temática da ruptura metabólica, incluindo autores tão importantes quanto Brett Clark, Ian Angus, Paul Burkett, Richard York e outros. Pode-se criticar Bellamy Foster por sua leitura de Marx como um ecologista comprometido, desde seus escritos de juventude até seus últimos trabalhos, sem levar em consideração textos ou passagens que mostram uma lógica produtivista; mas não se pode duvidar da importância, novidade e profundidade de seus escritos. Na leitura de Marx sob uma perspectiva ecológica, há um antes e um depois de Bellamy Foster.

Próximo a essa escola de pensamento — seu primeiro livro, Karl Marx’sEcosocialism:Capital,Nature and the Unfinished Critique of Political Economy(2017) foi publicado pela Monthly Review Press— o jovem pesquisador japonês Kohei Saito se distingue por uma interpretação mais matizada dos escritos de Marx. Tanto em seu primeiro livro, quanto no seguinte, Marx in the Anthropocene: Towards the Idea of Degrowth Communism (2022), ele mostra que a reflexão de Marx sobre o meio ambiente não é homogênea. Ele não trata os escritos de Marx como um conjunto sistemático, definido do começo ao fim por um grande compromisso ecológico (segundo alguns) ou uma poderosa tendência não ecológica (segundo outros), mas sim como um pensamento em movimento. É verdade que se podem descobrir elementos de continuidade na reflexão de Marx sobre a natureza, mas também há mudanças e reorientações muito significativas. Além disso, como sugere o subtítulo de seu livro de 2017 — publicado em francês como La Nature contre le Capital: L’écologie de Marx dans sa critique inachevée du capital (2021) — suas reflexões críticas sobre a relação entre a economia política e o meio natural permaneceram “inacabadas”.

Entre as continuidades, uma das mais importantes é a questão da “separação” capitalista dos humanos em relação à terra, ou seja, à natureza. Marx pensava que, nas sociedades pré-capitalistas, existia uma forma de unidade entre os produtores e a terra, e considerava como uma das tarefas essenciais do socialismo restabelecer a unidade original entre os humanos e a natureza, destruída pelo capitalismo, embora em um nível mais elevado (negação da negação). Isso explica o interesse de Marx pelas comunidades pré-capitalistas, tanto em suas discussões ecológicas (por exemplo, Carl Fraas) quanto em suas investigações antropológicas (Franz Maurer), pois esses dois autores eram considerados “socialistas inconscientes”. Além disso, em seu último documento importante, a carta a Vera Zasulich (1881), Marx afirmava que, com a supressão do capitalismo, as sociedades modernas poderiam retornar a uma forma superior de um tipo “arcaico” de propriedade e produção coletivas. Pode-se dizer que isso faz parte do momento “anticapitalista romântico” das reflexões de Marx. De qualquer forma, essa visão geral interessante de Saito é muito relevante nos dias de hoje, quando as comunidades indígenas das Américas, do Canadá à Patagônia, estão na linha de frente da resistência à destruição capitalista do meio ambiente.

No entanto, a principal contribuição de Saito é mostrar o movimento, a evolução das reflexões de Marx sobre a natureza, em um processo de aprendizado, reconsideração e reformulação de seus pensamentos. Antes de O Capital (1867), pode-se encontrar nos escritos de Marx uma avaliação relativamente pouco crítica do “progresso” capitalista — uma atitude muitas vezes descrita com o vago termo mitológico de “prometeísmo”. Isso fica evidente no Manifesto Comunista, que celebrava a “submissão das forças da natureza ao homem” e o “cultivo de continentes inteiros”, mas tamtambém se aplica aos Cadernos de Londres (1851), aos Manuscritos Econômicos de 1861-63 e a outros escritos daquela época.

Curiosamente, Saito parece excluir de sua crítica os Grundrisse (1857-58), uma exceção que, em minha opinião, não é justificada, pois é sabido como Marx, nesse manuscrito, admirava a “grande missão civilizadora do capitalismo” em relação à natureza e às comunidades pré-capitalistas, prisioneiras de seu localismo e de sua “idolatria da natureza”!

A mudança ocorre em 1865-66, quando Marx descobriu, ao ler os escritos do químico agrícola Justus von Liebig, o problema do esgotamento dos solos e a ruptura metabólica entre as sociedades humanas e o meio natural. Isso levaria, no volume I de OCapital— embora também nos outros dois volumes inacabados — a uma avaliação muito mais crítica da natureza destrutiva do “progresso” capitalista, particularmente na agricultura. Após 1868, lendo outro cientista alemão, Carl Fraas, Marx também descobriu outras questões ecológicas importantes, como o desmatamento e as mudanças climáticas locais. Segundo Saito, se Marx tivesse conseguido terminar os volumes II e III de O Capital, teria dado mais destaque à crise ecológica — o que significa também, pelo menos implicitamente, que no estado inacabado atual, essas questões não foram suficientemente abordadas.

Isso me leva à minha principal discordância com Saito: em vários trechos do livro, ele afirma que, para Marx, “a não durabilidade ambiental do capitalismo é a contradição do sistema” (p. 142, sublinhado por Saito); ou que, no final de sua vida, Marx chegou a considerar a ruptura metabólica como “o problema mais grave do capitalismo”; ou que o conflito com os limites naturais era, para Marx, “a principal contradição do modo de produção capitalista”. Pergunto-me onde Saito encontrou tais declarações nos escritos de Marx, seja nos livros publicados, manuscritos ou cadernos…Elas não são encontráveis, e por uma boa razão: a insustentabilidade ecológica do sistema capitalista não era uma questão decisiva no século XIX como é hoje; ou, melhor dizendo, desde 1945, quando o planeta entrou em uma nova era geológica, o Antropoceno. Acredito ainda que a ruptura metabólica, ou o conflito com os limites naturais, não é apenas “um problema do capitalismo” ou uma “contradição do sistema”; é algo muito maior! Trata-se de uma contradição entre o sistema e as “condições naturais eternas” (Marx), e, portanto, com as condições naturais da vida humana no planeta. De fato, como afirma Paul Burkett (citado por Saito), o capital pode continuar a se acumular em qualquer condição natural, mesmo degradada, enquanto não houver uma extinção completa da vida humana: a civilização humana pode desaparecer antes que a acumulação de capital se torne impossível…

Saito conclui seu livro com uma avaliação sóbria que me parece um resumo muito pertinente da questão: OCapital (o livro) foi um projeto inacabado. Marx não respondeu a todas as questões nem previu o mundo de hoje. No entanto, sua crítica ao capitalismo proporciona uma base teórica extremamente útil para a compreensão da atual crise ecológica. Consequentemente, eu acrescentaria que o ecossocialismo pode apoiar-se nas ideias de Marx, mas deve desenvolver plenamente um novo enfrentamento eco-marxista com os desafios do Antropoceno no século XXI.

Em seu último livro, Marx and the Anthropocene, Saito desenvolve e amplia sua análise dos escritos de Marx, criticando o produtivismo dos Grundrisse e do famoso Prólogo à ContribuiçãoàCríticada Economia Política, frequentemente considerado a formulação definitiva do materialismo histórico. No Prólogo de 1859, as forças produtivas aparecem como a principal força motriz da história, que seria libertada, graças à revolução, dos “obstáculos” que constituem as relações de produção capitalistas. Saito mostra como, a partir de 1870, em seus escritos sobre a Rússia e em seus cadernos de notas etnográficas ou naturalistas, Marx se afasta dessa visão da história. Nesse “último Marx” esboça-se, segundo Saito, uma nova concepção do materialismo histórico — certamente inacabada — em que o meio natural e as comunidades pré-modernas (ou não-europeias) desempenham um papel essencial. Saito também tenta mostrar, sobretudo com base nos Cadernos de Notas recentemente publicados pela nova MEGA, uma adesão de Marx à ideia de decrescimento, mas essa hipótese não encontra um fundamento efetivo nesses escritos.

MARX,CRÍTICO DA ACUMULAÇÃO ILIMITADA

Parece-me que a questão da contribuição de Marx para o ecossocialismo, ou, se preferir, para o eco-marxismo, não se limita aos seus textos sobre a relação com a natureza — que são, reconhecidamente, relativamente marginais em sua obra. Não há um único livro, artigo ou capítulo de livro de Marx ou Engels dedicado à ecologia ou à crise ecológica. O que é perfeitamente compreensível, considerando que a destruição capitalista do meio ambiente estava apenas em suas primeiras manifestações e não tinha a gravidade que tem hoje. Acredito que em seus escritos se encontram argumentos que não têm como foco a natureza, mas que constituem contribuições essenciais para uma reflexão eco-marxista, desde que sejam repensados à luz da crise ecológica de nossa época. Devemos considerar aqui dois elementos:

1. A crítica de Marx à hybris capitalista: a acumulação/expansão sem limites.

  1. O comunismo como “Reino da Liberdade”.

O capitalismo é um sistema que não pode existir sem uma tendência expansiva ilimitada. Nos Grundrisse, Marx observava:

“O capital, na medida em que representa a forma universalda riqueza — o dinheiro —,éatendênciasemlimitesnem medida de superar seu próprio limite. Qualquer limite sópodesersuperadoporele.Senão,deixariadesercapital:o dinheiro, na medidaem que se reproduz, éomovimento perpétuo que tende sempre a criar mais”¹.

  1. Karl Marx, Manuscritos de 1857-1858, chamados Grundrisse.
  2. Karl Marx, O Capital, livro I.
  3. Ibid.

Essa análise será desenvolvida no primeiro volume de O Capital. Segundo Marx, o capitalista é um indivíduo que só funciona como “capital personificado”. Como tal, é necessariamente um “agente fanático da acumulação”, que “força os homens, sem piedade nem trégua, a produzir por produzir”. Esse comportamento é “o efeito de um mecanismo social do qual ele é apenas uma engrenagem”. Qual é esse “mecanismo social”, cuja expressão psíquica no capitalista é “a avareza mais sórdida e o espírito calculista mais mesquinho”? Esta é a sua dinâmica, segundo Marx:

“O desenvolvimento da produção capitalista exige uma expansãocontínuadocapitalinvestidoemumaempresa,ea concorrênciaimpõeasleisimanentesdaproduçãocapitalista comoleiscoercitivasexternasacadacapitalistaindividual. Elenãopode manterseucapital sem ampliá-lo, e não pode continuar a ampliá-lo sem uma acumulação progressiva”².

A acumulação ilimitadade capital é a regrainflexíveldo mecanismosocialcapitalista:“Acumulai,acumulai!Éaleie os profetas! (…) Acumularparaacumular,produzirpara produzir, é a consigna da economiapolíticaqueproclamaa missão histórica do período burguês”³.

Acumulação pela acumulação, produção pela produção, sem trégua nem piedade, sem limites nem medida, em um movimento perpétuo de crescimento, uma expansão contínua: esta é, segundo Marx, a lógica implacável do capital, esse mecanismo social do qual os capitalistas são “agentes fanáticos”. O imperativo de acumulação

O imperativo de acumulação se transforma em uma espécie de religião secular, um culto “fanático”, no qual a mercadoria substitui “a lei e os profetas” do judaico-cristianismo.

O significado desse diagnóstico para o Antropoceno do século XXI é evidente: essa lógica produtivista do capitalismo, essa hybris que exige expansão permanente e rejeita qualquer limite, é a responsável pela crise ecológica e pelo processo catastrófico de mudança climática da nossa época. A análise de Marx permite entender por que o “capitalismo verde” não passa de um engodo: o sistema não pode existir sem acumulação e crescimento, um crescimento “sem limites ou medida”, que depende em 80% de energias fósseis. Por isso, apesar das declarações lenitivas dos governos e das reuniões internacionais sobre o clima (as COPs) ou sobre a “transição ecológica”, as emissões de gases de efeito estufa não pararam de crescer. Os cientistas soam o alarme e enfatizam a necessidade urgente de cessar qualquer nova exploração de energias fósseis, esperando reduzir rapidamente a utilização dos recursos existentes; mas os grandes monopólios do petróleo abrem novos poços todos os dias, e seu representante, a OPEP, anuncia publicamente que será necessário explorar esses recursos por muito mais tempo, “para atender à crescente demanda”. O mesmo ocorre com as novas minas de carvão, que continuam sendo abertas, desde a Alemanha “verde” até a China “socialista”.

De fato, a demanda por energia não para de crescer e, com ela, o consumo de energias fósseis, enquanto as renováveis simplesmente se somam a estas, em vez de substituí-las. Se um capitalista “verde” quisesse adotar uma prática diferente, seria expulso do mercado: como Marx lembrava, “a concorrência impõe as leis imanentes da produção capitalista como leis coercitivas externas a cada capitalista individual”.

A temperatura média do planeta se aproximou perigosamente, em 2023, do limite de 1,5 graus acima da era pré-industrial — limite acima do qual há o risco de desencadear um processo de aquecimento global descontrolado, com mecanismos de retroalimentação cada vez mais intensos. Os cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) enfatizam a necessidade de reduções imediatas das emissões até 2030, como última oportunidade de evitar a catástrofe. No entanto, a União Europeia e outros governos anunciam, com grande segurança, que poderão atingir “emissões líquidas zero” … em 2050. Um anúncio duplamente enganoso, não só porque finge ignorar a urgência da crise, mas também porque “zero líquido” não é o mesmo que zero emissões: graças aos “mecanismos de compensação”, as empresas podem continuar emitindo gases se “compensarem” protegendo uma floresta na Indonésia.

O capitalismo industrial moderno é totalmente dependente do carvão e do petróleo há três séculos e não demonstra nenhuma disposição em renunciar a eles. Para tanto, seria necessário romper com a acumulação “sem limites nem medida” e com o produtivismo, organizando um processo de decrescimento planejado, com a supressão ou redução de setores inteiros da economia — uma gestão totalmente contraditória com os próprios fundamentos do capitalismo. Greta Thunberg lembrava, com toda razão, que é “matematicamente impossível resolver a crise climática dentro dos marcos do sistema econômico existente”. As análises de Marx em O Capital sobre o implacável mecanismo, “sem trégua nem piedade”, da acumulação/expansão capitalista explicam essa impossibilidade. Muitos ecologistas tendem a apontar o consumo como o responsável pela crise ambiental. É verdade que o modelo de consumo do capitalismo

4. Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política.

moderno é claramente insustentável. Mas a fonte do problema está no sistema produtivo. O produtivismo é o motor do consumismo. Marx já observava essa dinâmica. Em sua Contribuição à crítica da economia política (1859), ele escreveu:

“A produção produzo consumo:1.Fornecendo o material;2. Determinando o modo de consumo;3.Fazendo-oaparecer para o consumidor como necessidade dos produtos que coloca em forma de objeto. Produz o objeto do consumo, o modo de consumo, o impulso ao consumo”⁴.

Isso é ainda mais verdadeiro na nossa época do que no século XIX… Os produtores capitalistas fomentam “o impulso ao consumo” por meio de um vasto e imenso aparato publicitário, que bombardeia, dia e noite, nas paredes das cidades, nos jornais, no rádio ou na televisão, por toda parte, “sem trégua nem piedade”, com a necessidade imperativa de consumir esta ou aquela mercadoria. A publicidade comercial se apropria de todos os âmbitos da vida: esporte, religião, política, cultura, informação. Criam-se necessidades artificiais, fabricam-se “modas”, e o sistema induz um frenesi consumidor, “sem limites nem medida”, de produtos cada vez menos úteis, o que permite à produção se expandir indefinidamente. Se a produção produz o consumo, como observava Marx, é necessário transformar o sistema produtivo, em vez de pregar a abstinência aos consumidores. A eliminação pura e simples da publicidade comercial é o primeiro passo para superar a alienação consumista e permitir que os indivíduos reencontrem suas verdadeiras necessidades.

Outra dimensão do consumismo capitalista criticado por Marx

— uma dimensão com implicações ecológicas evidentes na atualidade — é o predomínio do “ter” sobre o “ser”, da posse de bens, dinheiro ou capital, sobre a livre atividade humana. Nos Ma-

nuscritos de 1844, essa temática é desenvolvida. Segundo Marx, na sociedade burguesa predomina, de forma exclusiva, “o sentido da posse, do ter”. No lugar da vida dos seres humanos, aparece “a vida da propriedade”, e “no lugar de todos os sentidos psíquicos e intelectuais, surge a simples alienação de todos esses sentidos, o sentido do ter”. A posse, o ter, é uma vida alienada: “Quanto menos você é, quanto menos manifesta sua vida, mais você possui, mais sua vida alienada aumenta, mais você acumula seu ser alienado”⁵.

5. Karl Marx, Manuscritos de 1844.

Trata-se aqui de outra forma de consumismo: o importante não é o uso, mas a posse de um bem, de uma mercadoria. Sua manifestação mais evidente é o consumo ostentatório das classes privilegiadas, estudado por Thorstein Veblen em seu clássico Teoria da classe ociosa (1899). Em nossos dias, isso atinge proporções monumentais e alimenta uma extensa indústria de produtos de luxo: jatos privados, iates, joias, obras de arte, perfumes…, Mas a obsessão possessiva também invade outras classes sociais, conduzindo à acumulação de bens como um fim em si mesmo, independentemente de seu valor de uso. O ser, a atividade humana como tal, é sacrificada ao ter, à posse de mercadorias, alimentando assim o produtivismo, a inundação da vida social por uma massa crescente de produtos cada vez menos úteis. Bem entendido, os recursos necessários para a produção dessa montanha de bens mercantis são, ainda e cada vez mais, o carvão e o petróleo…

OCOMUNISMO,REINO DA LIBERDADE

O comunismo, enquanto reino da liberdade, baseia-se na prioridade do ser sobre o ter, invertendo a lógica alienada imposta pelo capitalismo. A economia política burguesa leva essa lógica perversa até suas últimas consequências: “Sua tese principal é a renúncia a si mesmo, a renúncia à vida e a todas as necessidades hu-
humanas. Quanto menos comes, bebes, compras livros, quanto menos vais ao teatro, ao baile, ao cabaret, quanto menos pensas, amas, fazes teoria, quanto menos cantas, falas, fazes esgrima etc., mais economizas, mais aumentas seu tesouro (…), seu capital (…), tudo o que o economista te arranca de vida e de humanidade e te substitui por dinheiro e riqueza (…)”.

Marx incluía no que constitui o ser — ou seja, a vida e a humanidade dos humanos — três elementos constitutivos: I. A satisfação das necessidades essenciais (beber, comer); II. A satisfação das necessidades culturais: ir ao teatro, ao cabaret, comprar livros. Deve-se ressaltar que essas duas categorias se referem a atos de consumo vital, mas não de acumulação de bens (tudo o que se pode acumular são livros!) e ainda menos de dinheiro. A inclusão das necessidades culturais é um protesto implícito contra o capitalismo, que quer limitar o consumo do trabalhador ao que permite sua sobrevivência elementar: beber e comer. Para Marx, o trabalhador, como todos os seres humanos, precisa ir ao teatro, ao cabaret, ler livros, educar-se, divertir-se; III. A autoatividade humana: pensar, amar, fazer teoria, cantar, falar, fazer esgrima… Esta lista é fascinante, por sua diversidade, seu caráter tanto sério quanto lúdico, e pelo fato de que inclui ao mesmo tempo o essencial — pensar, amar, falar — e o “luxo”: cantar, fazer teoria, praticar esgrima… Todos esses exemplos têm em comum seu caráter ativo: aqui o indivíduo já não é consumidor, mas ator. Bem entendido, poderiam ser acrescentados muitos outros exemplos de autoatividade humana, individual ou coletiva, artística ou esportiva, lúdica ou política, erótica ou cultural, mas os exemplos escolhidos por Marx abrem uma ampla janela sobre o “reino da liberdade”. É verdade que a distinção entre esses três momentos não é absoluta; comer e ler livros são também atividades. Trata-se de três manifestações da vida — o ser — frente ao que está no centro da sociedade burguesa: o ter, a propriedade, a acumulação.

Escolher o ser mais do que o ter é, portanto, uma contribuição significativa de Marx a uma cultura socialista/ecológica, a uma ética e uma antropologia em ruptura com os dados fundamentais da civilização capitalista moderna, onde o absoluto predomínio do ter, sob sua forma mercantil, conduz, com frenesi crescente, à destruição dos equilíbrios ecológicos do planeta.

Encontram-se importantes reflexões — diretamente inspiradas pelos Manuscritosde1844— sobre a oposição entre “ser” e “ter” nos escritos freudo-marxistas do filósofo e psicanalista Erich Fromm. Judeu alemão antifascista que emigrou para os Estados Unidos, Fromm publicou em 1976 o livro Ter ou Ser. Uma escolha da qual depende o futuro do homem, comparando duas formas opostas de existência social: o modo ter e o modo ser. No primeiro, minha propriedade constitui minha identidade: tanto o sujeito quanto o objeto são reificados (coisificados). A pessoa se sente como uma mercadoria, e o “isso” possui o “eu”. A avareza possessiva é a paixão dominante: agora bem, insistia Fromm, a cobiça, ao contrário da fome, não tem ponto de saciedade, sua satisfação não preenche o vazio interior…

O que, portanto, é o modo ser? Fromm cita um trecho de Marx nos Manuscritosde1844: “Partimos da ideia de que o ser humano é um ser humano e que sua relação com o mundo é uma relação humana. O amor, portanto, só pode ser trocado por amor, a confiança por confiança.”

O modo ser, explicava Fromm, é um modo ativo, no qual o ser humano expressa suas faculdades, seus talentos, a riqueza de seus dons; ser ativo significa aqui “renovar-se, desenvolver-se, transbordar, amar, transcender a prisão do eu isolado; é ser interessado, atento; é dar-se.” O modo ser é o socialismo, não em sua versão social-democrata ou soviética (estalinista), reduzido a uma aspiração de consumo máximo, mas, segundo Marx: autoatividade humana. Em resumo, concluía Fromm, citando mais uma vez a Marx no volume III de Capital, o socialismo é o reino da liberdade, cujo objetivo é “o desenvolvimento da potência humana como fim em si”.

Karl Marx escreveu muito pouco sobre a sociedade emancipada do futuro. Ele se interessava de perto pelas utopias, mas desconfiava das versões excessivamente normativas, excessivamente restritivas, ou seja, dogmáticas: seu objetivo era, como lembra de forma pertinente Miguel Abensour, a transcriação da utopia para o comunismo crítico. Em que consiste isso? No terceiro volume de O Capital — manuscrito inacabado editado por Friedrich Engels — há uma passagem essencial, muitas vezes citada, mas poucas analisada. Não aparece a palavra “comunismo”, embora se trate, sem dúvida, da sociedade sem classes do futuro, que Marx definia, e é uma opção muito significativa, como Reino da Liberdade (Reich der Freiheit).

“O reino da liberdade começa onde termina o trabalho determinado pela necessidade e pelos fins exteriores: pela natureza mesma das coisas, está fora da esfera da produção material (…) A liberdade neste âmbito só pode consistir nisso: o ser humano socializado (vergesellschafte Mensch), os produtores associados, regulam racionalmente seu metabolismo (Stoffwechsel) com a natureza, submetendo-o ao seu controle coletivo, em vez de estarem dominados por ele como por um poder cego; o fazem com os esforços mais reduzidos possíveis, nas condições mais dignas de sua natureza humana e as mais adequadas a essa natureza. Além deste reino começa o desenvolvimento das potências do ser humano, que é, por sua vez, seu próprio fim, que é o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode expandir-se apoiando-se neste reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental.”

É interessante o contexto em que aparece o trecho. Trata-se de uma discussão sobre a produtividade do trabalho. O aumento dessa produtividade permite, sugere o autor de OCapital, não apenas ampliar a riqueza produzida, mas sobretudo reduzir o tempo de trabalho. Isso aparece como prioritário em relação a uma extensão ilimitada da produção de bens.

Marx distingue, portanto, dois âmbitos da vida social: o “reino da necessidade” e o “reino da liberdade”: a cada um corresponde uma forma de liberdade. Comecemos examinando mais de perto o primeiro: o reino da necessidade, que corresponde à “esfera da produção material” e, portanto, ao trabalho “determinado pela necessidade e fins exteriores”. Também existe liberdade nesta esfera, mas é uma liberdade limitada, dentro das condições impostas pela necessidade: trata-se do controle democrático, coletivo, dos seres humanos “socializados” sobre seus intercâmbios materiais — seu metabolismo — com a natureza. Em outras palavras: Marx nos falava aqui do planejamento democrático, ou seja, da proposta essencial do programa econômico socialista: a liberdade significa aqui a emancipação em relação ao poder cego das forças econômicas
— o mercado capitalista, a acumulação de capital, o fetichismo da mercadoria.

Voltando ao trecho citado do volume III de O Capital: é interessante observar que não se trata, neste texto, da “dominação” da sociedade humana sobre a natureza, mas do domínio coletivo dos intercâmbios com esta: o que um século mais tarde será um dos princípios fundadores do ecossocialismo. O trabalho continua sendo uma atividade imposta pela necessidade, em face da satisfação das necessidades materiais da sociedade, mas deixará de ser um trabalho alienado, indigno da natureza humana.

A segunda forma de liberdade, a mais radical, a mais integral, a que corresponde ao “Reino da Liberdade”, se situa além da esfera da produção material e do trabalho necessário. No entanto, existe entre as duas formas uma relação dialética essencial: graças a um planejamento democrático de toda a economia, poderá haver uma prioridade ao tempo livre; e reciprocamente, a máxima extensão deste último permitirá que os trabalhadores participem ativamente da vida política e da autogestão, não apenas das empresas, mas de toda a atividade econômica e social, a nível dos bairros, cidades, regiões e países. O comunismo não pode existir sem a participação de toda a população no processo de discussão e tomada de decisões democráticas, não como hoje, por meio de uma votação a cada quatro ou cinco anos, mas de forma permanente — o que não impede a delegação de poderes. Graças ao tempo livre, os indivíduos poderão assumir a gestão de sua vida coletiva, que não será mais deixada nas mãos de políticos profissionais.

O que Marx acrescenta em O Capital IIIao seu argumento de 1844 é o fato de que a autoatividade humana — o terceiro momento apresentado nos Manuscritos econômico-filosóficos — exige, para poder se expandir, tempo livre, tempo obtido pela redução das horas de trabalho “necessário”. Essa redução é, portanto, a chave
que abre a porta para o “Reino da Liberdade”, que é também o “reino do ser”. Graças a esse tempo de liberdade, os humanos poderão efetivamente desenvolver suas potencialidades intelectuais, artísticas, eróticas e lúdicas. É o oposto do universo capitalista de acumulação infinita de mercadorias cada vez menos úteis, da “expansão” produtivista e consumista sem limites e sem medida.

Conclusão: além de seus escritos referentes diretamente à natureza e sua destruição pelo “progresso” capitalista, a obra de Marx contém reflexões que têm, no nível mais profundo, um significado ecológico, por sua crítica ao produtivismo capitalista e por sua imaginação de uma sociedade onde a atividade humana é o centro da vida social, e não a acumulação obsessiva de “bens”. São indicações essenciais para o desenvolvimento de um eco-marxismo do século XXI.

MICHAEL LÖWY

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