DEVEMOS SONHAR – ANTECIPAÇÃO EESPERANÇA COMO CATEGORIAS DO MATERIALISMO HISTÓRICO

ERNEST MANDEL

Este texto foi a contribuição de Ernest Mandel para um colóquio comemorativo de 1978 para o filósofo marxista Ernest Bloch (1885 -1977) e foi publicado pela primeira vez em 1980¹.Neste artigo Mandel usa categorias desenvolvidas por Bloch, como as de Ainda Não e Real Possível, para examinar a necessidade de incorporar as noções de futuro no pensamento socialista.

Para Bloch, para entender o mundo é preciso incluir a compreensão de seu potencial latente. O mundo tem uma tendência para algo, caracterizado pelo esforço da humanidade para um mundo livre de exploração e miséria, para a Utopia. Ainda não é uma antecipação desta meta, e se manifesta de diferentes formas; “o que ainda não é consciente em seu conjunto é a representação psicológica do que ainda não é em uma época e seu mundo, na Frente do mundo”².O real possível é a latência não ilusória para o

ERNEST MANDEL (1923-1995) economista belga, intelectual marxista prolífico e ativista revolucionário incansável, dirigente da Quarta Internacional.

Texto traduzido ao português a partir de https://www.iire.org/in dex.php/es/node/941 em 26.dez 2024.

Revisado por Carlos Henrique Árabe.

  1. H. van den Enden (ed.), Marxismo van de hoop – hoop van het marxisme? Ensaios sobre a filosofia de Ernst Bloch (Bussum, 1980). Esta tradução é baseada na versão publicada em De Internationale, nr. 48, winter 1994, volume 38, pp. 20-26: [https://www.marxists.org/nede rlands/mandel/1980/1980hoop bloch.htm]. Traduzido da versão inglesa por: Movimento Revolucionário dos Trabalhadores – Equador.
  2. Ernst Bloch, O Princípio da Esperança, Vol I (Cambridge, MA, 1996), p. 127.
  3. Ernst Bloch, O Princípio da Esperança, p. 17.
  4. Frederich Engels, Ludwig FeuerbachandtheEndof ClassicalGermanPhilosophy (1886).
  5. Karl Marx, Capital, Vol. I (1867).

que Bloch chamou de “utopia concreta” do socialismo; “Este caminho é e continua sendo o do socialismo, é a prática da utopia concreta. Tudo o que é não-ilusório, real-possível sobre as imagens- esperança leva a Marx”³.

Simplesmente não podemos evitar o fato de que tudo o que faz os homens agir deve encontrar seu caminho através de seus cérebros, até mesmo comer e beber, que começa como consequência da sensação de fome ou sede transmitida pelo cérebro, e termina como resultado da sensação de satisfação igualmente transmitida pelo cérebro⁴.

A este respeito, Marx se expressa muito claramente no capítulo sete do primeiro volume de O Capital: o trabalho é uma atividade específica da humanidade, é uma atividade consciente em um duplo sentido. Marx não só pressupõe relações articuladas conscientemente entre as pessoas: a produção social e a troca de valores de uso, de bens materiais necessários para a manutenção e a reprodução da vida material, vão de mãos dadas com a produção e troca de sons, palavras e conceitos socialmente entendidos. Além disso, o trabalho humano tem a característica de exigir projetos mentais antecipados na consciência dos produtores como condição para sua realização:

Pressupomos o trabalho de uma forma que o sela como exclusivamente humano. Uma aranha realiza operações que se assemelham às de um tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos na construção de suas celas. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é que o arquiteto levanta sua estrutura na imaginação antes de erguê-la na realidade. No final de cada processo de trabalho, obtemos um resultado que já existia na imaginação do trabalhador no início⁵.

A CAPACIDADE DE IMAGINAR

O produto do trabalho como projeto de trabalho, como realidade material que ainda não foi realizada, é, portanto, um pré-requisito para sua própria realização. A capacidade da humanidade de se antecipar, imaginar, está indissoluvelmente ligada à sua capacidade de fazer trabalho social. O homo faber pode ser homofaber só porque o ser humano é ao mesmo tempo homoimaginosus.

A capacidade humana de formar conceitos, de abstrair, de imaginar e de elaborar projetos, ou seja, a capacidade de antecipar, está por sua vez intimamente ligada às condições de vida materiais e sociais. Mesmo os conceitos e ideias humanos mais elementares, e certamente os mais complicados, não são produtos “puros” da imaginação e do trabalho mental, totalmente independentes e sem relação com a produção material. Em última análise, eles surgem como processamento mental – processamento pelo cérebro humano – de elementos das experiências da vida material. Portanto, são inseparáveis da participação do indivíduo na natureza e na sociedade.

O metabolismo entre a natureza e a sociedade que é a base dessa participação, a necessidade material de produzir e reproduzir a vida da qual surge esse metabolismo. Serve a um propósito humano no trabalho, como diz Marx. Ou na expressão mais ampla de Engels:

As influências do mundo exterior sobre o homem são expressas em seu cérebro, refletem-se nele como sentimentos, impulsos, volições – em suma, como “tendências ideais”⁶.

6. Engels: Ludwig Feuerbach.

Os projetos de trabalho, que surgem na mente humana antes de serem materialmente realizados, são, portanto, em última instância, produtos da realidade material, mesmo quando ainda não foram realizados materialmente. Mesmo a produção de conceitos e do pensamento humano nunca pode ser completamente separada dos processos materiais precedentes e acompanhantes na natureza e na sociedade, mesmo que não sejam imagens especulares puramente mecânicas desses processos. Em vez disso, são elementos que correspondem a processos materiais, mas que são combinados e reprocessados criativamente pela mente humana. Mas ainda são objetivamente determinados por esses processos.

A base material da capacidade humana de antecipar, imaginar e elaborar projetos que ainda não foram realizados baseia-se no instinto de autopreservação, ou seja, no correlato instintivo e inconsciente da compulsão de produzir e reproduzir a vida material a que os humanos estão sujeitos. As maiores manifestações dessa antecipação são o medo e a esperança.

No entanto, enquanto o medo pode ser puramente instintivo – nem sempre e nem necessariamente é assim, mas pode ser, e portanto é um dos instintos mais importantes nos animais – a esperança puramente instintiva é impossível. Por isso, Ernst Bloch sublinhou com razão que mesmo em suas expressões instintivas mais elementares, a esperança já é mais do que puro instinto, já é a capacidade de imaginação, de antecipação ideal. A esperança é, portanto, o instinto humano por excelência. Junto com o trabalho social e a capacidade de formar conceitos e consciência, pertence ao núcleo duro e imutável de nossa especificidade antropológica. O Homofabercomo homoimaginosusé humano porque a humanidade é homosperans.

ESPERANÇA REAL POSSÍVEL

O projeto de trabalho como produto da necessidade e das necessidades materiais está sujeito às condições materiais para sua realização. Nem todos os produtos ideais do nosso cérebro levam à produção de material real. Nem todos os projetos mentais são realmente realizados. Nem toda esperança antecipada se torna rea-

lidade. Somente os projetos de trabalho que atendem às condições objetivas e subjetivas para sua realização são realizados. Nem toda esperança é uma esperança “Real Possível”. Ernst Bloch faz uma clara distinção entre a esperança Real Possível e o sonho ilusionista⁷. É exatamente a capacidade do trabalho mental de combinar conceitos, que apenas em última instância correspondem ou surgem das experiências da vida, nas direções mais divergentes. Essas combinações não refletem necessariamente uma realidade material já existente. Isso leva à distinção entre a antecipação do Real Possível e o sonho ilusório.

7. Nota do tradutor: ‘The Objectively-Real Possible’, O Princípio da Esperança, pp. 235-241.

Mas o Real Possível é, por sua vez, apenas parcialmente predeterminado. Isso ocorre porque os humanos produzem suas próprias vidas da mesma forma que fazem sua própria história. A dimensão ativa de nossa especificidade antropológica define, portanto, um campo intermediário, uma zona de transição entre o que é material, social e historicamente impossível e o que é material, social e historicamente possível. Este campo intermediário inclui todas as mudanças da natureza e da sociedade que já são materialmente possíveis, mas cuja realização depende de uma certa prática humana concreta. Esta prática não surge nem automaticamente nem simultaneamente da existência dessa possibilidade material.

Por outro lado, os limites do que é materialmente possível não são definidos com precisão de antemão em todas as direções. O quadro geral é, em qualquer caso, uma condição dada. Mas dentro desse quadro existem inúmeras variantes e possibilidades.

Uma vez que o método de produção capitalista se tornou dominante, tanto o surgimento da luta de classes proletária quanto, a longo prazo, o desenvolvimento do movimento operário moderno, eram inevitáveis. Mas a forma concreta e específica que esse modo de produção capitalista se desenvolveu, por exemplo, na Grã- Bretanha, França, Alemanha e nos Estados Unidos, seus antecedentes históricos concretos, ou seja, sua história político-social e a história nesses quatro países, as peculiaridades nacionais no surgimento e desenvolvimento do próprio proletariado em cada um desses países, as peculiaridades do movimento ideológico e político que precederam, acompanharam e sucederam à conquista do poder político pela burguesia naqueles países: tudo isso influenciou profundamente o desenvolvimento concreto da luta de classes proletária e do movimento socialista nos cinquenta anos seguintes. Consequentemente, os movimentos operários desses quatro países assumiram formas muito diferentes em um longo período da história. No entanto, o Real Possível inscrevera-se no marco geral do “auge, desenvolvimento, apogeu e declínio do modo de produção capitalista e o consequente aprofundamento de suas contradições internas”.

ANTECIPAÇÃO

Portanto, a realidade histórico-material é sempre uma totalidade aberta e, portanto, uma totalidade incompleta, que inclui pelo menos numerosos desenvolvimentos possíveis diferentes. Algumas dessas possibilidades serão realizadas, outras não. Nada é mais estranho ao marxismo do que o fatalismo histórico ou o determinismo mecânico e economicista.

Em qualquer modo de produção, a luta de classes pode resultar na vitória da classe revolucionária ou na ruína mútua das classes concorrentes: Marx e Engels repetiam isso com frequência. O capitalismo não leva à vitória inevitável do socialismo, mas ao dilema: ou a vitória do socialismo ou a regressão à barbárie. Uma vez que a matéria não é estática e imóvel, mas está em constante

mudança; uma vez que o objeto do pensamento e da prática humana responde a processos da natureza e da sociedade em constante desenvolvimento e mudança; uma vez que a própria prática humana intervém ativamente nesses processos, só podemos nos aproximar de uma compreensão completa dessa totalidade. Em nossa análise deve-se incluir o “Ainda não existente”, mas Real Possível, bem como o que já existe e o que potencialmente poderia desaparecer.

Reconhecer a realidade como uma totalidade contraditória, como uma totalidade em desenvolvimento, impulsionada por todas as suas contradições internas, significa incorporar nesse conhecimento todos os desenvolvimentos possíveis dessa totalidade. A antecipação não é, portanto, apenas uma categoria antropológica, mas também epistemológica, científica, é uma categoria do materialismo histórico, escreve Ernst Bloch:

Precisamente os extremos que anteriormente se mantiveram tão separados quanto possível: futuro e natureza, antecipação e matéria, se unem no fundamento do materialismo histórico-dialético. Sem matéria não há base de antecipação (real), sem antecipação (real) nenhum horizonte da matéria é determinável […] O Real Possível começa com a semente em que o que vem é inerente⁸.

Agora podemos descrever a função produtiva do fator subjetivo junto com sua força motriz instintiva, a esperança, mais precisamente.

Se quero realizar um projeto de trabalho, devo subordinar minha vontade a este objetivo, diz Marx no capítulo sete do primeiro volume de O Capital⁹. Esta subordinação é claro, estimulada por uma atitude subjetiva em relação ao projeto, que não é neutra, mas consiste no desejo e na esperança de alcançá-lo.Os incentivos podem

  1. Bloch, O Princípio da Esperança, pp. 237-238.
  2. Nota do tradutor: “Não só faz uma mudança de forma na matéria em que trabalha, mas também realiza um propósito próprio que dá a lei ao seu modus operandi, e ao qual deve subordinar a sua vontade. E esta subordinação não é um mero ato momentâneo. Além do esforço dos órgãos corporais, o processo exige que, durante toda a operação, a vontade do trabalhador esteja constantemente em consonância com seu propósito”, Marx, Capital.

ser muito diversos. Eles podem variar desde o medo da punição até o desejo de recompensa, do desejo individual, da necessidade consciente, à adesão ao grupo social ou à comunidade que consome o produto do trabalho, ou mesmo ser puro altruísmo. Mas a produção é sempre estimulada pelo desejo e esperança de sua realização bem-sucedida. Quando não existe tal desejo e esperança, ou quando mesmo o contrário é verdadeiro, a realização do projeto se torna consideravelmente mais difícil, ou seja, o produtor se comportará de forma indiferente ou mesmo hostil à produção. Os produtores podem até sabotá-la continuamente (considere a atitude dos escravos ou dos trabalhadores forçados em determinadas circunstâncias). Os produtores que estão totalmente desprovidos de qualquer esperança são maus, ou seja, produtores improdutivos. Esta lei foi confirmada ao longo da história da sociedade humana.

APRÁXIS SOCIAL

O que se aplica à práxis humana elementar aplica-se ainda mais à práxis social totalizadora que tem como objetivo a transformação da própria sociedade. Uma figura histórica e transitória como o líder semifeudal da grande revolução burguesa holandesa, Guilherme, o Silencioso, foi capaz de cunhar o belo e estóico slogan, característico das pequenas minorias conscientemente revolucionárias: Pointn’est besoind’espérerpourentreprendre,nideréussirpourpersévérer’(‘Não há necessidade de esperança para agir, nem de sucesso para perseverar’). No entanto, as grandes massas de pessoas, e ainda mais as classes sociais como um todo, não podem ser movidas a agir por tal motivação. Sua atividade é sempre orientada de forma imediata e direta para o presente. Uma práxis de classe, que quer mudar a sociedade, é em última instância determinada pelos interesses da classe, mas cresce em alcance e eficácia quando é acompanhada de desejos e expectativas, que transmitem esses interesses de uma forma imediatamente compreensível e acessível para as massas.

A esperança de abolir a exploração e a opressão, a desigualdade e a falta de liberdade, ou seja, a esperança de uma sociedade sem classes, acompanhou a luta de libertação do proletariado moderno em todas as etapas da ascensão tempestuosa do movimento operário. Deu-lhe uma energia e uma força motriz que não pode surgir exclusivamente da defesa dos interesses materiais cotidianos. Em todas as épocas e países em que o movimento operário se limitou a essa defesa, essa força motriz foi limitada ou mesmo inexistente, apesar do fato inegável de que na sociedade burguesa essa esperança continua sendo inseparável da defesa dos interesses materiais cotidianos da classe trabalhadora, sem os quais a luta pela emancipação evapora na mera fantasia.

Mas em estreita relação com a esperança, própria do proletariado moderno, do fim da exploração capitalista, mediante a emancipação socialista da classe trabalhadora como veículo da emancipação da sociedade como um todo, há uma antecipação histórica mais antiga.

Como seres socialmente produtores e comunicadores, os humanos são por natureza cooperativos. O salto de uma sociedade sem classes para outra dividida em classes sociais antagônicas, que começou há cerca de 10.000 anos, causou um tremendo choque traumático no sentimento e no pensamento humanos, precisamente porque correspondia muito pouco à nossa natureza cooperativa. É por isso que a história da humanidade não é apenas uma história de lutas de classes, mas também uma história de inúmeras expectativas, projetos, antecipações, lamentações, poemas, contos, discursos filosóficos, planos e batalhas políticas, que giram em torno das ques-tões: Como podemos voltar à”idade de ouro”da sociedade sem classes? Qual é a origem da desigualdade social? Como essa desigualdade social pode ser eliminada?

PROFETAS E REVOLUCIONÁRIOS

Os filósofos gregos e os políticos revolucionários romanos; os profetas judeus e os primeiros pais da igreja cristã; os impetuosos precursores e representantes da Reforma; os primeiros “socialistas utópicos” e os representantes dos movimentos mais radicais dentro das grandes revoluções burguesas levantaram este problema, cada um deles na forma particular que correspondia à sua época, sociedade e classe. No entanto, não se pode exagerar o tremendo poder que resulta da continuidade deste problema e do desenvolvimento autocrítico imanente da resposta ao mesmo. O poeta austríaco Nikolaus Lenau resumiu essa continuidade sintética e simbolicamente no último quarteto de seu épico Die Albigensern:

10. Nota do tradutor: Nikolaus Lenau era o pseudônimo de Nikolaus Franz Niembsch Edler von Strehlenau (1802 – 1850).

Os albigenses foram seguidos pelos valdenses e pagaram com sangue o que sofreram; depois de Huss e Ziska veio Lutero, as cabanas, os anabatistas, os cavaleiros de Cevennic, os grevistas da Bastilha, e assim por diante¹⁰.

Não há dúvida de que a maioria dos proponentes de uma sociedade sem classes que acabaram de ser mencionados eram “utópicos” no sentido de que não tinham uma ideia precisa das condições materiais e sociais prévias para a realização de seu projeto cheio de esperança. Sem dúvida, por outro lado, todas as tentativas práticas e políticas do passado para construir uma sociedade sem classes falharam, pois as condições materiais e sociais para isso ainda não haviam amadurecido. Mas isso não significa de forma alguma que todos os esforços feitos por esses pensadores e lutadores tenham sido inúteis ou mesmo prejudiciais. O oposto é verdadeiro.

Os “socialistas utópicos” prepararam, promoveram e aceleraram o pensamento, a teoria, a ciência e a prática do movimento operário moderno, ampliando enormemente os horizontes do que se acreditava ser possível. Ao fazê-lo, eles também ampliaram o conhecimento da própria realidade social, já que tal conhecimento requer uma atitude rigorosamente crítica em relação a tudo o que existe, tudo o que deve ser considerado como transitório. E é precisamente a integração na análise social do que ainda não existe, no ponto em que este passa de ser um desejo a uma possibilidade real de futuro, o que dá à crítica social um alcance muito mais amplo. Não só o socialismo científico, mas também a economia política clássica inglesa, a filosofia clássica alemã e a historiografia sociológica clássica francesa aprenderam muito mais com os socialistas “utópicos” do que se poderia supor inicialmente. Mesmo sem o trabalho prévio dos “socialistas utópicos”, é provável que eles teriam alcançado seus resultados, mas mais lentamente, com mais dificuldade e com mais contradições. Se, historicamente, o socialismo científico aparece como a superação do socialismo utópico, trata-se de uma superação no sentido hegeliano da palavra, ou seja, que conserva e reproduz seus elementos férteis. E isso pressupõe em todo caso a existência prévia do socialismo utópico, dessa ansiada esperança de uma sociedade sem classes, como fase necessária e fecunda na luta pela emancipação da humanidade trabalhadora.

Quando Ernst Bloch escreve: “A ciência da tendência dialético- histórica do marxismo é, portanto, a ciência futura mediada pela realidade mais a possibilidade objetivamente real dentro dela; tudo isso com o propósito da ação. […] Só o horizonte do futuro, que ocupa o marxismo, com o do passado como antecâmara, dá à realidade sua dimensão real”, expressa uma dupla verdade¹¹.

11. Bloch, O Princípio da Esperança, p. 285.

ESPERANÇA DE REALIZAÇÃO

O conhecimento da realidade é sempre o conhecimento de suas leis de movimento, de suas leis de desenvolvimento. A grandeza do Capital de Marx reside precisamente na descoberta das leis de movimento a longo prazo do modo de produção capitalista, leis que só pararam completamente após a morte de Karl Marx.O próprio Capital, ao contrário de uma crítica comum (e vulgar) muitas vezes repetida, é muito mais uma obra do século XX do que uma obra do século XIX.

Por outro lado, a mudança da realidade – a realização do programa da décima primeira tese sobre Feuerbach, o momento atual do nascimento do marxismo – supõe não apenas uma orientação para o futuro, não apenas a compreensão do que ainda não é uma possibilidade real, mas também a esperança da realização do Real Possível. Requer o esforço de todas as forças mentais, da vontade e dos sentimentos para o objetivo de realizar o Real Possível, mas ainda não alcançado, e o maior esforço do sujeito revolucionário entre a realidade existente e a possibilidade, imbuída de esperança, que deve ser realizada.

Alguém que não está mais com os dois pés no chão da realidade e perdeu a compreensão das condições materiais-sociais, objetivas e subjetivas para a realização do projeto revolucionário não é o único tipo de revolucionário ruim. Os maus revolucionários são também aqueles que se tornaram prisioneiros da realidade existente, que estão tão absortos na rotina diária que perdem a compreensão, a premonição e a sensibilidade para dar uma guinada repentina, inesperada e radical à relação de forças e à atividade da classe revolucionária. Essas pessoas sacrificaram a tensão e orientação para o futuro à limitada agitação diária como de costume, ou o que foi chamado na língua do movimento operário

alemão: die alte bewährte Taktik¹² – e, portanto, serão irremediavelmente surpreendidos, superados e paralisados pelas súbitas erupções vulcânicas da luta revolucionária de massa. Também neste sentido, o pleno conhecimento da realidade não é possível se não se ampliar o horizonte do futuro.

12. Nota do tradutor: “a tática comprovada”; esta fórmula refere-se ao “radicalismo passivo” da corrente kautskiana na social- democracia anterior à Primeira Guerra Mundial. Veja o ensaio de Mandel RosaLuxemburgoe asocial-democraciaalemã.

Depois de agosto de 1914, Lenin, Rosa Luxemburgo e um punhado de internacionalistas não apenas expressaram sua aversão moral à capitulação da social-democracia oficial à guerra imperialista. Também julgaram esta capitulação à luz de uma análise ainda não realizada, mas científica (e não um mero desejo) que está subjacente a uma perspectiva de inevitável intensificação da luta de classes revolucionária resultante dessa guerra mundial. Tal luta resultou da inevitável intensificação das contradições econômicas, sociais, políticas e ideológicas do modo de produção capitalista, contradições das quais a guerra era ao mesmo tempo a expressão e a força motriz. Os acontecimentos do período 1917-1919 mostraram que eles estavam certos. Mas os eventos que acompanharam o fim da guerra mundial adicionam uma dimensão extra à luta de tendências de 1914-1915 no seio do movimento operário internacional. Sem a antecipação desses eventos, sem essa perspectiva, a capitulação de 1914 não pode ser compreendida, explicada e julgada em sua totalidade.

A ARTE DA PREVISÃO

Sem perspectivas revolucionárias, nenhuma política revolucionária genuína é possível e, portanto, nenhuma prática revolucionária real, pelo menos no âmbito do socialismo científico. Em qualquer caso, essas perspectivas devem basear-se em uma análise correta da realidade e não em fantasias, devem partir de uma análise das verdadeiras contradições socioeconômicas e revelar sua dinâmica, devem examinar se e por que essas contradições diminuem ou, pelo contrário, se intensificam, e não partir de um desenvolvimento abstrato e desejado.

As perspectivas significam uma relação com o futuro, ou seja, a antecipação, a esperança e o medo, são aspectos decisivos de qualquer atividade política, seja ela proletária, pequeno burguesa ou burguesa. Depois de perder seu caráter revolucionário, a burguesia definiu a política como “a arte do possível”. O austro- marxista Otto Bauer mudou este ditado ao definir a política como “a arte da previsão”. Este é sem dúvida um passo além do cidadão de mente estreita, que pelo conservadorismo social teme qualquer mudança importante e que deseja limitar a política a passos pequenos e sem importância. Mas o ditado de Bauer também revela a dimensão passiva e fatalista do austromarxismo: na “arte da previsão” o elemento ativo e transformador da política está totalmente ausente. Para o marxismo, a política é a arte de deslocar ao máximo os limites do possível em benefício dos interesses da classe trabalhadora (e do progresso de toda a humanidade), com base em uma perspectiva científica do que é objetiva e subjetivamente possível, se se ampliar ao máximo a mobilização e a iniciativa das amplas massas e a prática do partido revolucionário permanece plenamente integrada nessa perspectiva como elemento constitutivo da realidade em desenvolvimento.

A esperança e o medo da revolução desempenharam um papel decisivo nas divisões dentro do movimento operário internacional após agosto de 1914. Inicialmente, os social-democratas de direita justificaram sua capitulação diante da guerra imperialista argumentando que o contato com as massas não deveria se perder e que estas, afinal, estavam entusiasmadas com a guerra. No entanto, alguns anos depois, quando em países como Rússia, Alemanha, Áustria, Hungria e Itália, essas mesmas massas se voltaram com tanto entusiasmo contra a guerra e a favor da revolução, o argumento mudou repentinamente. Agora, a necessidade de “defender incondicionalmente os princípios” foi descoberta de repente, assim como “o senso de responsabilidade” e “a coragem de ser impopular”. A conclusão que pode ser tirada disso é que a adaptação automática ao “movimento de massas” não foi o verdadeiro motivo da capitulação de agosto de 1914. E sem dúvida nos anos 1917-1920 o medo da revolução; o medo do risco de perder as conquistas duramente alcançadas; o medo de pular para o desconhecido; o medo de romper com a rotina diária, desempenhou um papel psicologicamente decisivo. Como marxistas, devemos vincular esse medo com os interesses sociais e materiais de um estrato conservador do movimento operário.

Na direção oposta, a esperança da revolução acendeu a ala radical da classe trabalhadora e do movimento operário tão rápido quanto os desenvolvimentos revolucionários começaram a tomar forma e a se tornar realidade. A antecipação se tornou uma experiência, o projeto político se tornou o alvo da ação política em massa.

Estamos vendo algo semelhante com o chamado eurocomunismo. Neste fenômeno, muitas tendências se cruzam. Para explicar o eurocomunismo é preciso levar em conta numerosos processos históricos, sociais, econômicos, políticos, ideológicos (entre outras coisas, a lógica interna do revisionismo teórico) e até psicológicos individuais (por exemplo, o choque traumático da experiência pessoal de alguns dos excessos do estalinismo. Ver neste contexto o livro de 1978 de um antigo dirigente do Partido Comunista Espanhol, Jorge Semprún, Autobiografia de Federico Sanchez). Mas parece-nos evidente que o desenvolvimento de muitos partidos comunistas numa direção eurocomunista foi (e é) determinado em parte pela convicção de que nos países ocidentais a revolução não estará na ordem do dia por muito tempo, o que significa que é impossível, e a maioria chega à conclusão adicional de que a revolução também é indesejável, porque em qualquer caso daria origem a uma derrota catastrófica. Desta perspectiva, as conclusões estratégicas seguem logicamente; o mesmo aconteceu de forma semelhante à social- democracia clássica antes e depois da Primeira Guerra Mundial.

ESPELHO DA SOCIEDADE

A transformação socialista da sociedade significa a primeira tentativa na história da humanidade de empurrá-la conscientemente por caminhos conscientemente escolhidos, a partir de uma transformação consciente da economia e do Estado, com o objetivo de alcançar uma sociedade sem classes e a abolição do Estado. Ao mesmo tempo, o fato de que a realização deste projeto depende em grande medida da capacidade dos explorados e oprimidos de se organizar e se libertar, torna-o ainda mais ousado e as dificuldades para realizá-lo ainda mais evidentes. Este projeto libertador e antecipado é a culminação dos resultados assimilados criticamente de todas as ciências sociais, bem como dos resultados teóricos e práticos dos pensadores utópicos-revolucionários e das revoltas de massas precedentes.

O caráter antecipatório deste projeto é, por sua vez, apoiado e estimulado afetivamente pela esperança de sua realização, uma esperança e um impulso que fecundam a atividade revolucionária dos indivíduos, grupos e classes sociais, na medida em que respondem ao mesmo tempo a uma convicção racional sobre a necessidade e a possibilidade histórico-material de realizar o projeto. A interação entre a tendência objetiva e seu correlato no campo da esperança humana é expressa de forma aguda no comentário de Trotsky sobre o papel “útil” da literatura:

Se alguém não consegue sobreviver sem um espelho, mesmo se barbeando, como pode reconstruir a si mesmo ou sua vida, sem se ver no “espelho” da literatura? Claro que ninguém fala de um espelho exato. Ninguém pensa em pedir à nova literatura que tenha uma impassibilidade como a de um espelho. Quanto mais profunda for a literatura, e quanto mais imbuída estiver do desejo de moldar a vida, mais significativa e dinamicamente será capaz de “imaginar” a vida.¹³

13. Leon Trotsky, Literaturae revolução (1924).

A teoria da sociedade socialista, de sua economia, de sua ordem política, do necessário desaparecimento da produção de mercadorias e do Estado, de sua permanente transformação cultural, de seu internacionalismo e de sua dinâmica emancipatória global tem sido amplamente desenvolvida, mas ainda não está totalmente desenvolvida. Além de um forte elemento de processamento crítico (e autocrítico) de todas as experiências históricas das revoluções proletárias do passado, há também um elemento crescente de antecipação ainda não confirmado empiricamente. Tal antecipação tornou-se indispensável para a coerência interna da teoria e aos olhos das massas para a persuasão da política que informa. Após a catástrofe histórica do stalinismo, os marxistas não podem mais se dar ao luxo de se limitar a proclamações do tipo: “Vamos derrubar o capitalismo primeiro”. Que tipo de sociedade será construída então, como será o socialismo em termos concretos, vamos deixar para o desenvolvimento histórico (ou para as gerações futuras)”. Hoje, deixar de lado a antecipação socialista do projeto revolucionário concreto significa torná-lo implausível aos olhos das amplas massas.

UMA VISÃO DO FUTURO

Uma visão concreta do futuro socialista – preferimos esta redação à fórmula da “utopia concreta”, porque estamos convencidos de que a realização deste tipo de socialismo é um Real Possível – tornou-se hoje um pré-requisito para a atividade política prático- revolucionária nos países desenvolvidos do Ocidente. Nestes países industrializados, o proletariado não derrubará o capitalismo se não estiver convencido de que existe uma alternativa concreta ao capitalismo. Você precisa estar convencido de uma alternativa que seja profundamente diferente e superior quando comparada tanto ao capitalismo quanto ao chamado “socialismo realmente existente” dos países do bloco Oriental, que não é socialismo de forma alguma!

Centenas de milhares de revolucionários de todo o mundo já aguardam a realização de tal projeto. Assim, eles são capazes de evitar a resignação às catástrofes a que o mundo burguês se dirige, bem como o desespero autodestrutivo. Essa mesma esperança acabará por inspirar as massas em uma escala cada vez maior e contribuirá decisivamente para o avanço em direção ao socialismo mundial.

Setenta e cinco anos atrás, um então pouco conhecido jovem revolucionário escreveu um tratado prático sobre a necessidade de um jornal revolucionário como organizador coletivo da vanguarda da classe trabalhadora. Ele escreveu em benefício de um pequeno grupo de socialistas ilegais que, sob uma ditadura sangrenta, haviam dado os primeiros passos para o desenvolvimento de um movimento operário moderno. Este tratado contém uma ode peculiar ao sonho (ou esperança), que muito raramente foi apontada pelos inúmeros leitores deste panfleto. Aqui está a passagem:

Devemos sonhar!” Escrevi estas palavras e fiquei alarmado. Imaginei-me sentado numa “conferência de unidade” e à minha frente estavam os editores e colaboradores de Rabocheye Dyelo. O camarada Martynov se levanta e, voltando-se para mim, diz severamente: “Permita-me perguntar-lhe, um conselho editorial autônomo tem o direito de sonhar sem primeiro pedir a opinião dos comitês do Partido?” Ele é seguido pelo camarada Krichevsky; que (aprofundando filosoficamente o camarada Martynov, que há muito tempo aprofundou o camarada Plekhanov) continua ainda mais severamente: “Vou mais longe. Pergunto, um marxista tem algum direito de sonhar, sabendo que segundo Marx, a humanidade sempre se fixa nas tarefas que pode resolver e que a tática é um processo de crescimento das tarefas do Partido que crescem junto com o Partido?”.

A simples ideia dessas perguntas severas me faz tremer de frio e me faz desejar apenas um lugar para me esconder. Vou tentar me esconder nas costas de Pisarev.

“Há fissuras e rupturas”, escreveu Pisarev sobre a ruptura entre sonhos e realidade. “Meu sonho pode antecipar a marcha natural dos eventos ou pode voar na tangente em uma direção em que uma marcha natural dos eventos nunca ocorrerá. No primeiro caso, meu sonho não causará qualquer dano; pode até apoiar e aumentar a energia dos trabalhadores Não há nada em tais

sonhos que distorça ou paralise a força de trabalho. Pelo contrário, se o homem fosse completamente privado da capacidade de sonhar desta forma, se não pudesse de vez em quando avançar e conceber mentalmente, em um quadro

14. Nota do tradutor: Nikolaus Lenau era o pseudônimo de Nikolaus Franz Niembsch Edler von Strehlenau (1802 – 1850).

avançar e conceber mentalmente, em um quadro inteiro e completo, o produto ao qual suas mãos mal começam a moldar, então não consigo imaginar de forma alguma que estímulo haveria para induzir o homem a empreender e completar um trabalho extenso e extenuante na esfera da arte… A lacuna entre os sonhos e a realidade não causa nenhum dano se o sonhador acredita seriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida, se compara suas observações com seus castelos no ar e se, em geral, trabalha conscienciosamente para a realização de suas fantasias. Se houver alguma conexão entre sonhos e vida, então está tudo bem.”

Este jovem revolucionário se chamava V.I. Lenin, a citação é de Que fazer?¹⁴ Lenin é considerado a personificação da Realpolitik revolucionária. Aparentemente, a antecipação, as esperanças e os sonhos não são apenas categorias do materialismo histórico, mas também categorias da Realpolitik revolucionária.

ERNEST MANDEL

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