É NECESSÁRIA UMA VIRADA À ESQUERDA

Em um ano e meio de governo demos passos decisivos, mas ainda insuficientes para levar à frente o programa democrático antineoliberal. 

Dentre as grandes vitórias, a maior de todas foi, obviamente, a derrota de Bolsonaro e a eleição de Lula. Era o objetivo político número zero. 

Sabíamos que essa era a condição sine qua non para o enorme esforço de reconstrução e transformação do país. Esse grande impulso permitiu recompor, parcialmente, a capacidade de gasto público alcançada nos nossos governos anteriores; especialmente, viabilizou o novo Bolsa Família. Foi capaz também de retomar a elevação real do salário mínimo como alavanca mais consistente de distribuição de renda.

Há que destacar que o Brasil voltou à cena internacional com a defesa da paz frente às guerras sustentadas pelo imperialismo ianque. 

Mais recente, a defesa do povo gaúcho com medidas concretas face à catástrofe — decorrente da desconstrução neoliberal do estado que inviabilizou qualquer plano de prevenção face à mudança climática — mostrou-se à altura de um governo democrático antineoliberal. Outras vitórias parciais podem ser mencionadas em vários recortes das políticas sociais e de recuperação do espaço público diante da destruição promovida pela ultradireita do neoliberalismo. 

De outro lado, não há como omitir a claudicação face ao neoliberalismo no chamado “arcabouço fiscal” concedendo ao argumento de força do trio Malan/Armínio/Bacha¹ que, no segundo turno, ao declarar seu voto em Lula, deixou evidente a condição para esse voto: a de que, no seu jargão, a “responsabilidade fiscal” é pré-requisito para a “responsabilidade social”. 

Vale dizer, primeiro garantir os interesses do capital financeiro. É um argumento de força para expressar a voz do capital financeiro no seu veto ao Estado como coordenador do desenvolvimento e como distribuidor de renda. Seu argumento técnico, a suposta insustentabilidade da razão dívida/PIB, mostrou-se falso ao longo dos anos 2004-2010, quando o peso relativo da dívida pública foi reduzido pelo próprio crescimento econômico. 

A equação conciliatória não está funcionando, gerando atritos nas duas pontas. É fustigada pelo BC. Como consequência, tenta-se comprimir o gasto público. 

Frente à enorme concessão representada pelo arcabouço fiscal manifestamos em declaração de voto de deputados federais nossa crítica, que continua atual. Nela está o alerta de que os pisos constitucionais para a saúde e educação, assim como os efeitos distributivos do salário-mínimo valorizado, possam ser atacados pela lógica do arcabouço. 

A concessão neoliberal turvou o ritmo e a direção da dinâmica do governo. E o seu discurso de futuro. Esse é o problema principal de comunicação do governo: na centralidade da política econômica estabeleceu-se a contradição com o programa antineoliberal. 

Compõe ainda esse quadro outros elementos. 

A não abertura de um caminho para a recuperação dos direitos do trabalho usurpados na reforma Temer é uma omissão evidente que não pode ser contornada por tentativas de enfrentar o problema nas margens, como na questão do trabalho via aplicativos. 

O recente autoritarismo de representantes do governo na negociação com professores e técnicos das universidades e institutos federais deve ser resolvido democraticamente com a retomada de negociações. Duas e opostas são as consequências estratégicas dessa situação de conjunto.

Por um lado, a perda de vigor do movimento que elegeu Lula. Atrelado aos limites do governo, vive passivamente seus impasses. Ora, nosso programa exige um movimento ativo, capaz de defender posições além daquelas que o governo consegue realizar. É um movimento para mudar a correlação de forças e não para subordinar-se a elas. Por isso precisa ir além dos limites governamentais. 

Por outro lado, o bolsonarismo viceja, continua ativo, apesar de golpeado. Sua atividade mostra que a legalidade não é suficiente para contê-lo. Além disso, vem se nutrindo de um realinhamento progressivo da burguesia às suas fileiras. Movimenta-se para antecipar a disputa de 2026. 

Continua, portanto, na ordem do dia a luta pelo programa democrático antineoliberal, por um horizonte para o ciclo aberto com a vitória do PT e da esquerda sobre a extrema direita. Vale dizer, reativar a capacidade da esquerda disputar os rumos da sociedade brasileira. 

Desde o 8 de março, o movimento de mulheres têm mostrado essa possibilidade. As mobilizações em torno de bandeiras históricas foram significativas e deram força para ir às ruas agora contra a direita e a extrema direita exatamente em um tema central: o aborto e o direito das mulheres de decidir e ser assistidas pelo sistema público de saúde. Essa atitude coletiva puxou o governo virtualmente passivo até então. 

A greve da educação no Paraná mobiliza pelo caráter público e democrático da educação, contra a privatização e o obscurantismo, na mais autêntica pauta democrática antineoliberal. Enfrenta a extrema direita, o oligopólio da educação e a repressão oficial. 

Essas grandes manifestações evidenciam que o combate democrático para vencer o neoliberalismo e o conservadorismo precisa se desenvolver amplamente, tanto social quanto institucionalmente. E cobra posição programática e protagonista do governo Lula. 

Afinal, qual é o programa democrático antineoliberal? Fundamentalmente, é o que o Lula defendeu na eleição. Está nas páginas do plano de reconstrução e transformação organizado pela Fundação Perseu Abramo. Está nos melhores momentos dos governos do PT. Tem lacunas importantes, mas expressa a fundamentação prática e teórica que acumulamos para superar o neoliberalismo e avançar a democracia com participação popular. Sem isso, os problemas reais de hoje se transformarão em impasses e riscos de derrotas catastróficas. 

A virada necessária à esquerda é defender o programa democrático antineoliberal. 

Nossa 4ª Plenária da Democracia Socialista continua atualíssima: 

“Longe de esgotar-se na eleição de Lula, a luta democrática antineoliberal ganhou novos desafios e não menos dramáticos dos que os já enfrentados desde o golpe à Presidenta Dilma à prisão de Lula. O PT foi capaz de organizar a resistência e construir um movimento democrático e popular para eleger Lula no qual um programa democrático antineoliberal e a unidade da esquerda foram essenciais. Essas dimensões estratégicas continuam essenciais um ano depois de Lula assumir a presidência da República. 

Um governo de esquerda deve implementar o programa que o elegeu e para isso enfrenta o desafio de permanentemente construir correlações de forças mais favoráveis a esse objetivo. A dialética entre governo e o movimento em torno do programa democrático antineoliberal passa a ser a dinâmica fundamental.” 

REVISTA DEMOCRACIA SOCIALISTA | NÚMERO 13 | JUNHO 2024 

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