ENTRE LUTAS E CONQUISTAS: CONSTRUINDO FEMINISMO NO PT

A participação e a presença das mulheres na formação do Partido dos Trabalhadores (PT) é marca singular na história dos partidos políticos no Brasil. Com sua militância, as mulheres se colocaram o desafio de construir um partido em que o compromisso de romper com as desigualdades de gênero fosse uma ação cotidiana, para além das menções nos documentos e programa do partido.

A partir de meados dos anos 1970, o Brasil viveu um intenso processo de mudanças políticas. As fissuras que vão se acumulando no regime militar [1964-1985] deixaram entrever um descontentamento social que se distribuiu para além de organizações locais. Foi um período de grande efervescência polí- tica, de contestação à ditadura militar, da formação de movimentos populares massivos. Essa é uma história já conhecida. Com origens

TATAU GODINHO é doutora em Ciências Sociais e autora de artigos nas temáticas do feminismo, participação e políticas para as mulheres. Foi secretária de Políticas do Trabalho e Autonomia Econômica das Mulheres no governo federal (2011-2016) e coordenou políticas para as mulheres na cidade de São Paulo (2001-2004). Militante do PT desde a fundação, integrou a direção nacional do partido, dedicando-se à organização das mulheres petistas.

Participa da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da Coordenação Nacional da DS.

e trajetórias diferentes, tais movimentos – o sindicalismo combativo, as várias vertentes dos movimentos populares urbanos, o movimento estudantil, movimento negro, movimento de mulheres, movimento pela anistia, as lutas no campo etc. – participaram de um intenso processo de mobilização que marcou o período de transição da ditadura para a chamada “Nova República”. As mudanças no perfil da sociedade brasileira impactaram de forma significativa a situação das mulheres. Com o intenso processo de urbanização, concentração populacional em bairros populares nas periferias das grandes cidades ou em comunidades, com o fortalecimento e expansão de uma classe trabalhadora industrial se estabelecendo em municípios em torno das capitais, houve uma ampliação das demandas no setor de serviços e crescimento explosivo de reivindicações, diante de um enorme arrocho salarial e de concentração de riqueza. Com diversidades regionais, esse foi o caldo onde se desenvolveram grandes movimentos de bairro, movimentos populares em torno de demandas sobre condições de vida. Ganham destaque os movimentos contra o alto custo de vida, protestos contra a carestia, mas também em torno de demandas por serviços sociais, como habitação, transporte, saúde, os movi- mentos de luta por creches, boa parte envolvendo prioritariamente mulheres.

A imprensa alternativa resistente à censura ampliou sua difusão; formam-se contestações diretas ao regime como o movimento pela anistia; aos poucos, o movimento estudantil retomou espaço público nas universidades; espaços de discussão acadêmica ganharam contorno de crítica social e política; os resultados das eleições de 1978 mostraram que o sistema bipartidário imposto pela ditadura já se encontrava bastante abalado. É um período de renovação da militância de esquerda no país que encontrou e construiu caminhos nesse novo caldeirão que voltou a mobilizar a luta social no Brasil, em que novos e antigos militantes vão se engajar.

Notícias, informações das dinâmicas de organização das mulheres, dos novos temas e questionamentos levantados pelo feminismo se disseminaram na atuação das mulheres inseridas nessas brechas de organização social. Com algumas atividades anteriores, é entre 1975 e 1980 que foram ganhando fôlego iniciativas que fermentaram a organização das mulheres como movimento: a criação de jornais feministas de imprensa alternativa, a formação do Movimento Feminino pela Anistia, a proposição feita pela Organização das Nações Unidas (ONU) de 1975 como ano internacional da mulher, a forte presença das mulheres nos movimentos populares de base, onde setores progressistas da Igreja Católica tinham grande presença na organização das mulheres, muitas vezes a partir dos Clubes de Mães, nas mobilizações de luta por creches, nos movimentos contra a alta do custo de vida. Nesse contexto, também retomaram a atuação militantes políticas que, presas durante os anos de repressão, iam saindo da prisão. Em especial, após 1979, com a Anistia, retornam ao Brasil exilados políticos com diferentes expectativas e experiências; entre eles, militantes mulheres que traziam na bagagem uma experiência com o movimento e os debates feministas, em particular, na Europa. Nas distintas atividades também se envolveram militantes de esquerda que permaneceram no país de forma clandestina ou semiclandestina, compondo essa rede de ativistas de origens e orientações diversas que estavam presentes na oposição à ditadura. As formas de organização das mulheres foram se multiplicando: “no início dos anos 1980, chegavam a quase uma centena os grupos feministas espalhados pelos principais centros urbanos do país. Tanto

  1. V. Soares, “Movimento feminista. Paradigmas e desafios”, em Revista Estudos Feministas, n. especial, 2/1994. p. 15.
  2. S. Alvarez, “Politizando as relações de gênero e engendrando a democracia”, em A. Stepan (org.). Democratizando o Brasil; p. 316.
  3. Houve uma forte retomada das mobilizações das mulheres a partir da década de 1960 em praticamente todo o mundo. Na América Latina, nos anos 1970 e 1980, essas mobilizações se vincularam em sua maioria às lutas contra os regimes ditatoriais em cada país. Sobre esse processo em alguns países, ver a coletânea organizada por J. M. Pedro e C. Wolff, Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul. Também a coletânea organizada por J. Jaquette, The Women’s Movement in Latin America: Participation and Democracy.

no Brasil como em países da América Latina, “as mulheres se fizeram e se fazem sentir através de uma multiplicidade de expressões organizativas, uma infinidade de reivindicações e formas de luta”¹.

É nessa forte confluência de uma rica mobilização de mulheres nos movimentos populares, nos bairros, nas lutas cotidianas por condições de vida, com um debate feminista fomentado principalmente por militantes de esquerda e oriundas da luta contra a ditadura, que se reorganiza o movimento no Brasil, forçando uma agenda inovadora na sociedade, construindo uma “politização do gênero”, como caracterizado por Sonia Alvarez, quando o que se consideravam questões privadas, pessoais ou do âmbito familiar passam a ser objeto de reivindicação política. Entre nós, o reconhecimento das mulheres como sujeito é um processo forjado na sua presença significativa nos movimentos populares no final da ditadura e nos primeiros anos da chamada “Nova República”². Vale lembrar as semelhanças com vários países da América Latina, com as peculiaridades de cada formação social, em que os processos de luta e organização das mulheres cresceram profundamente vinculados à resistência aos regimes políticos ditatoriais que se espalhavam pelo continente³.

A riqueza e singularidade desta nova dinâmica de organização das mulheres como movimento criou uma demanda de mudança radical nas relações sociais, exigiu nova forma de ver o mundo, trouxe um novo sujeito para a luta política que não se propunha a ser apenas um interlocutor, mas um sujeito que se apresentava incontornável às distintas organizações políticas, não apenas aos partidos, cobrando mudanças em seu funcionamento, em suas pautas, na sua representação e em seu projeto geral para a sociedade.

É nesse contexto que vai se formar o Partido dos Trabalhadores (PT). Desde seus documentos iniciais, o partido faz questão de explicitar essa origem que será reiterada e reconhecida ao longo de sua história, como aparece na Declaração Política (outubro, 1979) aprovada pela Comissão Coordenadora Provisória do Movimento pelo PT:

A ideia do Partido dos Trabalhadores surgiu com o avanço e o fortalecimento desse novo e amplo movimento social que, hoje, se estende das fábricas aos bairros, dos sindicatos às comunidades eclesiais de base: dos Movimentos Contra a Carestia às associações de moradores; do Movimento Estudantil e de intelectuais às associações profissionais; do movimento dos negros ao movimento das mulheres, e ainda outros, como os que lutam pelos direitos das populações indígenas.⁴

4. “Declaração Política. Comissão Coordenadora Provisória do Movimento pelo Partido dos Trabalhadores”, 13 de outubro de 1979. Partido dos Trabalhadores. Resoluções de Encontros e Congressos, 1979-1988, p. 55. Todos os textos oficiais dos Encontros e Congressos do PT terão a página referida nesta publicação. Na bibliografia, ao final, encontra-se o link do documento específico, sempre que disponível no Acervo digital do Centro Sérgio Buarque de Holanda de Documentação e Memória Política da Fundação Perseu Abramo (CSBH-FPA).

Uma história e uma formação que não é linear. A diversidade dos processos de formação do PT nos diferentes estados e regiões do país também se expressa na experiência da atuação e dos enfrentamentos vividos pelas mulheres petistas. O objetivo deste texto é refletir sobre os anos de formação do PT e de formação do feminismo no PT. Abordando as discussões, tensões e desafios vividos na construção de uma identidade feminista para o partido, no momento em que o PT também se organizava e enfrentava os dilemas da disputa de projetos políticos para o país saindo da ditadura, o texto vai se concentrar nas questões que estavam presentes na elaboração e na organização das petistas nesse primeiro momento que corresponde aos três primeiros encontros nacionais das mulheres, até o I Congresso Nacional do PT, realizado em 1991. Não se pretende, com esse texto, trazer um balanço geral da construção partidária ou a história do feminismo no PT, mas refletir sobre elementos que constituíram uma visão de feminismo vinculado a um projeto político partidário e alguns desafios vividos na relação com o movimento.

DESAFIOS DAS MULHERES DO PT

5. PT-Mulheres. “Mulher e PT. Uma proposta de discussão e trabalho”. Comissão de Mulheres – PT São Paulo, 11 de junho de 1981 (mimeo); 1º Encontro Nacional sobre Movimento de Mulheres, 1982. Relatório e Textos Preparatórios; 2º Encontro Nacional de Militantes Petistas do Movimento de Mulheres, 1988. Relatório e Texto-base. Acervo CSBH-FPA.

Os documentos elaborados pelas mulheres petistas nos primeiros anos de formação do partido buscaram expressar uma posição coletiva, de um coletivo que se formava, e apresentaram, em grande parte, uma agenda de trabalho recorrente: introduzir e elaborar para o conjunto do partido uma compreensão do que é e como opera a opressão das mulheres; organizar uma visão do partido sobre o movimento de mulheres no Brasil; dinamizar um processo de auto-organização das mulheres no partido; e comprometer o PT com a agenda de demandas apontadas pelo movimento⁵.

Essa agenda se inseria, por sua vez, em um desafio muito maior. Era preciso disputar a política defendida pelo PT, ou seja, implicar todo o partido na ideia de que seu projeto para o país, sua perspectiva de mudança social, de enfrentamento do capitalismo não seria integral, e nem mesmo efetivo, se não incorporasse o feminismo na centralidade da sua luta.

A LUTA DAS MULHERES NÃO
DIVIDE A CLASSE TRABALHADORA.
SEM FEMINISMO NÃO HÁ SOCIALISMO

A relação entre feminismo e socialismo teve destaque nas duas primeiras décadas nas discussões e na organização das mulheres no PT. O partido como um todo estava construindo sua identidade, sua visão sobre a luta social no Brasil, seu sentido de classe, envolvendo

as perspectivas de mudança futura para articular sua ação. Profundamente enraizado nas lutas sociais no país, o Manifesto de fundação, aprovado em 10 de fevereiro de 1980, afirma que o “PT pretende ser uma real expressão política de todos os explorados pelo sistema capitalista”, atuando para que “o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores”⁶. Em diferentes formulações, os debates sobre o caráter do PT e sua perspectiva socialista estavam presentes desde o primeiro momento. Uma síntese de como ocorriam as discussões pode ser encontrada pela primeira vez nos documentos do partido no discurso feito por Lula, na 1a Convenção Oficial, em 27/09/1981. Atendendo aos requisitos da legislação, a Convenção Oficial formalizou os resultados do 1º Encontro Nacional do PT, realizado em agosto daquele ano.

Respondendo também às críticas existentes fora do âmbito partidário, de que o PT não se posicionava explicitamente, o discurso de Lula declara que o partido defende uma sociedade que, “como diz nosso programa, terá de ser uma sociedade sem exploradores. Que sociedade é esta senão uma sociedade socialista?” E enfatiza o caráter aberto desta perspectiva, afirmando que “o socialismo que nós queremos irá se definindo nas lutas do dia a dia, do mesmo modo como estamos construindo o PT”⁷.

  1. PT-“Manifesto de Lançamento”. Aprovado pelo Movimento Pró-PT em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion (SP), e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1980. PT- Resoluções de Encontros e Congressos, 1998. cit. p. 65-7.
  2. “Discurso de Luiz Inácio Lula da Silva na 1ª Convenção Nacional do Partido dos Trabalhadores”, em 27/09/1981. PT-Resoluções de Encontros e Congressos, p. 113- 14.

O horizonte da discussão era, por um lado, com as tradiçõesda esquerda no Brasil e setores da intelectualidade que viam com desconfiança a novidade que o projeto de um partido dos trabalhadores como o PT introduzia no quadro partidário familiar à esquerda em geral e, em particular, no caso brasileiro. Mas era também um debate interno, tanto da formação e concepção de partido como da identidade de seu programa.

No bojo desses debates, para as militantes mulheres era preciso convencer o partido de que a luta e a organização das mulheres não dividiam os trabalhadores como classe. Tarefa central dessas militantes era mostrar que – essa luta e essa organização – precisavam ser incorporadas pelo conjunto do partido na coluna vertebral de seu programa, como necessidade estratégica na mobilização da luta social e instrumento de mudança geral. A questão traz elementos muito concretos para o cotidiano da atuação política da esquerda como um todo – partidos, organizações sindicais, organizações do movimento social e popular, intelectualidade –, e permanece central e desafia a construção do partido ainda hoje. Vale ressaltar que não se trata exclusivamente de uma questão teórica. Ela se manifesta na construção prática das prioridades políticas, das reivindicações em cada momento, da explicitação ou ocultamento das propostas nos momentos eleitorais; e também nos conflitos e contradições gerados na vida pessoal dos militantes, dirigentes e ativistas diante da perspectiva de mulheres como protagonistas e que traziam temas incômodos.

8. Para uma visão sobre os embates da luta das mulheres no campo da esquerda nos anos1960-1970 no contexto europeu e dos Estados Unidos, ver G. Eley, Forjando a democracia.A história da esquerda na Europa, 1850- 2000; A. Davis, Mulheres, raça e classe; M. Abreu,Feminismo no exílio. Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano deMulheres em Paris.

A tensão que a organização das mulheres e as exigências políticas trazidas pelo feminismo encontradas na formação do PT expressavam um conflito importante, também experimentado pelas mulheres com a esquerda e os movimentos sindicais fora do Brasil nas duas décadas anteriores, nos anos 1960 e 70, como mostra a história do feminismo particularmente nos países europeus, mas também na América do Norte⁸. Os embates, naquele contexto, eram – como ainda são entre nós – tanto entre uma visão de luta principal/ lutasecundária, ou a definição recorrente de “prioridades táticas” que deixam as reivindicações das mulheres sempre no final

da fila, ou ainda a desqualificação reiterada de que as mulheres não estão preparadas para a direção. Naquele primeiro momento, o incômodo causado pelas pautas e cobranças trazidas à superfície pela nova dinâmica do feminismo e da organização das mulheres gerou conflitos diretos e encontrou muitas vezes uma barreira explícita à sua incorporação nos partidos, sindicatos e organizações políticas.

No Brasil, a construção do PT ocorreum pouco depois, no contexto dos anos 1980. Seja por sua peculiar formação, profundamente vinculada às lutas dos movimentos sociais do período para além do movimento sindical operário, seja pela multiplicidade de vertentes políticas da esquerda presente na formação do partido, ou ainda pela atuação persistente das militantes, é fato que, com toda a dureza das contradições vividas no cotidiano, o PT foi um terreno fértil para a construção de uma visão de feminismo, de organização política da luta das mulheres profundamente inovadora. Essa inovação só foi possível pela forte presença de militantes feministas que, na diversidade de suas trajetórias e identidades políticas, se dedicaram incansavelmente a essa tarefa: debater com o partido, articular e divulgar uma compreensão das diversas formas de opressão, ao mesmo tempo forjando uma visão política da desigualdade de gênero e da necessária construção das mulheres como sujeito político, da sua organização no interior do partido e em um movimento forte e autônomo. Um desafio gigante.

3. A força de trabalho potencial é definida como o conjunto de pessoas de 14 anos ou mais de idade que não estavam ocupadas nem desocupadas na semana de referência, mas que possuíam um potencial de se transformarem em força de trabalho. Este contingente é formado por dois grupos: I. pessoas que realizaram busca efetiva por trabalho, mas não se encontravam disponíveis para trabalhar na semana de referência; II. pessoas que não realizaram busca efetiva por trabalho, mas gostariam de ter um trabalho e estavam disponíveis para trabalhar na semana de referência.

A questão aparece repetidas vezes nos encontros e reuniões das mulheres no partido, nos folhetos divulgados pelas mulheres do PT, em textos esparsos de revistas ou atividades de formação reiteradas no período. Fazer a vinculação das lutas, projetá-las em um todo de mudança social, foi marca de todo esse período, e vale ser recoloca-

  1. FEMINISMO PT-Mulheres. “Mulher e PT. Uma proposta de discussão e trabalho”.
  2. PT-“Programa”. Aprovado na reunião nacional de fundação do PT, realizada em 31 de maio e 1º de junho de 1980, e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1980. PT-Resoluções de Encontros e Congressos, p. 71.

do hoje, em novos termos e novos contextos, como tarefa central do feminismo petista. Com a linguagem e o contexto dos anos 1980, o primeiro documento mais sistemático da Comissão de Mulheres do PT de São Paulo se joga nessa tarefa: “Logicamente, a opressão das mulheres na sociedade capitalista não está desligada da opressão de classe, mas se articula com ela. O movimento de mulheres não é, pois, um espaço isolado da luta de classes e das lutas políticas”⁹. E segue no compasso de mostrar que não há, que não pode haver, contradição entre luta geral e luta específica.

Daí a insistência de que o partido incorporasse essa visão em seus documentos principais. Desde reconhecer que as discriminações não são secundárias, sem estabelecer hierarquia nas lutas e explicitá-lo, como declara seu Programa de Fundação (1980) que o “PT considera que as discriminações não são questões secundárias”, como também reafirma que lutará pela sua superação “com o mesmo empenho com que luta contra qualquer forma de opressão. Sem isso, a democracia será palavravazia para os trabalhadores, marginalizados social e politicamente, de ambos os sexos e de qualquer raça e cultura”¹⁰. Assim, é recorrente registrar e reiterar o compromisso do partido juntamente com essa compreensão da integração das lutas. No 4º Encontro Nacional do PT (1986), onde aparece uma elaboração mais detalhada do projeto defendido, se reafirma:

O projeto socialista deve incorporar as perspectivas colocadas por diferentes movimentos sociais que combatem opressões específicas – como das mulheres, dos negros, das nações indígenas etc. – indispensáveis para golpear importantes pilares da dominação exercida pela burguesia; deve engajar em profundidade a maioria da população brasileira num processo de transformação do País e construir uma sociedade efetivamente nova; deve, também, englobar movimentos de caráter cultural, nacional ou ambiental (…)¹¹.

Junto a isso, ao longo dos encontros e das discussões coletivas do partido, em cada momento foram introduzidas as reivindicações e demandas do movimento de mulheres e da conjuntura, como igualdade na legislação sobre a família, o trabalho e a sociedade; questões relacionadas ao trabalho e igualdade de direitos como para as trabalhadoras domésticas; salário igual para trabalho igual. Aspectos centrais da autonomia pessoal das mulheres também estão presentes já nos primeiros documentos¹²:

As mulheres têm de possuir os meios para escolher se querem ou não ter filhos, o que implica o reconhecimento da função socialda maternidade, o oferecimento de meios contraceptivos seguros e um atendimento médico permanente em todas as fases de sua vida¹³.

De maneira geral, nos momento sem que as resoluções nacionais do PT abordavam uma concepção sobre a opressão vivida pelas mulheres ou quando indicavam propostas para a intervenção nas conjunturas, elas estão, sistematicamente, apresentadas em um bloco onde também se destaca o enfrentamento aos preconceitos e à desigualdade racial, à opressão sobre os povos indígenas e à homossexualidade¹⁴. Vale a pena chamar a atenção para o fato de essa relação entre classe, raça-etnia, gênero e sexualidade estarem sempre referidas e associadas ao escopo de mudança social proposto no horizonte do partido. A inter-relação entre classe, raça e gênero vai se aprofundando nas discussões do partido como uma necessidade de compreender e enfrentar as distintas formas de opressão na sociedade brasileira, embora sua incorporação nas elaborações do partido nem sempre apareçam como um acúmulo do conjunto.

No 5º Encontro Nacional, realizado em 1987, o enfrentamento ao racismo tem destaque especial apresentando o posicionamento do PT sobre o centenário da abolição, em resolução específica que reforça a denúncia feita pelo movimento negro sobre a farsa da democracia racial.

  1. PT-4º Encontro Nacional do PT – 1986. “Plano de ação política e organizativa do Partido dos Trabalhadores para o período 1986/87/88”. Encontro realizado em 30 e 31 de maio e1º de junho de 1986. PT-Resoluções de Encontros e Congressos, p. 255.
  1. A publicação Feminismo e a organização das mulheres petistas, organizada pela Secretaria Nacional de Mulheres do PT e a Escola Nacional de Formação, traz uma seleção cuidadosa dos trechos presentes nos documentos dos Encontros Nacionais do PT, até o IV Congresso Nacional do partido em 2007.
  2. PT-“Plataforma Eleitoral Nacional. Trabalho, Terra e Liberdade”. 2º Encontro Nacional doPT – 1982. PT-Resoluções de Encontros e Congressos, p. 123. As eleições de 1982 foram no nível federal para Senado e Câmara Federal; no nível estadual (governo, deputados e deputadas estaduais); e municipal (prefeitura, vereadores e vereadoras).
  1. No discurso de Lula, proferido na Convenção Oficial, que registra o 1º Encontro Nacional do PT (1981), aparece em um bloco intitulado “Com os negros, as mulheres e os índios”(p. 109). Na Plataforma Eleitoral Nacional, “Terra, Trabalho e Liberdade”, para as eleições de 1982, é o sétimo dos 12 blocos, chamado “Somos todos iguais: chega de discriminação”(p. 123). No 3º Encontro (1984), voltado prioritariamente a questões organizativas, há apenas a menção do compromisso com as discriminações sociais

“de raça, cor, sexo e idade”(p. 156). Em janeiro de 1985, no Encontro Nacional Extraordinário focado na avaliação da conjuntura (Campanha das Diretas, posição frente ao Colégio Eleitoral, Malufismo, fim do regime militar; plano de ação para a constituinte), a questão não aparece. O Plano de Ação Política, aprovado no 4º Encontro Nacional em 1986, apresenta novamente, de forma mais extensa, item sobre o enfrentamento às opressões das mulheres, dos negros, das naçõesindígenas, como reproduzido acima, afirmados, junto com outras questões, em um propósito de constituir “uma visão de mundo e de uma prática política efetivamente libertária”(p. 255-6). E aponta propostas específicas para a ação de governos do PT, nas áreas de saúdeintegral das mulheres, no enfrentamento à violência, no que hoje vemos como políticas decuidados, na atenção a crianças, jovens e idosos (p. 285). O 4º Encontro também aprova arealização de um encontro de mulheres do partido para discutir e apresentar subsídios para aposição do PT na Constituinte. O 5º Encontro (1987) menciona a necessária incorporaçãoda perspectiva dos movimentos das mulheres, dos negros, dos jovens dos homossexuais àvisão de socialismo (p. 317), referindo-se com destaque ao feminismo; e novamente remetea esses movimentos (p. 335 e 337). O 6º Encontro (1989), que discute as bases para o Planode Ação de Governo (PAG) para as eleições de 1989, é o documento mais detalhado dessaépoca e apresenta todo um capítulo específico, “Por um Brasil de homens e mulheres livrese iguais” (p. 415-17). Ver PT-Resoluções de Encontros e Congressos.

15. PT-“As bases do PAG. Plano de Ação de Governo”, para as eleições de 1989. Capítulo: “Por um Brasil de homens e mulheres livres e iguais”. PT-Resoluções de Encontros e Congressos, p. 415-18.

O encontro seguinte, 6º Encontro, discutiu as bases para o Plano de Ação de Governo (PAG) para as eleições de 1989, e apresenta todo um capítulo específico, “Por um Brasil de homens e mulheres livres e iguais”, e outro bloco sobre o enfrentamento ao racismo¹⁵. Elaborado como propostas para um governo do PT, vincula a luta pela igualdade à democratização radical do Estado, organizando umbloco de cinco metas para a igualdade, propondo-se a criação de um Ministério ou Secretaria Especial para sua articulação na estrutura do Estado.

A consigna, “Não há socialismo sem feminismo”, se mostrou como uma síntese forte e mobilizadora. Ao mesmo tempo em que colocava em primeiro plano a perspectiva de um socialismo libertário, questionava o economicismo presente nos acúmulos tradicionais da esquerda sobre a classe trabalhadora, pretendia chamar a atenção das direções quase exclusivamente masculinas, ecoava a legitimidade da plataforma e das novas questões trazidas pelo feminismo, e se alinhava às disputas para fortalecer a identidade do PT com a luta socialista. Com certeza, nela cabiam as distintas compreensões do “socialismo petista” e dos caminhospara a mudança em disputano partido. A memória histórica da organização das mulheres socialistas, bem como o diálogo com o pensamento que buscava compreender a opressão das mulheres nas sociedades capitalistas, são retomados como uma referência importante para pensar as mudanças e a renovação de um pensamento socialista que se queria feminista.

A discussão sobre a visão de socialismo defendida pelo PT foi muito recorrente nas duas primeiras décadas do partido. Permaneceu sempre uma discussão em aberto, não apenas por conviverem militantes e correntes formadas em distintas tradições políticas, ou pela preferência, de boa parte do partido, por evitar definições políticas ou aprofundamentos teóricos, e com certeza também pela tensão e polêmicas existentes na arena internacional.

Nas diversas vertentes da esquerda que participavam da formação do PT havia, de forma mais ou menos definida, múltiplas visões de feminismo e de sua articulação com projetos socialistas. Inseridas também nesses debates e em diferentes posições no quadro partidário, as militantes petistas se viam diante da necessidade de construir elementos de unidade para fortalecer sua ação no partido. Como já registrado, os debates feministas e essa nova dinâmica do movimento de mulheres trouxeram outros temas e demandas que exigiam uma renovação de pautas tradicionais dos partidos políticos, ao mesmo tempo em que colocavam em xeque propostas de construção e organização partidária. Essa exigência de renovação e os desafios por ela trazidos não foram, e não são, restritas ao PT e nem mesmo aos partidos políticos. As discussões e a própria participação das mulheres não se faziam sem conflitos.

Desvendar as desigualdades vividas pelas mulheres no âmbito público, buscar as explicações de como se inseriam nas relações de classe e nas dinâmicas de exploração associava-se à cobrança de um estatuto político para as relações no âmbito privado ou, ainda que público, pouco presente nos debates da esquerda.

São várias as questões aqui envolvidas. Apenas anunciar um compromisso com a igualdade entre mulheres e homens, denunciar a opressão racial e sobre as manifestações da sexualidade, reconhecer que o partido se constrói em diálogo com as discussões e demandas trazidas pelos movimentos como expressavam os documentos nacionais do partido, sem dúvida não era – e não é – suficiente. No caso específico do feminismo, são colocadas sobre a mesa questões que soavam, até então, bastante estranhas ao cotidiano dos partidos: o questionamento da opressão e a violência existentes nas relações afetivas e familiares; a busca de uma manifestação livre e autônoma da sexualidade, com reconhecimento das suas distintas formas de expressão; a falta de autonomia das mulheres sobre seu corpo, sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva; a compreensão das desigualdades no trabalho no conjunto da exploração capitalista e como isso se associa à extensiva divisão sexual do trabalho e o trabalho doméstico; as tensões vividas pelas mulheres nas disputas de poder na sociedade e, com certeza, no interior dos partidos e organizações políticas.

Com distintas expressões e concretizadas em bandeiras e reivindicações específicas, são questões que a organização das mulheres introduz no cotidiano e cobra respostas. Por certo, ainda não se utilizavam todos os conceitos e elaborações que foram se construindo com os debates no campo dos movimentos sociais, seja no feminismo, na luta LGBTQIA+, as questões relativas às orientações e identidade sexual, na luta antirracista ou, ainda, as demandas por participação e reconhecimento trazidas pela organização dessas lutas dentro do PT. Portanto, o sentido aqui não é descontextualizar os debates e os desafios que vão se colocar para o partido ao longo de sua construção e tampouco pretender que todas as questões já estavam presentes na forma como se apresentam hoje. Entretanto, é preciso apontar e reconhecer que, indubitavelmente, os debates centrais da época são ainda atuais e cobram uma renovação dos desafios de PT.

Trazer à tona a exigência de romper com a inaceitável separação entre o mundo público e o privado, como isso se expressa nas distintas dinâmicas da dominação capitalista traz, para dentro do partido, uma riqueza inquestionável para a construção de seu programa, ao mesmo tempo em que tensiona e questiona sua construção, suas direções e seu funcionamento. A dificuldade em compreender o caráter consubstancial das opressões de gênero, de raça e de classe permanece como um desafio. Na maioria das vezes ainda são vistas como lutas isoladas, específicas, exclusivas de uma identidade social, sem sua vinculação estrutural como lutas de enfrentamento ao capitalismo. Os trabalhos de Elizabeth Souza-Lobo trouxeram, já no início do PT, a importância da vivência diferenciada de gênero na constituição da classe, a dinâmica estrutural da divisão sexual do trabalho e da reprodução social na formação capitalista¹⁶.

Compreender a dinâmica de classe, raça e gênero como relações sociais e, portanto, históricas, implica ver como sua dinâmica situa as relações de dominação e opressão em cada período e a especificidade das formações sociais. Assim, dar consequência política à interpretação da consubstancialidade e coextensividade das relações sociais¹⁷ permanece um desafio atual, na medida em que não se trata apenas de acrescentar categorias ou variáveis à análise das realidades, mas dar conta de que essas relações sociais se enraízam em uma base material de desigualdades, são centrais na forma como se organiza o capitalismo, apresentam campos de conflito e resistência conformando lutas e relações de poder, que também se manifestam em contradições entre os sujeitos sociais coletivos, como grupo, e nas relações interpessoais.

16. E. Souza-Lobo. A classe operária tem dois sexos. Trabalho, dominação e resistência.

17. D. Kergoat. “Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”. Novos Estudos Cebrap, p.93-103..

    Essa perspectiva também se coloca na identificação política da proposta de feminismo, do seu lugar na construção do movimento social e das disputas de projeto na sociedade, na exigência de se construir uma agenda e uma intervenção política do feminismo associada à busca por mudanças estruturais. Assim, a palavra de ordem “Não há socialismo sem feminismo”, cuja lembrança coletiva registra ter sido divulgada inicialmente pelas feministas petistas do Rio Grande do Sul, também pode ser interpelada na ordem inversa, a partir da visão de feminismo. Qual a perspectiva feminista a ser defendida pelo PT?

    NÃO FEMINISMO SEM SOCIALISMO

    1. PT-Mulheres. “O PT e a luta
      pela libertação das mulheres”.
      2º Encontro de Militantes
      Petistas do Movimento de
      Mulheres, 1988 (mimeo).
      Acervo CSBH-FPA. O acervo
      reúne também documentos
      preparatórios aos encontros de mulheres de diversos estados.

    Defender que a igualdade, um horizonte de liberdade, sem discriminações, precisa estar no centro de um projeto de sociedade também se colocava para a definição do que seria uma visão de feminismo. Vindas de distintas experiências, políticas, sociais, de regiões do país, o que se registra nos debates, nos documentos, em panfletos, nos primeiros encontros de mulheres do PT, é uma perspectiva reiterada de compreender e explicitar como as mulheres e suas lutas “se integram, ao mesmo tempo em que ampliam o campo da luta anticapitalista”. E que a construção e permanência de movimentos populares fortes, massivos, mobilizados – não apenas das mulheres, mas, na linguagem da época, também dos negros, da juventude etc. – “é um fator essencial na luta democrática pela construção do socialismo”¹⁸.

    A partir desta compreensão aguda da necessidade de vinculação orgânica das lutas, de não hierarquizar as distintas formas de opressões e exploração, de articular todo o debate de mudança social e da luta de classes presentes no PT com uma perspectiva feminista, vão se colocar diferenças de visão e conflitos no movimento de mulheres. Mais uma vez, é preciso lembrar que também no interior do PT os processos de organização eram múltiplos, com inserções e características desiguais nas diferentes regiões do país, significando também experiências particulares das militantes do PT com o movimento de mulheres. É nessa multiplicidade que se buscava construir no partido uma visão compartilhada de feminismo.

    19. Como Brizola no Rio de Janeiro ou Miguel Arraes em Pernambuco, por exemplo. Também das relações com os setores da esquerda que, até meados da década, ainda atuavam quase todos dentro do PMDB.

    As experiências regionais no processo de construção do PT envolviam uma base social que poderia ser bastante distinta em cada estado. Essa base variava conforme a maior ou menor presença do movimento sindical urbano organizado ou de trabalhadores e trabalhadoras rurais e dos movimentos de luta pela terra; da militância de movimentos populares urbanos em torno de diferentes demandas; do grau de envolvimento da Igreja Católica e suas organizações de base; da presença ou não de partidos inseridos com força no campo popular¹⁹.

    No bojo de uma perspectiva de romper os limites de uma democracia restrita, a exigência era, e ainda é, ir muito além da luta por direitos e cidadania das mulheres. Com certeza, permanece uma questão fundamental. Gênero, raça e etnia, classe, orientações e identidades de gênero plasmam desigualdades que seguem expressas na restrição de direitos e em uma cidadania mutilada. O que se colocava, e permanece atual, são limites desse horizonte.

    DIVERGÊNCIAS NA CONJUNTURA

    A conjuntura política do país demarcava campos em disputa, não apenas na visão de feminismo, mas também na organização do movimento de mulheres e seus alinhamentos no período. Se no final da década de 1970, e início de 1980, a oposição à ditadura colocava em uma articulação comum os mais variados setores da luta democrática no Brasil, o momento era também de se vislumbrar os diferentes projetos de sociedade, de mudança social, de perspectiva econômica. Foi o momento de formação dos novos partidos, mas não se tratava simplesmente de se posicionar diante da reorganização partidária que derrubou o sistema bipartidário da ditadura como, às vezes, aparece nos relatos sobre as divergências que vão se apresentando nos fóruns do movimento popular e da luta democrática; o horizonte é bem mais amplo, visto que o posicionamento sobre projetos políticos de país atravessa toda a sociedade. Essas definições se refletiam no movimento de mulheres, em suas pautas, nas prioridades, na visão da relação com o Estado, nas divergências sobre como se posicionar na conjuntura, como se postar diante dos novos governos estaduais eleitos a partir de 1982 e, principalmente, do governo federal que resultou da derrotado movimento das Diretas Já. Sobre a mesa estavam também as discussões do modelo de Constituinte, as eleições para prefeitos nas capitais e municípios que o regime militar considerava de segurança nacional, as opções exigidas pelo novo calendário eleitoral do país, entre outras. E logo adiante, as primeiras eleições presidenciais, em 1989.

    A questão da estrutura do Estado no período pós-ditadura mobilizou de forma importante o movimento de mulheres no Brasil. É fato que a enorme presença das mulheres nas mobilizações sociais a pressão das mobilizações feministas, as mudanças demográficas, sociais e culturais que foram se acumulando nas décadas anteriores, levam governos, partidos, instituições públicas a ter que responder a essa nova demanda²⁰. Sem risco de exagero, pode-se dizer que as diferentes ativistas ou correntes no feminismo que se mobilizavam no Brasil tinham acordo de que era indispensável exigir que o poder público respondesse de forma direta às novas reivindicações trazidas pelas mulheres. Diante disso, coloca-se a questão de repensar aspectos da própria organização do Estado. As eleições de 1982, primeira eleição direta de governos estaduais, vão precipitar a definição de posições concretas²¹, que se conformaram em duas propostas. Uma delas era o modelo de um Conselho da Condição Feminina, como se chamou em São Paulo, e que previa a formação de um grupo de ativistas, especialistas, oriundas do movimento, indicadas individualmente – isto é, não se apresentavam como representantes do movimento –, que teria a função de propor ações ao governo e fazer a interlocução com o movimento. Não era um organismo de participação social ou de controle, como seriam as propostas de conselhos de participação nas mais distintas áreas que foram se generalizando nos anos posteriores.

    20. S. Alvarez, “Politizando as relações de gênero e engendrando a democracia”.

    21. O Jornal Mulherio (ano 2,n. 10, 1982; 1983a; 1983b) registra de forma bastante vívida a construção dessas posições, que acabaram se consolidando em duas propostas. Aglutinando a maioria das proponentes identificadas com o campo partidário do PMDB, ainda que não fossem todas filiadas, consolidou-se a proposta de que a atuação dentro do Estado deveria ser por meio de Conselhos das mulheres (Conselho da Condição Feminina, como se chamou em São Paulo; ou Conselhos dos Direitos das Mulheres, nos demais estados). As militantes identificadas com o PT, grosso modo, defendiam que se deveria criar uma estrutura de governo e não um “grupo do movimento” para atuar dentro do Estado, portanto, não um conselho, mas organismos de Executivo como as secretarias, ministérios. Os números do Jornal Mulherio podem ser acessados no repositório da Fundação Carlos Chagas: Disponível em: https://www.fcc.org.br/repos itorios/mulherio/. É importante atentar que a discussão, aqui,naquele momento, não era sobre participação social, mas sobre a estrutura do Estado parapolíticas para as mulheres.

      A outra proposta era a criação de uma estrutura dentro dos governos, como parte da organização de ação executiva, para propor, elaborar e encaminhar em conjunto com as distintas áreas de governo as políticas para as mulheres. Ou seja, deveriam ser equivalentes aos demais órgãos de governo, como secretarias, ministérios. Essa foi a proposta defendida por grande parte das militantes petistas, questionando que o modelo de Conselhos de Direitos das Mulheres (ou da Condição Feminina) como a apresenta-

      22. PT-Mulheres. “O PT e a luta pela libertação das mulheres”. 2º Encontro de Militantes Petistasdo Movimento de Mulheres. Acervo CSBH-FPA.

      23. Podemos citar, em particular, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Alagoas.

      24. Nas eleições de 1982, o PMDB elegeu nove governadores. Nas eleições de 1986, elegeu 22 governadores dos então 23 estados brasileiros. TSE. Eleições anteriores. Resultados. Disponível em: https://app.powerbi.com/view? r=eyJrIjoiOGU4MTNjZGUtZTZh Mi00ZjBhLWI2ZjQtMmQ4ZWU2ZDVlNWQ5IiwidCI6ImFiNzcyYz YzLWViMzgtNGIxZS1iZWY3LTdi NjBlZDhhY2RmMSJ9. Acesso: 29 ago. 2024.

      25. Eleito no Colégio Eleitoral em janeiro de 1985, Tancredo Neves adoeceu e faleceu sem tomar posse como presidente. A presidência da República foi assumida por José Sarney.

        do nesta visão criou uma estrutura de governo ambígua, atuando como lobby do movimento dentro do Estado. Um modelo que, por um lado, tendia a comprometer, sem explicitar, a autonomia do movimento; por outro, era parte do governo sem se apresentar, tampouco, como tal²². A realidade em cada estado era diversa e a relação das petistas com os Conselhos desta época podia ser de maior proximidade em alguns estados²³, podendo haver articulação das mulheres do PT na atuação e composição dos Conselhos.

        Em 1982, o PMDB elegeu um número expressivo de governadores²⁴. Os dois primeiros Conselhos com esse formato e concepção foram criados nos estados de São Paulo e de Minas Gerais. Em janeiro de 1985, ocorre a eleição indireta de Tancredo Neves (PMDB) no Colégio Eleitoral, sendo a presidência assumida pelo então vice José Sarney²⁵, e foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Com isso, esse modelo de Conselhos dos Direitos das Mulheres passou a ser hegemônico no país, implantado em grande parte dos estados.

        A proposta de organismos de executivo responsáveis por propor, elaborar, articular e implementar políticas para as mulheres como parte da estrutura executiva do governo só vai começar a se concretizar a partir de 1988, quando o PT conquistou vários governos municipais e, de forma tímida, foram implantados em geral como Coordenadorias. Um debate sempre difícil dentro de cada governo do PT e que só ganha, de fato, reconhecimento a partir de 2003,com a vitória de Lula para a presidência da República.

        CONSTRUIR O MOVIMENTO EM TORNO DE LUTAS

        A construção do feminismo como processo de luta, profundamente enraizado nos movimentos sociais e nas lutas populares impulsionou a formação do trabalho de mulheres do PT. A participação das mulheres no partido se originava nas várias vertentes que formaram o partido, dos movimentos sociais e lutas nos bairros, organizações da Igreja Católica, ativistas sindicais, trabalhadoras rurais. Qualquer lista será inevitavelmente incompleta, mas vale a pena sempre lembrar a enorme participação das mulheres na luta social no país. Com uma presença destacada de militantes que já vinham de uma atuação no feminismo que se reorganizava no Brasil nos anos de luta contra a ditadura e no período de transição, a organização das mulheres no PT se colocava de forma orgânica/sistemática a tarefa de construção de um movimento de mulheres massivo, radicalizado, capaz de fortalecer as mulheres como sujeito dos processos de transformação no país.

        Respondendo a essas exigências, algumas questões são recorrentes no período: a relação entre partido e movimento e a construção de um movimento autônomo; quais as principais lutas e agendas a serem implementadas; quais as formas preferenciais de organização do movimento. Aqui também se destacavam as avaliações e propostas sobre a presença das mulheres nas organizações mistas, em particular nos partidos políticos e sindicatos, mas também em outros movimentos populares. Esse leque de questões que permeava de forma recorrente os encontros, congressos, publicações, mesas de debate e avaliações sobre o movimento de mulheres na época, aparece em número significativo de textos sobre o período e traz avaliações com poucas variações entre as feministas petistas. Longe de pretender abordar o conjunto do debate, queremos apontar aqui algumas das questões mais recorrentes nas discussões que moviam as militantes envolvidas na construção do PT.

        26. Os documentos e teses dos Encontros Nacionais do PT, durante todo o período, reafirmam à exaustão a importância da autonomia dos movimentos frente aos partidos e ao Estado. PT-Resoluções de Encontros e Congressos.

        27. A discussão sobre as formas de organização do movimento de mulheres marcou de forma muito aguda as mobilizações e fóruns do movimento de mulheres até quase o final da década de 1980, sendo o ponto central a recusa das propostas de Federações/Confederações e, de forma menos conflitiva, os departamentos femininos nos sindicatos. No final da década, a definição mais explícita de campos políticos e maior consolidação partidária deixava evidente como se alinhavam as propostas.

          A proposta de organização própria dos movimentos populares, a não aceitação de sua subordinação orgânica aos partidos políticos e ao Estado, ou seja, a defesa da autonomia dos movimentos, esteve presente no PT desde o seu início. Essa posição, originada na crítica à atuação dos partidos comunistas tradicionais e à relação das organizações sindicais brasileiras com o Estado, teve como foco principal a história dos movimentos operários e sindicais, mas não se restringia a eles. Embasava uma concepção mais geral de relação do partido com os movimentos populares²⁶. Confortáveis com essa posição que afirmava a autonomia dos movimentos, para as petistas tratava-se mais de construir na prática partidária essa concepção em relação ao movimento de mulheres. Era necessário divulgar e consolidar no partido uma visão geral sobre a importância do movimento de mulheres, afirmar que o processo de auto- organização das mulheres – indispensável para a construção coletiva de um sujeito político e para destampar o véu sobre as dinâmicas pessoais e individuais da opressão – não dividia a luta. Ao mesmo tempo, compartilhar e construir um compromisso do partido com a agenda proposta pelo movimento. E, finalmente, incentivar a participação das militantes petistas nas múltiplas e distintas áreas de atuação do movimento popular.

          Identificadas com essa concepção de autonomia, as militantes feministas do PT rejeitavam a tradição de construir uma organização específica vinculada ao partido para atuação no movimento de mulheres, ou seja, como se dizia, uma organização que fosse um braço do partido no movimento. Essa discussão, que tensionou os fóruns do movimento de mulheres durante todo o final da ditadura e o período de transição, colocava no alvo o questionamento do modelo de “Federação de Mulheres/Confederação” que, com nomes eventualmente diferentes, caracterizou a atuação dos partidos comunistas tradicionais durante o século XX²⁷.

          Da mesma forma, rejeitava-se a proposta tradicional de “departamentos femininos”, identificada com o “velho” sindicalismo, como o formato de organização das mulheres dentro dos sindicatos. A crítica feita aos departamentos femininos é que partiam de uma prática de delimitação de espaços que separava as pautas levantadas pelas mulheres daquilo que era considerado a grande política. Para um novo sindicalismo se demandava uma inserção e organização ativa das mulheres. Na sua construção prática e nos posicionamentos no movimento, as militantes petistas se alinhavam com a ideia de formação de espaços ou instâncias sindicais ou no partido orientadas por outra visão2²⁸: sem separação entre pauta/luta geral e pauta/luta específica e fortalecer a mobilização das mulheres.

          Em 25 de janeiro de 1981, pouco antes do 3º Congresso da Mulher Paulista²⁹, uma convocatóriafeita pela secretaria geral doPT parauma reuniãodas mulheres, chamada para discutir a participação das militantes petistas naquele Congresso, se preocupaem explicar por que razão o PT não tem um “departamento feminino”, diferentemente de outros partidos. Faz a crítica à concepção desses departamentos e reconhece a necessidade de uma comissão de mulheres para trabalhar em conjunto com a direção. Sugere que todos os núcleos discutam os documentos daquele Congresso da Mulher Paulista e explicita a posição:

          Além disso, sentimos necessidade de discutir a participação das mulheres no PT, na medida em que somos talvez o único Partido que não constituiu um departamento feminino. E se não temos um departamento feminino, não é porque não damos importância à luta das mulheres. Pelo contrário. É porque concebemos a participação das mulheres em nosso partido de maneira diferente. Desta forma, as

          28. A polêmica com as formas de organização, tanto de federações/confederações/ organizações do movimento diretamente vinculadas aos partidos, assim como a contestação do modelo de “departamentos femininos”, se dirigia fundamentalmente às divergências com outras organizações partidárias presentes no movimento, como MR-8, PCdoB e o antigo PCB, já bastante fragmentado. A polêmica refletia, por outros caminhos, também as divergências sobre as pautas propostas para a organização das mulheres na tradição que se consolidou internacionalmente nos partidos comunistas após a década de 1930- 1940.

          29. Em São Paulo, foram realizados três Congressos da Mulher Paulista que aglutinaram um grande número de participantes, sendo um marco importante da mobilização feminista. Entre os anos 1979, 1980, 1981 e 1982, o movimento de mulheres realizou grande encontros/congressos, massivos, em algumas capitais do país, como São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul. Os documentos dos estados, preparatórios para o “1º Encontro Nacional do PT sobre o Movimento de Mulheres”, realizado em 19 e 20 de junho de 1982, relata mas principais polêmicas e o envolvimento das petistas nesses encontros/congressos. Acervo CSBH-FPA.

            30. PT-Mulheres. “Convocatória. A participação do PT no 3º Congresso da Mulher Paulista”. Jan. 1981 (mimeo). Acervo CSBH-FPA.

            mulheres discutem e participam de todos os problemas – e não só daqueles estritamente femininos – e os homens têm acesso à luta contra a opressão das mulheres. Se nosso programa tem posição contra a discriminação da mulher, esta posição é de todos os militantes do PT e não apenas da ala feminina³⁰.

            A convocatória segue falando da participação das mulheres, nos núcleos e diretórios, e da formação de uma comissão para fortalecer e garantir a questão dentro do partido.

            Essas duas questões apresentadas acima, a forma de organização no movimento e a concepção de organização interna ao partido, que hoje podem soar extemporâneas ou até não relevantes, foram determinantes para forjar uma visão do PT sobre o movimento de mulheres, definir parâmetros para a atuação da militância petista no movimento e compor, junto com outras questões, as bases para a organização das mulheres no PT.

            O PT em seu conjunto é tributário do imenso processo de organização dos movimentos populares no país, desde o período de resistência e enfrentamento ao regime ditatorial. Não é diferente com o movimento de mulheres. O grande desafio que marcou a atuação das petistas nesse âmbito foi a construção de um movimento de mulheres de caráter feminista, massivo, enraizado, amplo, capaz de fortalecer as mulheres como sujeito político na sociedade, colado a um processo geral de mudança social. Com certeza houve, e ainda existem, diferenças de visão de como a construção do feminismo como força social se vincula ao conjunto das mulheres como sujeito desta luta. A compreensão reafirmada de que as opressões de gênero, de raça e de classe não podem constituir hierarquia de lutas traz, como correlato, a necessária perspectiva de construir os movimentos a partir de seus sujeitos concretos.

            Com a amplitude da inserção e da identificação do PT como um instrumento de luta para os setores populares nas suas distintas vertentes e reivindicações – nos movimentos dos trabalhadores, na nova realidade dos movimentos rurais e urbanos que se organizaram no país – a presença dos ativistas desses movimentos conforma uma extensa rede de militância do partido. Ao longo dos anos 1980, com a formação das articulações sindicais que vão originar as centrais, com as propostas de coordenações/articulações de distintos movimentos populares, e de lutas sociais como transporte, saúde, moradia, apenas para exemplificar alguns, esse panorama foi ganhando novos contornos.

            As militantes mulheres estão fortemente presentes em todos esses movimentos; em vários deles, são mesmo seu grupo mais destacado. Grande parte delas se identificavam com a disputa pela organização das mulheres e por suas pautas no interior de suas organizações. Colocavam-se como parte do movimento de mulheres e, cada vez mais como feministas, se mobilizam nos atos do 8 de Março, nas manifestações contra a violência de gênero, na exigência de atenção integral à saúde das mulheres, nas demandas por creches, nos protestos organizados nas ruas, buscam participar dos encontros e fóruns feministas.

            O que vai se formando aqui é um amplo campo de luta, de um movimento de mulheres enraizado, mobilizado, atuando em mobilizações ou grupos específicos e nas organizações mistas. Nesse campo, em que as mulheres transitavam entre movimento de mulheres, movimento sindical, na Central Única dos Trabalhadores (CUT), nos movimentos populares, no partido, muitas pautas e perspectivas foram se consolidando, não de forma homogênea, certamente, mas formando fios condutores comuns, indispensáveis para uma identidade política com um feminismo que vai se construindo na luta social e nas necessidades concretas das mulheres.

            Algumas questões se destacam nesse período e vão permanecer como centrais até a atualidade. Apontá-las não é pretender que são elaborações originárias do PT ou restritas às militantes petistas. Pelo contrário, é indispensável reconhecer o diálogo constante em diferentes interlocuções com companheiras ou coletivos que, independentemente de sua identificação partidária, compartilhavam seu tempo, seus estudos e sua dedicação com esse campo do movimento. Alguns eixos são centrais e vão envolver de forma direta a militância das mulheres petistas, como o enfrentamento às violências de gênero; as desigualdades no mundo do trabalho e a compreensão da extensão e importância da divisão sexual do trabalho na formação das desigualdades de gênero; a saúde reprodutiva, com a questão da criminalização do aborto e, naquele momento, uma intensa denúncia contra a esterilização de mulheres, especialmente as pobres e negras, bem como a elaboração da proposta sobre saúde integral das mulheres; as demandas sobre creches e a necessidade de políticas para responsabilização pública sobre o trabalho doméstico; a crítica à educação diferenciada entre meninas e meninos. As abordagens foram se acumulando ao longo do tempo, as questões vão ganhando outros contornos, movidas por lutas cotidianas, tensionadas por pressões advindas de diversas vertentes do movimento popular, da conjuntura política do país e dos desafios para integrá-las de forma efetiva na ação do PT.

            Um fio que percorre todo esse campo do movimento é o investimento na auto-organização das mulheres inseridas, e se querendo sujeito, nas disputas de projetos políticos diferentes presentes no país; perspectiva que demanda, necessariamente, participar de organizações mistas. Aqui surgia de maneira forte e explícita uma divergência com os setores do movimento feminista que questionavam a “autenticidade” do feminismo construído no interior ou em aliança orgânica com organizações mistas. Ou seja, inserido nos partidos políticos, nos sindicatos, nos movimentos e organizações no campo, em organizações mistas no movimento popular. Essa polarização se estendeu ao longo das décadas de 1980 e 1990. O que aparecia como um questionamento da “dupla militância”, refletia uma divergência mais profunda na visão entre teoria e prática feminista, de qual o projeto de mudança social identificado pelo feminismo.

            Essa polêmica que se expressava de maneira muito forte nos fóruns do movimento era vivida de forma aguda pelas militantes petistas. No entanto, é evidente que para a visão de feminismo que as militantes petistas buscavam construir, tal polarização estava inscrita em uma realidade incontornável, na medida em que se associava, de forma inseparável, sua proposta de feminismo com uma disputa de projeto político para o país, de crítica ao capitalismo, tendo no horizonte uma perspectiva socialista.

            AGORA EU SOU UMA ESTRELA: MULHERES DO PT

            A organização das mulheres no interior do partido seguiu caminhos diferentes na sua formação, a partir das experiências das militantes e de peculiaridades na construção do PT em cada estado. Organizando- se inicialmente como núcleos ou comissões de

            31. Os 1º, 2º e 3º Encontros nacionais de mulheres do PT dedicaram um bom espaço para esta discussão de como se organizar no interior do partido. A questão aparece tanto nos textos e relatórios gerais como na preparação nos estados. Ver, entre outros: PT-Mulheres. “Mulher e PT. Uma proposta de discussão e trabalho”, SP, 1981; PT- Mulheres. “1º Encontro”, ver relatórios preparatórios dos estados, 1982; PT-Mulheres. “O PT e a luta pela libertação das mulheres”, 2º Encontro. Vitória, 1988; PT-Mulheres. “O PT e o feminismo”, RS, 1987. Acervo CSBH-FPA.

            mulheres, ou simplesmente grupo de mulheres ou outras denominações, destacavam-se três orientações ou tarefas: divulgar e debater o feminismo no PT; ser um espaço de organização das militantes mulheres; discutir as questões em pauta no movimento e orientar a participação das petistas.

            Com nuances diferentes, enfatizava-se mais uma proposta de organização ou outra: colocar-se como assessoria feminista para as direções partidárias ou ter aliberdade de discutir entre as militantes a opressão e as polêmicas no movimento; quais as possibilidades para se adequar à estrutura do PT, também em formação, sem repetir os equívocos apontados na crítica à tradição partidária da esquerda; o receio de que uma formalização organizativa impedisse a rebeldia necessária para atuar internamente e no movimento; quais tarefas priorizar para mobilizar o conjunto do partido; como se organizar para conquistar mais militantes mulheres para o feminismo³¹.

            Ao longo dos processos de consolidação da estrutura organizativa do PT, essas instâncias foram se concretizando como secretarias de mulheres, sem se contrapor à organização de núcleos. O que importa destacar no debate existente é que, em nenhum dos casos, tratava-se de negar a necessidade de organização da militância feminista no interior do partido (ou dos sindicatos), mas de redefinir o seu caráter, com a prioridade de construir uma compreensão e atuação feminista fortemente inserida na vida do partido. Elemento indispensável dessa proposta é o fortalecimento das militantes mulheres.

            No processo de maior estruturação do PT, prevaleceu o formato de instâncias vinculadas às direções executivas, inicialmente comissões, consolidando-se posteriormente como subsecretarias

            vinculadas à Secretaria de Movimentos Populares, até 1994 e, finalmente, Secretarias, a partir de 1995. Logo depois, as Secretarias Nacionais de Mulheres, de Combate ao Racismo e de Juventude passaram a ter assento nas Comissões Executivas.

            Por um lado, construir uma identidade do PT com o feminismo demandava um trabalho cotidiano de discussão com o conjunto da militância, disputar a pauta junto às direções e em todos os momentos de decisão do partido, elaborar propostas e emendas às resoluções e documentos partidários, ou seja, disputar as orientações e a agenda política do partido. Ao mesmo tempo, isso só seria efetivo com o aprofundamento da identidade do maior número possível de militantes com essa tarefa, mobilizadas na defesa das reivindicações, em atividades de formação feminista e divulgação e por sua participação no movimento de mulheres.

            A construção de símbolos, bandeiras, camisetas, botons/broches, palavras de ordem ia muito além de pintar a estrela de lilás. Fortalecia a identidade das petistas com o feminismo, contribuía para uma atuação unificada, impactava o partido internamente e no seu aparecimento público; também marcava a presença das petistas nas ações de rua; irmanadas com uma cultura muito presente no PT naquele período de criar uma identidade simbólica do partido.

            Três questões foram reiteradas na pauta dos três primeiros encontros nacionais de mulheres do PT: a discussão sobre o movimento de mulheres no Brasil, avaliação do movimento, polêmicas sobre sua organização; as propostas e debates sobre a organização das mulheres no PT; e também a discussão sobre feminismo e socialismo. Mas não era o total em pauta. Nos três encontros cresce o espaço de duas outras questões: organizar-se e intervir na política institucional do partido, nas eleições, aprofundando,

            32. O 1º Encontro Nacional sobre Movimento de Mulheres, realizado em 19 e 20 de junho de 1982, em São Paulo-SP, contou com 120 participantes de 10 estados (AM, BA, ES, MG, RJ, SP, PR, SC, RS e GO). O 2º Encontro Nacional de Militantes Petistas do Movimento de Mulheres foi realizado em 22, 23 e 24 de julho de 1988, em Vitória-ES, com cerca de 100 participantes de 12 estados (PA, RO, AL, PE, ES, MG, SP, RJ, PR, SC, RS e DF). E o 3º Encontro Nacional de Militantes Petistas do Movimento de Mulheres foi realizado em 16, 17 e 18 de agosto de 1991, em Ibirité- MG, com 111 delegadas de 15 estados. (Atas, convocatórias, relatórios e textos de discussão estão disponíveis no Acervo CSBH-FPA). Os três primeiros Encontros tiveram nomes diferentes. No correr deste texto são referidos como Encontros de Mulheres do PT, quando tratados em conjunto ou não houver razão específica para diferenciá-los.

            33. M. Carvalho. “Encontro Nacional do PT sobre o Movimento de Mulheres. Um passo decisivo”, em Jornal Em Tempo, ano VI, n. 151, junho de 1982. CSBH-FPA. Siac.

              também, uma visão sobre a atuação do Estado e propostas para os governos do PT; e a inconformidade com a presença ínfima das mulheres nos espaços de direção do partido, já anunciando o tema das ações afirmativas.

              Os documentos dos Encontros de Mulheres do PT registram a diversidade dos estados envolvidos, sempre com participantes de todas as regiões do país³². É recorrente a menção a dificuldades organizativas e financeiras para garantir uma participação maior. Nem todo sos estados que se preparavam tinham condições financeiras para comparecer, seja pelas dificuldades estruturais do partido ou ainda pela pouca atenção das direções³³. As atas e relatórios dos encontros estaduais também apontam diferentes tensões e atritos com os grupos presentes no movimento de mulheres, indicando que nem sempre a convivência era harmoniosa, havendo sugestões diferentes de como as petistas deveriam se relacionar com a forte presença de ativistas identificadas com outros partidos no movimento, grande parte no PMDB, durante naquele período. Mas também se expressavam níveis distintos de identificação com as pautas discutidas nos encontros, segundo as experiências de mobilização das mulheres em cada estado.

              A necessidade de incorporar de maneira efetiva a questão racial no debate feminista do PT está presente nesses três primeiros encontros nacionais de mulheres e em distintos documentos das comissões/núcleos de mulheres. Partindo de destacar as formas como as desigualdades sociais e econômicas afetavam de forma distinta as mulheres em função da raça, há um esforço permanente de compreender a opressão racial/étnica, integrando de forma efetiva uma visão das relações de gênero, de raça e de classe e de como o racismo está inscrito na história e no presente da sociedade brasileira. Além de ressaltar as desigualdades forjadas pelo racismo, os debates apontavam também como as questões centrais enfrentadas no movimento de mulheres se desenvolvem de forma cotidiana na interação entre raça, gênero e classe. Expressas no menor acesso à saúde reprodutiva, maior número de mortes e sequelas causadas pela criminalização do aborto, no foco prioritário da esterilização sobre as mulheres negras; nas desigualdades de rendimento e acesso ao trabalho e emprego e no maior desemprego e pobreza das famílias chefiadas por mulheres negras. A discriminação e violência também são ressaltadas, ao mesmo tempo em que se aponta para a realização de atividades de discussão específica da opressão racial sofrida pelas mulheres e da necessidade de formação no partido.

              As discussões sobre os cem anos da abolição, em 1988, dão um importante incentivo ao engajamento do conjunto do partido com o enfrentamento do racismo, como já mencionado. E a preparação da campanha presidencial de 1989, com um intenso processo de discussões para o Programa de Governo Lula, foi um momento importante de impulso à questão³⁴. A organização do Movimento de Mulheres Negras no país, na segunda metade da década de 1980, mas em particular nos anos 1990, também alimentou os debates partidários³⁵, fortalecendo a participação e a relação entre gênero, raça e classe entre as petistas. Esse tem sido um longo caminho e um imenso desafio, exigido de forma persistente e solidária, e que ganha novos contornos com a expansão do movimento negro e acrescente organização das mulheres negras no Brasil.

              34. Gláucia Matos Adeniké, que compôs o coletivo da Subsecretaria Nacional de Mulheres do PT, reporta que esse período de preparação do Programa e posterior mobilização da campanha presidencial de 1989 foi central no fortalecimento da organização das militantes negras no PT.

              35. O PT também tinha uma comissão de negros/combate ao racismo, posteriormente organizada como subsecretaria e, em seguida, Secretaria Nacional, como foi a organização das mulheres.

                PRESENÇA,PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃO

                As formas diferentes e dinâmicas de organização e de participação das mulheres no PT enfrentam, ao longo dos anos, contradições significativas. É inegável que o seu reconhecimento formal e sua legitimidade, de forma geral, foram se consolidando. Mas a incorporação do feminismo no modo de ser do partido demanda muito mais. Foram muitas as estratégias para romper com a indiferença ou compreensão superficial das direções – ou enviesada por outras disputas – sobre as questões levantadas pelas mulheres; para enfrentar a contradição vivida no cotidiano das militantes em um ambiente muitas vezes hostil e machista; para encarar a dificuldade permanente de ter ações e mecanismos partidários para combatera violência de gênero, bem como as discriminações que se manifestam na vida partidária. O cotidiano das desigualdades de poder na sociedade se repete no partido e as políticas de ação afirmativa, ainda que indispensáveis, não são suficientes para superá-las.

                36. No primeiro Diretório Nacional (DN) eleito em 1981, as mulheres eram 8,7%. Esse percentual caiu para 6,1% no segundo DN, eleito em 1984. Para 6% no terceiro DN, eleito em 1986. Para 4,9% no quarto DN, em 1987. E novamente 6,1% no quinto DN, eleito em 1990. Boletim da Subsecretaria Nacional de Mulheres do PT apresenta o levantamento também para várias direções estaduais (nov./dez. 1991). Os nomes dos componentes dos Diretórios Nacionais e Executivas podem ser conferidos em PT-Resoluções de Encontros e Congressos, 1998. E também no site do Centro Sérgio Buarque de Holanda de Documentação e Memória Política. Encontros Nacionais do PT-Resoluções. Disponível em: https:// fpabramo.org.br/csbh/encontr os-nacionais-do-pt- resolucoes/.

                Depois de dez anos de sua fundação, o PT ainda convivia com uma presença muito pequena de mulheres em seus órgãos dirigentes. Até o quinto Diretório Nacional, eleito em 1990, os homens ocupavam mais de 90% das posições. Nas direções executivas, o quadro era ainda mais difícil: quando muito, havia uma mulher. A realidade não era muito diferente nas direções estaduais³⁶. A aprovação de uma política de ação afirmativa, em 1991, com uma cota mínima de 30% de mulheres nas direções e executivas, acarretou uma mudança muito além dos números. Provocou alterações no cotidiano do partido, questionou a existência de dinâmicas de exclusão fundadas nas relações de gênero, mudou o perfil dos dirigentes, e ampliou de forma significativa o diálogo do conjunto das militantes com as questões trazidas pelo feminismo e sua identidade como mulheres do PT. Afinal, esse é um Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras, como começa a aparecer em consigna nos espaços do PT. O debate foi longo e encontrou resistência. A preparação para garantir sua aprovação foi detalha- da e motivadora.

                Entre os coletivos das mulheres do PT, entre 1987 e 1991, a proposta foi insistentemente avaliada e discutida. Finalmente, no Primeiro Congresso Nacional do PT, realizado entre 27 de novembro a 1º de dezembro de 1991, o partido aprovou a proposta, tornando-se o primeiro partido no Brasil a definir uma política de ação afirmativa para as mulheres com grande impacto. Quando de sua aprovação, “o tema das políticas de ação afirmativa era praticamente ausente da sociedade brasileira, mesmo dos setores acadêmicos ou do movimento de mulheres”³⁷. A repercussão se fez sentir rapidamente fora do PT. No mundo sindical, por exemplo, a CUT aprovou medida semelhante, em 1993³⁸, e outras centrais e organizações adotaram posições na mesma linha. No âmbito da política no país, ao longo da década de 1990, já não se podia mais fechar os olhos às barreiras à participação das mulheres, refletindo em mudanças nos partidos e na legislação eleitoral.

                37. G. Fraccaro e T. Godinho, “O ‘feminismo petista’ na história do Brasil”, em P. Fontes e V. Pomar (orgs). História do petismo, p. 444.

                38. M. B. G. Delgado, “Mais mulheres na direção da CUT”, em Revista Estudos Feministas, p. 138-47.

                POR UM BRASIL DE HOMENS E MULHERES LIVRES E IGUAIS

                As discussões sobre as desigualdades de gênero, de raça, das distintas formas de opressão na relação estrutural com a dominação de classe, como já menciona- do, aparecem de forma recorrente nos documentos do PT; ainda que isso não tenha dado lugar a uma elaboração sistemática da sua visão. É um processo vivo que demanda renovação e reafirmação no enfrentamento da conjuntura, a cada momento, exigindo que as posições do partido se explicitem na tomada de posição diante das disputas concretas. “É nesses momentos que se pode avaliar o quanto

                39. T. Godinho, “O PT e o feminismo”, em Â. Borba, N. Faria, T. Godinho (orgs.), Mulher e política: gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores, p.19.

                das reflexões desenvolvidas pelas mulheres organizadas em seu interior se refletiam [se refletem] efetivamente na elaboração do partido e em aspectos importantes de sua intervenção”³⁹. Ainda que expressos nos momentos de ampla discussão partidária, frente os embates da conjuntura, não são suficientes as intenções, declarações, princípios. Cobra-se transformá-los em propostas e intervenção concretas.

                Os programas eleitorais têm sido, ao longo das sucessivas eleições do calendário brasileiro, um momento de explicitação das visões políticas do partido, mas são, ao mesmo tempo, um momento carregado de conflitos e contradições. A exigência de posicionamentos concretos também aparece nas disputas no Congresso Nacional, ou em momentos especiais como a Constituinte, nas reformas previdenciárias e trabalhistas, assim como nas ações dos governos petistas e na implementação de suas políticas. E internamente, na forma como o partido se posiciona cotidianamente diante das questões propostas ou decorrentes das dificuldades enfrentadas pelas mulheres na sua militância partidária. Algumas destas questões que percorrem a trajetória do partido permanecem centrais e indicam interrogações necessárias na construção do compromisso efetivo do PT com a superação da opressão e das desigualdades de gênero.

                A superação das desigualdades econômicas é indispensável para a construção da autonomia das mulheres. Ao enfrentamento dos diversos aspectos de discriminação no mundo do trabalho fora de casa, do acesso à renda, se associa a necessidade de uma inversão radical na forma como a reprodução social se organiza na sociedade, alterando a perspectiva de uma economia centrada na produção externa e desassociada da reprodução cotidiana. Ou seja, além de incidir sobre a divisão sexual do trabalho em relação ao trabalho doméstico, questiona-se como a dinâmica entre produção e reprodução social estrutura as desigualdades no mundo do trabalho remunerado e não remunerado e se articula com os modelos tradicionais de família, onde a responsabilidade da reprodução é atribuída às mulheres. A compreensão de que o trabalho, entendido em todas as suas dimensões, e a divisão sexual e racial do trabalho são eixo estruturante das desigualdades sociais foi elemento formador da perspectiva feminista no campo em que se situa o PT. Essa questão, que merece ser destacada por sua importância e radicalidade na construção de um feminismo popular, anticapitalista e enraizado nas lutas sociais, requer um capítulo especial para sua discussão.

                Na atuação do PT, ao longo de sua trajetória, essa é uma questão que ainda não logrou refletir-se como uma atuação integrada, mas aparece de forma fragmentada e parcial, nas políticas de renda, na ampliação das políticas de creches, educação infantil e escola integral, em políticas para as trabalhadoras rurais, para as mulheres do campo, das florestas e das águas, na defesa dos direitos das trabalhadoras domésticas, na necessária articulação de ações públicas de acesso à alimentação e soberania alimentar, por exemplo, com uma perspectiva ampla de provimento social das condições de reprodução e mudanças da situação das mulheres nas famílias. Com frequência, o reconhecimento do maior grau de vulnerabilidade e pobreza entre as mulheres, profundamente associado à desigualdade racial no Brasil, não aponta para a superação da divisão sexual do trabalho e da dicotomia entre produção e reprodução. A questão, que se expressa hoje em uma demanda geral de que o cuidado, que as políticas de cuidado reorganizem a economia, ganhou mais espaço na agenda política e na sociedade. Mas o desafio é a exigência de um real investimento econômico que, para além de programas isolados ou pontuais, altere as desigualdades, a pobreza, o sobre trabalho, a prioridade da responsabilidade sobre a reprodução que a economia e a organização social impõem sobre as mulheres dos setores populares, na forma perversa em que as desigualdades de classe e raça se articulam. Esse é um desafio para a atuação do partido hoje. A defesa da autonomia das mulheres sobre seu corpo e sua capacidade reprodutiva tem sido questão presente em todo o processo de organização das mulheres do PT. Os modelos de sexualidade que enfatizam um padrão único heteronormativo restringem as possibilidades e a liberdade de orientação sexual e da construção de diferentes identidades, e pautam um modelo hierárquico e patriarcal de família, além de terem incidência direta sobre a saúde, a sexualidade e a capacidade reprodutiva das mulheres, bem como a educação, a cultura, a exigência de padrões de comportamento. O direito de ter filhos cobra a existência de políticas públicas de atenção à maternidade e condições de cuidado infantil que, como chama atenção o movimento de mulheres negras, não é um direito garantido para o conjunto das mulheres, em particular as com menor renda e dos grupos mais vulneráveis. Ao mesmo tempo, central para o exercício da autonomia é o acesso à anticoncepção, o direito de ter ou não ter filhos, questão que aponta o direito de interromper a gestação não desejada, a exigência da legalização do aborto. Esse debate que nunca saiu da pauta política, vem sendo reafirmado e reintroduzido de forma agressiva pela extrema direita que se reorganizou no Brasil nos últimos anos.

                Com idas e vindas, a questão da legalização do aborto tem sido um ponto sensível e contraditório ao longo da atuação do PT. Enfrentar um conservadorismo difuso na sociedade se mostrou ainda mais difícil pela influência religiosa e das relações com a Igreja Católica na formação do PT. A complexidade da relação entre religião e política no Brasil, a pressão das igrejas e das religiões sobre a pauta pública têm hoje outra dimensão na sua associação ainda mais perversa com o conservadorismo como arma da extrema direita, tendo as questões de gênero, saúde reprodutiva, direitos da população LGBTQIA+ como alvo prioritários⁴⁰. A dinâmica eleitoral do país tem apresentado as questões sobre sexualidade, direitos reprodutivos, sempre como estigma, levando, na visão de alguns, ao argumento de que o partido não se apresente com uma posição segura de que o aborto não seja crime. A defesa de que as mulheres possam decidir se querem ou não ter filhos está expressa mais deuma vez nos documentos do PT. A legalização do aborto, com a garantia de que as mulheres sejam atendidas na rede pública de saúde, fez parte do projetode Constituição apresentado pelo PT para a Constituinte⁴¹.

                A discussão voltou à pauta em Encontros e Congressos do partido várias vezes nas décadas seguintes, que aprovaram, com redações diferentes, o direito de interrupção da gravidez, o direito ao aborto, a descriminalização do aborto e regulamentação de sua prática no serviço público de saúde. Em 1989, o deputado José Genoino apresentou um projeto de lei que previa o direito à interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação com o atendimento na rede de saúde pública. Essa é uma formulação importante, pois não se limita ao cumprimento do que já está previsto no Código Penal. Em 2005, o governo federal, por meio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), formou uma Comissão Tripartite para elaborar uma proposta de projeto de lei, mas a iniciativa ficou a meio do caminho⁴². A realidade é que a posição não aparece com nitidez nos discursos e na atuação dos dirigentes, de parlamentares, nas iniciativas governamentais ou nos momentos em que

                40. F. Biroli, “Gênero, ‘valores familiares’ e democracia”, em Gênero, neoconservadorismo e democracia, de F. Biroli, M. D. Campos Machado e J. M. Vaggione, p. 135-187. O livro apresenta uma importante discussão sobre a relação da política neoconservadora com as religiões em nível internacional, destacando o quadro na América Latina e no Brasil.

                41. O PT aprovou uma posição explícita de defesa da legalização do aborto e apresentou essa posição no seu projeto para a Constituição de 1988, onde constou também o direito à livre orientação sexual, reconhecimento dos direitos para as trabalhadoras domésticas, mudanças sobre casamento e divórcio e outras questões centrais para as mulheres. PT- Projeto de Constituição, 1987. Acervo CSBH- FPA.

                42. N. Faria. “Entre a autonomia e a criminalização: a realidade do aborto no Brasil”, em G. Venturi e T. Godinho (orgs.), Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública, p. 181-201.

                o partido disputa posição na sociedade. Não há como contornar essa questão. A ofensiva da extrema direita para criminalizar as mulheres, para negar o avanço na autonomia sobre seu corpo, sua capacidade reprodutiva, para impedir a livre expressão da sexualidade é mais do que uma comprovação da centralidade desta luta para uma esquerda que se propõe a ser libertária.

                43. PT-“As bases do PAG. Plano de Ação de Governo”, para as eleições de 1989. Capítulo: “Por um Brasil de Homens e Mulheres Livres e Iguais”. PT-Resoluções de Encontros e Congressos, p. 415-18.

                44. Agradeço a leitura atenta e as contribuições de Teresa Cristina Sousa, Conceição Nascimento, Laisy Moriére, Didice Godinho Delgado, Gláucia Fraccaro, Clarisse G. Paradis, Gláucia Matos Adeniké, Marilane Teixeira e, com certeza, do grupo de redação dos textos neste livro.

                  O debate feminista no partido, a atuação e organização das petistas na construção de um movimento de mulheres massivo, mobilizado, enraizado como uma força social, contribuindo de forma decisiva para a expressão política das mulheres como sujeito no Brasil, se expressa no enorme esforço de construir a atuação do PT como um partido feminista. Em alguns momentos, o caminho se faz ainda mais árido, quando as concessões ao conservadorismo, à dinâmica patriarcal das relações, parecem se sobrepor à construção de Um Brasil de homens e mulheres livres e iguais, lema que sintetizava as propostas das mulheres para a disputa presidencial de 1989, a primeira após o final da ditadura, e aprovado no 6º Encontro Nacional do PT, nas “Diretrizes para a elaboração do Programa de Governo. As bases do PAG-Plano de Ação de governo”⁴³. Com limites e contradições, a construção de um programa e uma prática feminista indissociáveis da disputa pelos projetos de mudança são marcas políticas que o PT vem construindo na sociedade brasileira.

                  Este é um desafio cada vez mais relevante diante de retrocessos impostos com a investida da extrema direita em todo o mundo e a persistência de seus ataques a todas as pautas e qualquer medida de garantia e ampliação da igualdade.⁴⁴

                  REFERÊNCIAS

                  Abreu,Maira.Feminismo no exílio. Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris. São Paulo: Alameda, 2014. 288p.

                  Alvarez,Sonia. “Politizando as relações de gênero e engendrando a democracia.” In: Stepan, Alfred (org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 315-380.

                  Biroli,Flávia.“Gênero, ‘valores familiares’ e democracia.” In: Biroli, Flávia; Vaggione, Juan Marco e Machado, Maria D. C. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 136-87.

                  Biroli,Flávia;Vaggione,JuanMarcoeMachado,MariadasDores Campos. Gênero, neo-conservadorismo e democracia: disputase retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020. 224 p.

                  Carvalho,Marília.“Encontro Nacional do PT sobreo Movimento de Mulheres. Um passo decisivo”. Jornal Em Tempo, ano VI, n. 151, junho de1982. FPA-CSBH. Siac. Disponível em: https://siac.fpabramo.org.br/searchAcervo/1214. Acesso:29 set. 2024. Davis,Angela. Mulheres, raça eclasse.São Paulo: Boitempo,2016. 244p. Delgado,MariaBereniceG.“Maismulheres na direção da CUT.”Revista Estudos Feministas, ano 4, 1/1996. p. 138-47.

                  Eley,Geoff.Forjando a democracia. A história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005. 766 p.

                  Faria,Nalu.“Entre a autonomia e a criminalização: a realidade do abortono Brasil.”In:Venturi,Gustavo e Godinho, Tatau (orgs). Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: FPA/Sesc-SP, 2013. p. 181-215. Fraccaro,GláuciaeGodinho,Tatau.“O ‘feminismopetista’ na história do Brasil”.In: Fontes, Paulo e Pomar, Valter. Históriado petismo. Vol 1. 1a ed. São Paulo: ELAHP, 2023. p. 429-56.

                  Godinho,Tatau.“O PT e o feminismo”. In: Borba, Ângela; Faria Silva, Nalu; Godinho, Tatau (orgs.). Mulher e política: gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 15-32. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/ mulher-e-politica- genero-e-feminismo-no-partido-dos-trabalhadores/.

                  Jaquette,Jane.The Women’s Movement in Latin America: Participation and Democracy. Boul- der-San Francisco-Oxford: WestviewPress,1994. 2nd ed. 257p.

                  Kergoat,Danièle.“Dinâmicae consubstancialidadedas relações sociais”.Novos Estudos Cebrap, n. 86, março 2010. p. 93-103.

                  Mulherio.1982. “Um lugar no governo”. Ano 2, n. 10, novembro- dezembro de 1982. p. 8-9. (Mesa redonda com Eva Alterman Blay e Carmen Barroso-PMDB; Elisabeth Souza-Lobo e Bárbara Hartz-PT; Ana Luíza Viana-PDT). Repositório da Fundação Carlos Chagas: https:// www.fcc.org.br/repositorios/mulherio/.

                  Mulherio. 1983a. “Conselho da Condição Feminina: nossa parcela no poder.” Ano 3, nº 13, maio-junho de 1983. p. 12-3. (Textode Inês Castilho, com opiniões de Elisabeth Souza- obo-PT e Lúcia do Amaral Lopes (Cuca)-PMDB). Repositórioda Fundação Carlos: Chagas: https://www.fcc.org.br/repositorios/mulherio/.

                  Mulherio.1983b. “Política: Minas. Goiás.” Ano 3, n. 13, maio-junho de 1983. p. 11. (Minas: pelo Centro de Defesa dos Direitos da Mulher; Goiás: por Mara Lúcia Moreira, do Cevam). Repositório da Fundação Carlos Chagas: https://www.fcc.org.br/repositorios/mulherio/.

                  Partido dos Trabalhadores. Resoluções de encontros e congressos – 1979-1998. São Paulo: Partido dos Trabalhadores-Fundação Perseu Abramo, 1998, 704 p. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/partido-dos- trabalhadores-resolucoes-de-encontros-e-congressos-
                  -programas-de-governo-1979-1988/.

                  Partido dos Trabalhadores. “Declaração Política”. Comissão Coordenadora Provisória do Movimento pelo Partido dos Trabalhadores, 13 de outubro de 1979. Partido dos Trabalha- dores. Resoluções e Congressos. 1979-1998. São Paulo: FPA, 1998. Disponível em: https:// fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/sites/3/2017/04/03- declaracaopolitica_0.pdf. Acervo CSBH-FPA.

                  PartidodosTrabalhadores.“Manifesto de Fundação”. São Paulo,Colégio Sion, 10 fevereiro 1980. PT. Resoluções e Congressos. Cit. p. 65-67. Disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/ wp- content/uploads/sites/3/2017/04/01manifestodelancamento_0.pdf. Acervo CSBH-FPA.

                  PartidodosTrabalhadores.“As bases do PAG. Plano de Ação de Governo”. Aprovado no 6º Encontro Nacionaldo PT. Realizado em 16 a 18 de junho,1989. Colégio Caetanode Campos, São Paulo, SP. Para as eleições de 1989. PT-Resoluções e Congressos, 1998. p. 404- 26.Disponível em:https://fpabramo.org.br/csbh/wp- content/uploads/sites/3/2017/04/02-
                  -asbasesdopag.pdf.Acervo CSBH-FPA.

                  FEMINISMOPartido dos Trabalhadores. “Discurso deLuiz Inácio Lula da Silvana 1a Convenção Nacional do Partido dos Trabalhadores”, Brasília, DF, em 27/09/1981. PT-Resoluções e Congressos, 1998. Cit. p. 105-14 Disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uploads/ sites/3/2017/04/03-discursodelula1convecao.pdf. Acervo CSBH-FPA.

                  PartidodosTrabalhadores.“Programa”. Aprovado na reunião nacional de fundação do PT, realizada em 31 de maio e 1º de junho de 1980, e publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1980. PT- Resoluções e Congressos, 1998. Cit. p.68-7. Disponível em: https://fpabramo.org.br/csbh/wp- content/uploads/sites/3/2017/04/02-programa_0.pdf. Acervo CSBH-FPA.

                  Partido dos Trabalhadores. Projeto de Constituição. Partido dos Trabalhadores. Projeto de Constituição da RepúblicaFederativa Democrática do Brasil apresentado à Assembleia Nacional Constituinte em 06 de maio de 1987. Acervo CSBH-FPA.

                  Partido dos Trabalhadores.PT-Mulheres. “1º Encontro Nacional doPT sobreo Movimento de Mulheres”. Realizado em 19 e 20 de junhode 1982, em São Paulo-SP. Relatório final do Encontro,circulares, convocatórias e documentos. Acervo CSBH-FPA Disponível em: https://siac.fpabramo.org.br/searchAcervo/3864. Acesso:29 set. 2024.

                  Partido dos Trabalhadores. PT-Mulheres. “2º Encontro Nacional das Militantes Petistas do Movimento de Mulheres”. Realizado em 22, 23 e 24 de julho de 1988, em Vitória-ES. Rela- tórios, circulares e documentos, texto-base para o Encontro. Acervo CSBH-FPA Disponível em: https://siac.fpabramo.org.br/searchAcervo/3865. Acesso:29 set. 2024.

                  Partido dos Trabalhadores.PT-Mulheres. “3º Encontro Nacional doPT sobreo Movimento de Mulheres”.Realizado em 16,17 e 18 de agosto de 1991, realizado em Ibirité-MG. Rela- tórios, circularese documentos. Acervo CSBH-FPA Disponível em: https://siac.fpabramo. org.br/searchAcervo/5995. Acesso: 29 set. 2024.

                  PartidodosTrabalhadores.PT-Mulheres. “Mulher e PT. Uma propostade discussão e trabalho”. Comissão de Mulheres– PT São Paulo, 11 de junhode 1981. (mimeo) Acervo CSBH-FPA.

                  PartidodosTrabalhadores.PT-Mulheres. “O PT e a luta pela libertação das mulheres”. Vitória, 1988. (Texto-base apresentado pela Comissão organizadora do 2º Encontro Nacional de Militantes Petistasdo Movimento de Mulheres, realizado em Vitória (ES),em 1988). (mimeo) Acervo CSBH-FPA.

                  PartidodosTrabalhadores.PT-Mulheres. “O PT e o feminismo”. Folheto assinado por militantes do PT-Rio Grande do Sul. Outubro de 1987. Acervo CSBH-FPA.

                  PartidodosTrabalhadores.PT-Mulheres. “Convocatória. A participação do PT no 3º Con- gresso da Mulher Paulista”. Jan 1981 (mimeo).Acervo CSBH-FPA.

                  PartidodosTrabalhadores.PT-Mulheres. Feminismo e organização das mulheres petistas. Co- ordenação editorial Laisy Moriére e Marilane Oliveira Teixeira.Publicação da Escola Nacional deFormação do PT (FPA) e Secretaria NacionaldeMulheres doPT.São Paulo, julho 2011.
                  Pedro, Joana Maria e Wolff, Cristina S. (orgs.). Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul.
                  Florianópolis:Ed. Mulheres,2010. 296p.

                  Sarti,Cíntia.“Feminismo no Brasil: uma trajetória particular”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, (64): 38-47, fev. 1988. Soares, Vera. “Movimento feminista. Paradigmas e desafios”. Revista Estudos Feministas, número especial, 2/1994. p. 11-30.

                  Souza-Lobo, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos. Trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense/Secretaria Municipal de Cultura, 1991.288 p.

                  Teles,AmelinhaeLeite,RosalinaSantaCruz. Da guerrilha à imprensa feminista. A construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013. 312 p.

                  TATAU GODINHO

                  Artigos da última Revista – 

                  ×