Este texto é uma tentativa de dialogar criticamente com os fundamentos do documento “Contribuição ao debate para a Conferência Nacional da Tendência Democracia Socialista”.
1. A primeira pergunta que ressalta quando lemos o documento dos companheiros da DS é: por que lançaram mão do artifício de reproduzir os principais trechos da Carta à direção da tendência escrita pelos companheiros Daniel Bensaid, Michael Lowy e Francisco Louçã? Certamente é um recurso de argumento de autoridade. Ora, tal carta foi escrita antes do documento base da nossa Conferência, aprovado por sua coordenação nacional. Que debate é este que recusa os termos em que é colocado? Trata-se realmente de debater ou apenas de marcar posição? Esta preocupação fica ressaltada com o fato da Carta já partir do diagnóstico concluído e não demonstrado de que o governo Lula é “social-liberal”. Assim, o principal tema do debate fica sem discussão propriamente argumentativa sujeita à contestação de razões analíticas ou de evidências. O termo “social-liberal” é aplicado pelos companheiros da Direção da Quarta Internacional para designar os governos europeus dirigidos por partidos social-democratas, com políticas neo-liberais e bases nas classes trabalhadoras. Na verdade, analisa-se o caso brasileiro do PT e do governo com base em uma analogia com a experiência destes partidos e governos europeus. A analogia dispensa o conhecimento real das mediações que fazem um caso histórico único e irrepetível. Enquanto a analogia funciona, a inteligência descansa porque a conclusão está de antemão pronta. Assim, o mesmo conceito serviria para designar o campo das experiências do governo Lula e do governo Blair, o PT e o partido social-democrata alemão, por exemplo?
2. Mas quando este diagnóstico tão “seguro e definitivo” sobre a experiência do governo Lula foi sintetizado? Uns já haviam concluído antes do governo começar (sequer votaram nele e encararam a vitória de Lula como uma derrota histórica da esquerda brasileira); outros já no tempo zero de governo (não deveríamos participar de um governo com participação de burgueses); uns outros passaram a defender abertamente esta posição a partir da criação do P-Sol; enfim, houve quem defendesse a saída do governo a partir do calendário eleitoral das eleições de 2004, calculando instrumentalmente as táticas da luta contra a maioria do PT. Estas diferenças do tempo da conclusão sobre o governo Lula são significativas, mas tenderam a se ajustar, foram precipitados, pelo cronograma do P-Sol. O tempo das necessidades de fundação, construção e lançamento de uma candidatura alternativa à presidência pelo P-Sol em 2006 passou a ser o tempo do posicionamento em relação ao governo Lula. O que há de comum em todos estes tempos é que o balanço do governo Lula não é feito de acordo com o seu tempo histórico de experiência. A “experiência” já está feita na cabeça de quem fez o diagnóstico. Só resta colher dados para confirmá-lo. Na verdade, os companheiros nunca apresentaram ao debate interno da tendência um texto teoricamente fundamentado e empiricamente sólido para comprovar os seus juízos. Tal texto, submetido ao debate democrático de discussão da tendência, seria contraditório com as necessidades da delimitação política pública. Com a fundação do P-Sol, tiveram que passar cedo demais da análise para a crítica, da crítica para a condenação, da condenação ao combate.
3. O recurso à analogia e o tempo precipitado da conclusão coincidem, e não poderia deixar de ser diferente, com uma forte mediocrização do campo analítico sobre o governo Lula. Três recursos metodológicos são mobilizados: o centro é sempre a caracterização da gestão macro-econômica para definir de modo economicista o caráter geral do governo; as demais políticas estruturantes do governo ( política externa, políticas sociais, regulação do mercado e dinâmicas das instituições do Estado, relação com os movimentos sociais) são tratadas como secundárias ou irrelevantes ou de forma positivista, sem contradições; a análise é centrada no governo e não no movimento geral das forças políticas e das classes. Cria-se assim um raciocínio circular: o governo é neoliberal porque a gestão macro-econômica é neoliberal; logo, há uma hegemonia neoliberal e todo o resto das políticas é subordinado à lógica neoliberal. As informações são sempre seletivas (não se reconhece nenhum avanço do governo em qualquer área e quando algum é citado é para ser desqualificado uma linha após), jornalísticas, fragmentadas. Assim como se criou um tempo alheio à experiência para condená-la, a externalidade neste tipo de análise é um mérito e princípio analítico. Com isto, o que se abandona não é pouco: é a própria condição orgânica da vanguarda política, seu enraizamento na luta de classes, seu conhecimento prático das situações, suas intuições ainda informuladas, mas que podem ser decisivas, a própria dúvida criativa que é fundamental em uma experiência histórica das proporções e significados de governar o Brasil. Ora, a DS é uma corrente de militantes revolucionários que tem inserção real na luta de classes, em várias delas com peso de direção. Está presente em várias regiões do Brasil, na CUT, no PT, no Parlamento, em prefeituras, no movimento feminista e de negros, na direção de um ministério estratégico do governo Lula. Esta riqueza de raiz não aparece nos textos, mas informações e julgamentos muitos sumários dos companheiros. Por exemplo, onze linhas são escritas sobre a nossa experiência no Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ora, colheu-se sequer informações junto aos companheiros que estão fazendo este esforço histórico e memorável de reconstituir uma cultura de reforma agrária da esquerda brasileira? Com que base se faz um balanço como este, com que autoridade externa à experiência se conclui ?
4. O item 2 da “contribuição…” faz a diferenciação entre partido e governo, entre PT e governo Lula, de modo simplificado e abstrato. “O partido é um produto das lutas. O governo é uma instituição de Estado”. Ora, isto vale para qualquer país, em qualquer situação histórica. Mas a situação é muito mais complexa. Como sabemos, o PT desde o seu nascimento fez a opção por se inserir no quadro contraditório das instituições brasileiras em processo de democratização. Hoje, não é pequeno o grau de “estatalidade” do PT. Da mesma forma, o caráter “estatal” do governo Lula está contraditoriamente relacionado, em vários níveis, com as tradições, entidades e lideranças dos principais movimentos sociais brasileiros. Movimento sindical, MST, Contag, movimentos sociais urbanos, movimentos feministas, movimentos negros, movimentos gays, movimentos ecológicos, ONGS progressistas, até mesmo a organização do Fórum social Mundial contou com forte envolvimento do governo Lula. Nesta forte inserção entre governo, partido e movimentos sociais se disputa o futuro do governo Lula. Como, então, disputar o PT saindo do governo Lula e fazendo oposição a ele? Na verdade, a lógica de quem está propondo a saída do governo é a de preparar também a saída do PT a tempo de apoiar um candidato de oposição à presidência.
5. Na verdade, o tempo alheio à experiência, a exterioridade em relação a ela, a abstração das ricas relações entre governo-partido-movimentos sociais criada no sentido histórico pelo PT remetem a uma fixação a um paradigma clássico de revolução a partir do qual se condena liminarmente a experiência. No fundo, trabalha-se com a noção de um governo de transição ao socialismo, capaz de imprimir uma dinâmica aberta e geral de confrontação com o imperialismo, com as instituições burguesas, com o grande capital financeiro, industrial e agrário apoiado na mobilização das massas. Mas Trotsky tinha uma avaliação da crise geral do capitalismo (com muito ingredientes de realismo no contexto da grande crise de 1929 e das guerras mundiais) e da iminência potencial da revolução mundial. Isto se mantém? Trotsky trabalhava com dinâmicas insurrecionalistas como centro da estratégia e não previa a chegada de partidos socialistas ao centro do Estado burguês via eleições. Como operar uma transição neste contexto? E principalmente: Trotsky não tinha desenvolvido um conceito pleno de democracia socialista (apenas defendia o pluralismo no interior do movimento operário). Como fazer a transição em um contexto de pluralismo democrático com as forças burguesas? Trotsky também trabalhava com a possibilidade de desbordar “direções traidoras” através do impulso revolucionário do proletariado. Mas como fazer isto se não é este o movimento fundamental do proletariado? A verdade é que estamos trabalhando para além da experiência do socialismo internacional e a experiência reivindica de nossa parte um enorme, complexo e inovador esforço de elaboração. Como responder aos complexos desafios de superação do neoliberalismo em um país da semi-periferia no contexto atual? O recurso a um paradigma fixado de revolução (que não tem compatibilidade inclusive com a própria alternativa que se coloca em prática, senão ao nível da caricatura) serve apenas para anatemizar posições, denunciar “novos traidores”. É mais uma forma de recusar um debate construtivo, livre e aberto.
6. Falar de tudo isto – do tempo alheio à experiência, da externalidade da análise, do sentido abstrato das relações partido-governo, do paradigma de revolução congelado e anti-histórico da imaginação- significa identificar as armadilhas de uma razão sectária. Mas a maior delas remete ao sentido ético-político destas posições. O que significa dar as costas a uma experiência de tal magnitude, que custou esforço militante, vidas e até atos de verdadeiro heroísmo social de toda uma geração para tomar como aliados preferenciais correntes ultra-sectárias de escasso valor para a história da luta pelo socialismo no Brasil? Que ética revolucionária é esta que faz do combate à esquerda existente no Brasil a prioridade do seu sentido de ser e agir? Que ética revolucionária toma o partido do povo “traído” mas sem o povo, da reforma agrária mas sem o MST, dos trabalhadores mas sem a CUT e assim por diante? Qual ética revolucionária autoriza alguns a acusar companheiros revolucionários de “governistas”, que teriam trocado suas consciências por interesses materiais? Que ética revolucionária é essa que nem dialoga nem percorre os caminhos democráticos do debate? Em certas culturas revolucionárias, a ética da revolução se desvinculou dos valores humanistas e democráticos. Ao fazer isto, o que os auto-intitulados revolucionários fizeram foi converter o socialismo de um bem público em patrimônio de seitas, o espírito largo da história em assunto de brigas fratricidas, a solidariedade humanista com os sofrimentos do povo e dos trabalhadores e seu difícil processo formativo como protagonistas da história em cálculos de luta política.
7. Fugir às armadilhas da razão sectária não é armar-se sectariamente de uma razão reta e imune à experiência. É convidar ao debate realmente democrático, em nome da memória fraterna do já vivido, do respeito mútuo que nos merecemos, dos valores que ainda julgamos compartilhar. Precisamos de toda a força acumulada da esquerda socialista e dos lutadores dos movimentos sociais para disputar os rumos do governo Lula e do Partido dos Trabalhadores. A razão sectária não é nossa inimiga: estão ainda aí, anos a desafiar, a cotidianamente afrontar os nossos sonhos de transformação social, os nossos verdadeiros inimigos de classes, aqueles que exploram, oprimem e criam até guerras em nomes dos interesses do capital.
Juarez Guimarães
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