Os momentos de crises profundas vividas pela humanidade, em escalas variadas, aguçou o debate e a consciência coletiva sobre causas, consequências e alternativas possíveis de superação. Em especial, como prevê-las, como evitá-las, como estar preparados socialmente para que não ocorram.
Recentemente, o mundo viveu a pandemia da Covid-19. Algo que parecia improvável pelo avanço da ciência e pela capacidade humana de uma resposta rápida e eficaz, vimos que não foi assim. Uma tragédia. Milhões de mortos no mundo inteiro, mas também vimos a abismal diferença de condições para enfrentar a crise entre outros países e as consequências disso para as suas populações. A capacidade rápida de produzir antídotos, a base científica foi instalada, a existência de estruturas públicas e abrangentes para atendimento massivo, a capacidade de planejamento governamental etc. provaram sua importância em reduzir danos, em salvar vidas, inclusive entre sociedades pobres e ricas em proporcionalidades distintas de vítimas.
Em escala menor, nosso país vive mais uma epidemia, já conhecida, como é o caso da dengue e que revela, também, os avanços e retrocessos da ação pública e coletiva para enfrentá-la. Mesmo com o diagnóstico mais consensual das causas e de como enfrentar o problema, não é menos complexa a solução sem amplas campanhas de prevenção, de educação pública, de planejamento de ações governamentais para garantir produção e aplicação de vacinas, redes públicas de atendimento que permitam sua universalização.
Neste momento, vivemos mais uma calamidade mais restrita geograficamente, mas não menos importante em suas consequências sociais. Nosso Estado, o Rio Grande do Sul, é vítima da maior catástrofe climática de sua história. Fruto de desequilíbrios crescentes na relação do homem com a natureza, esses fenômenos ocorrem mundialmente e tende a crescer na gravidade de suas consequências para milhões de pessoas.
A forma predadora do modo de produção dominante do mundo é a responsável maior por esse desequilíbrio e exige a resposta mundial para corrigi-lo, mas isso não impede nem paralisa as ações locais e regionais das quais a responsabilidade é nossa.
Não há como enfrentar esses desafios sem políticas públicas, sem planejamento, sem regramento que impeçam causas locais e regionais que facilitam e agravam as ocorrências desses desastres naturais. Neste ano, vivemos também mais um processo eleitoral. E o tema das cheias, dos rios, dos sistemas de proteção e preservação do meio ambiente estarão de volta nos programas e nas políticas públicas que a cidade necessita.
Neste momento, estamos todos impactados com o ocorrido nos principais rios que formam o grande estuário do Lago Guaíba, e as cidades que o circundam.
Dezenas de mortes, centenas de desaparecidos, cidades destruídas, vidas pessoais e o trabalho e a economia dessas regiões profundamente atingidas.
É impossível prover em todas as dimensões uma catástrofe desse porte, mas é também um chamamento à razão daquilo que se pode evitar por decisão consciente da sociedade e ser assumida pelos governantes, pelo poder público com continuidade e planejamento amplo.
“Arroio não é valão”, dizíamos em uma campanha de conscientização e mobilização, no período de Administração Popular em POA. Da mesma forma, os rios e as bacias hidrográficas precisam ter esse tratamento, como as áreas verdes e os espaços de contenção e amortecimento de períodos chuvosos acima da média.
Os arroios e rios possuem suas áreas de várzea de dispersão nos momentos de cheia e isso tem que ser preservado através de planos diretores, limites construtivos, vegetação ciliar, etc. Isso parece óbvio, mas não é. Não que não seja evidente que questões como essas sejam observadas em políticas públicas.
Vivemos uma etapa do modo de produção capitalista que abandonou aprendizados elementares para a vida em sociedade, em grandes metrópoles, em imensas aglomerações regionais. O planejamento nacional, científico, foi substituído pela anarquia do mercado e da obsoletização da liberdade sem regulação e sem limites, em nome da falsa ideia de que isso tolhe o empreendedorismo individual. Essa é a ideologia dominante, na grande mídia, nas escolas, em igrejas, nas redes sociais, no senso comum. Logo após o trágico incêndio da Pousada Garoa, na avenida Farrapos em POA, um vereador lamentava o ocorrido, apesar de ser um dos autores da lei que flexibilizou e isentou a prefeitura de exigir e cobrar condições necessárias de segurança para moradias individuais e coletivas. Desregulamenta, libera, não fiscaliza e se solidariza com a vítima no velório ou significa aceitação ideológica ou caímos na pura hipocrisia.
A cidade de Porto Alegre não pode evitar que ocorram grandes catástrofes climáticas, mas deve fazer um grande esforço para evitá-las, assim como as demais cidades que sofreram e sofrem, e principalmente, suas populações que estão pagando o preço maior pela tragédia que nos vitimou a todos.
A capital gaúcha nasceu do seu porto e convive há séculos com o estuário. Construiu o maior porto fluvial do país ao longo de décadas. Com esforço próprio, com órgãos federais e do Estado construiu um sistema de proteção considerável. O grande dique que circunda a cidade (BR 290), o muro de proteção de toda a área portuária, as comportas, as dezenas de casas de bombas, a avenida Edvaldo Pereira Paiva (Beira-Rio), os condutos forçados no 4° distrito, ao longo de vários governos dotaram a cidade de considerável proteção fruto de investimento público e planejamento racional.
Se não funcionou plenamente agora, poderia ter sido muito pior. Mas é evidente que o abandono, a falta de manutenção e renovação dos equipamentos, a ausência de fiscalização dos serviços terceirizados, a diminuição dos funcionários públicos e dos técnicos e especialistas que conhecem e mantêm vivos a história e o papel desses equipamentos, a extensão de órgãos importantes como o Dep. de Esgotos Pluviais e a Secretaria do Planejamento são ações conscientes dos últimos governos e responsáveis pelo estado atual de calamidade. Nada mais ilustrativa do que as comportas da área portuária serem fechadas com a tração de tratores, sacos (de areia?) para tapar os furos, frestas. Casas de bombas e comportas que vertiam água para dentro da cidade ao invés de retirá-la. Expressão mais acabada da incompetência administrativa e da política defendida e propagandeada das terceirizações e da falta de previsão e planejamento na gestão pública. A “flexibilização” das leis e da ação fiscal em Porto Alegre, a liquidação do Código Ambiental no Estado tem autores responsáveis e inclusive a cumplicidade da grande mídia e devem ser responsabilizados pelos desastres ambientais.
Esperemos que no processo eleitoral que se avizinha o debate sobre as políticas públicas a serem assumidas supere os preconceitos, a intolerância, a ausência de racionalidade e o negacionismo que se expressaram nos últimos pleitos. É o caminho para fortalecermos uma política de participação popular, do papel regulador do estado e de formação de uma cidadania consciente de seu papel protagonista na história.
Raul Pont é professor e ex-prefeito de Porto Alegre.
Maio/2024