Nos últimos meses, com especial destaque para o período eleitoral, mostrou-se a base quase mítica sob a qual se sustenta o debate econômico em geral, e o brasileiro, em particular. Não apenas porque o desenvolvimento econômico, suas causas e consequências, é um tema controverso, capaz de tornar o debate nebuloso, escondendo o essencial de qualquer tipo de discussão, mas, principalmente, por ser inerentemente ideológico, traz em si (e em suas aparentes justificativas) interesses de classes e frações de classe. A suposta neutralidade científica da ortodoxia econômica não cabe no mundo real. Senão, vejamos.
Apesar da retórica oficial de combate à inflação, todas e todos sabemos o que está por trás dessa defesa tenaz da austeridade e de um ajuste fiscal profundo por parte de alguns grupos organizados ligados ao mercado financeiro. Os interesses do rentismo passam, necessariamente, por uma política monetária e fiscal restritivas resultando em juros altos, recessão econômica e desemprego. E isso para nós não pode ser nenhuma surpresa: assim como os abutres sentem o cheiro de carne podre, o rentismo corre em busca de governos amigos ou que possam ser capturados para defesa de seus interesses. Aí nenhuma novidade. A questão principal, a meu ver, e que deve assumir seu lugar no debate econômico, são as causas da inflação brasileira, hoje assentadas no que se poderia chamar de nossa “falácia inflacionária”: a suposição de uma inflação de demanda, ou seja, o processo inflacionário reflete o aumento da procura de bens e serviços em relação a sua oferta, acarretando, com isso, pressão no nível geral de preços. Um cenário que pode ocorrer em determinados momentos, mas não é nem de longe a causa primordial que determina o processo inflacionário.
Há mais de duas décadas o receituário ortodoxo repete esse mantra para todo país e o conhecido tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante) baseia-se justamente nessa crença. O que ele reflete, em si, é a tentativa das de finanças capturarem a própria gestão da economia, deixando sem espaço políticas que priorizem a defesa do emprego e a geração de renda. No entanto, esse “remédio” se mostra pior que a “doença”: mata o paciente, sem tocar nas verdadeiras causas do mal. A inflação brasileira tem suas raízes em um movimento mais profundo, abrangendo a própria formação econômica do país e, mais especificamente, a forma como se construiu o processo de industrialização nacional.
Nossa estrutura produtiva, associada à grande empresa oligopólica de capital estrangeiro, apesar de modificações em alguns setores, se mantém na maior parte da economia, desenvolvendo-se da seguinte maneira: em uma economia em que os setores mais dinâmicos são oligopolizados, ou seja, estão nas mãos de algumas poucas empresas capazes de exercer seu poder de monopólio no setor que atuam, esses agentes conseguem defender suas margens de lucro, mesmo em cenários de baixo crescimento, o que dá nova ênfase à famosa contradição entre lucros e salários. Com o referido poder de monopólio, que permite concorrência por diferenciação de produto (e não via preços), reduz-se a possibilidade de quedas generalizadas nos custos de produção, fazendo com que a capacidade aqui instalada transforme-se estruturalmente pouca afeita ao aumento da produtividade do trabalho, reduzindo, com isso, o potencial dinâmico do crescimento econômico. Mais do que isso: qualquer aumento nos custos é repassado, em grande parte, via preços, tornando-se este a variável de ajuste que permite a manutenção ou, pelo menos, a sustentação em níveis razoáveis das margens de ganho. Nesses cenários, aumentos salariais são também repassados para os preços das mercadorias comercializadas, expondo, com isso, a seguinte questão: a possibilidade de proteção das taxas de lucro, fruto do poder de monopólio, redefine a problemática lucros-salários: a contradição anterior, central no processo de acumulação, aparece na dicotomia nível de preços-salários, o que, de fato, obscurece a relação contraditória essencial (lucros-salários) por um “problema difícil” (nível geral de preços-salários) no interior do debate sobre a gestão da política econômica, com efeitos diretos na distribuição de renda. Nesse cenário, as margens de ganho dos capitais investidos estão protegidas com relação ao aumento dos custos de produção em geral, e elevações salariais em particular. Nesse contexto, as margens de lucro possuem um piso, porém não um teto: em momentos de expansão variam mais que proporcionalmente aos salários; em conjunturais recessivas, tem neles uma “variável de ajuste” para baixo. Fora isso, há sempre a questão dos juros altos: em momentos de baixo crescimento, há a possibilidade de aplicação financeira em títulos públicos, com elevada taxa de retorno sem os riscos inerentes à atividade produtiva.
Dessa forma, o ajuste fiscal tão pedido por segmentos do capital financeiro é apenas um engodo na lógica de “plantar inflação e colher juros”: o “combate” à inflação é feita à custa do emprego e renda dos trabalhadores, com ganhos no mercado de títulos para aqueles que preferem os chamados ganhos de tesouraria ao oriundo da atividade produtiva. Num cenário de baixo crescimento, como a atual conjuntura da economia brasileira, a capacidade de repasse das elevações de custo para os preços, estabelecendo a defesa das margens, mantém a pressão sobre o nível geral de preços, mesmo sem aumento na procura de bens e serviços. Além disso, os referidos de ganhos de tesouraria, isto é, no mercado de títulos, sem os riscos inerentes da atividade produtiva, reforçam a necessidade da ampliação de investimentos e gastos públicos, capazes de manter a atividade econômica em níveis razoáveis, numa estratégia de manutenção do emprego. Em outras palavras, a falta de investimento privado abre um espaço ocupado pelo orçamento público, tendo em vista uma política anticíclica, a favor da manutenção da atividade econômica. Aqui se chega a mais uma falácia neoliberal, tão alardeado como “cânone” de políticas fiscais “sadias” (na lógica ortodoxa, é claro): o mesmo cenário que mantém a pressão de preços numa conjuntura de baixo crescimento reforça o aumento dos gastos públicos, ou seja, não são os gastos governamentais que geram ou aceleram o processo inflacionário; pelo contrário: a pressão sob o nível de preços e a elevação dos gastos são duas faces da mesma moeda num cenário recessivo. A pressão sob os preços existe, como já explicado, e o aumento dos gastos visa simplesmente a manutenção do nível de emprego e renda.
É por isso que um ajuste fiscal neste momento, no atual estado da economia brasileira, seria desastroso. Além de diminuir ainda mais a atividade econômica, com aumento do desemprego e diminuição da renda, não resultaria em grande queda no nível geral de preços, pelos motivos já citados. Provavelmente, os recursos retidos no setor produtivo seriam canalizados para o mercado de títulos, mecanismo já bastante conhecido na dinâmica econômica brasileira.
Duas importantes questões emergem nesse contexto: a primeira diz respeito à necessidade de elevação na taxação sob lucros, capaz de financiar o investimento público e manter a taxa de retorno em níveis razoáveis, sem pressão sob os salários; já a segunda refere-se à táticas adotadas pelo capital industrial: se em momentos de expansão econômica é possível compor com essa fração de classe, interessada em políticas expansionistas capazes de elevar as margens de ganho, em conjunturas recessivas ou de baixo crescimento, isso é muito pouco provável, já que adotam uma postura explicitamente defensiva, atuando conjuntamente com o capital financeiro, por políticas restritivas, que forcem a queda no nível real de salários.
Portanto, no presente cenário e com base na análise até aqui exposta, torna-se necessário um superávit menor em 2015, construindo, a partir daí, um horizonte de previsibilidade para a política fiscal, visando um ajuste gradual e de médio prazo, com a manutenção da atual relação dívida/PIB, bem como a preservação do investimento público programado para os próximos anos. Qualquer tentativa de um ajuste mais forte neste momento tende a aprofundar o baixo crescimento, com riscos reais de um ambiente econômico recessivo em 2015, com aumento do desemprego, queda na renda e inflação ainda na parte superior do sistema de bandas. Enfim, um cenário típico de “austericídio”.
*Jorge Varaschin é Mestre em Economia do Desenvolvimento