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As ilusões telemáticas | Luiz Marques

“Fique claro: a sucessão da oralidade, da escrita e da informática como maneiras fundamentais de gestão social do conhecimento não se dá por simples substituição, mas antes por complexificação e deslocamento de centros de gravidade. O saber oral e os gêneros de conhecimento fundados na escrita ainda existem e vão continuar existindo sempre”, avisa Pierre Lévy, em As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. O livro foi traduzido do francês para o português, e publicado pela Editora 34 em 1993; há exatos trinta anos. O ilustre tunisiano estudou temas que ora ganham ares de novidade. A distância permite comparar as expectativas utópicas sobre a webesfera, no amanhecer, com o seu inegável acomodamento sistêmico no entardecer.

O professor estabelecido na Universidade de Montreal, se tinha consciência de que a técnica encontra-se mergulhada na teia de coletivos humanos, não tirou as implicações para a sociedade de classes. Interpretou avanços tecnológicos teleologicamente, como se obedecessem a uma finalidade preestabelecida. Entre a última década do século XX e o início do século XXI, pairava a incógnita sobre o papel das nascentes megaempresas do Vale do Silício (Adobe Systems, Apple, Yahoo, Intel, Microsoft, Google, Facebook, Netflix, etc). Não se adivinhava o enorme vagalhão tecnocientífico, que desde então formatou o cenário político-econômico internacional. Para muitos, era o paraíso.

Reflexões tradicionais sobre o conhecimento, em períodos estáveis das comunicações, cederam às modificações sociotécnicas na feição do ser das pessoas, sem um escrutínio democrático prévio. Substituíram a consulta sobre os interesses da cidadania e do Estado de bem-estar social pela euforia, à revelia da vontade da população que jamais foi ouvida. Quem decidiu que os cobradores de ônibus fossem trocados pela bilhetagem automatizada, de costas para o ônus social? E quem aboliu os livros impressos das escolas para introduzir os tablets? As incipientes e, sim, autoritárias ilusões telemáticas sofreram a metamorfose kafkiana para assombrar a democracia em crise hoje.

Perceber o real

No princípio do século XX, os filósofos problematizaram a “ontologia da técnica” que acelerou o desenvolvimento. Os literatos escreveram romances sobre a independentização das máquinas. Em 1938, o programa de rádio “A guerra dos mundos” provocou o pânico com o simulacro de uma invasão extraterrestre, nos Estados Unidos. Em 1945, as bombas atômicas atiradas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, aumentaram a sensação de que o terror adquiria vida própria para ameaçar o Homo sapiens. A filmografia acerca do furto de fórmulas científicas para construção de explosivos nucleares, capazes de provocar destruição em massa, lota ainda as salas de cinema com suspense.

Agora, porém, o espantalho metafísico é a cibercultura que inova o modo de pensar e conviver no reino das telecomunicações. As relações sociais, o trabalho e a inteligência artificial para cumprir tarefas em diagnósticos médicos, avaliações nas bolsas de valores e nos sites de relacionamento estão submetidas à informática. A cognição por simulação dita os desejos, em um ambiente movido por dados e informações para orientar o comportamento e manipular os afetos. É como se o sujeito transcendental invariável e a-histórico, de Kant, responsável pela estruturação da percepção do mundo, tivesse reencarnado nos nerds da computação para guiar-nos pelo continente dos bytes.

As técnicas integram a nossa forma de perceber o real. Foi assim com o telégrafo, o aposentado telefone convencional, e o é com o celular onipresente e onisciente atualmente. O caleidoscópio da realidade e as estratégias para intervir na imagem das coisas mudam padrões outrora sólidos. O tecnicismo reinventa o estilo da humanidade com regulamentações inéditas do social. O devir da cultura contemporânea não pode ignorar a estridente incidência dos audiovisuais (a partir do pós-guerra) e dos computadores (a partir dos anos setenta). As redes sociais são bunkers de autodefesa para proteger os que se sentem perdidos no emaranhado de aparições eletrônicas. Compreende-se a atração ideológica pelo medievalismo reacionário da extrema direita, nas faixas etárias dos idosos.

Os verdes anos

Há cinco mil anos a educação baseia-se no ato de falar do mestre e, há cinco séculos, no uso embora moderado da impressão portátil. Não se muda isso de uma hora para outra. O resultado da corrida computacional é desastroso para o processo ensino-aprendizagem. A célere colonização dos Estados nacionais pela Big Tech pressiona alterações na ecologia cognitiva, em nome dos modernos cânones de transmissão do saber, sem discussão na comunidade escolar. A desonestidade cava os espaços.

O fetiche da modernização impõe um novo habitus cultural, como panacéia. Se não funciona, ao menos serve para vender os computers que, rápido, viram obsoletos frente a modelos superiores. O livre mercado, entendido como fator do crescimento individual e coletivo, transfere-se aos cálculos matemáticos que não contabilizam as ruínas e os perdedores, jogados para trás do “progresso”. A informatização não universaliza os direitos. Não materializa o sonho jacobino igualitário, nas telas.

A revolução tecnicista aponta o giro copernicano, do analógico, ao ideal absolutista do hipertexto. Com o que reatualiza um questionamento. Em que medida, projetos e atores singulares conseguirão desviar de seu destino a força centrípeta das redes, para as quais convergem progressivamente a informática, as telecomunicações, a edição, a televisão, o cinema e a produção musical? Poderemos lançar-nos nela à procura de outras razões que não as do lucro, outras belezas que não as do espetáculo? Nos verdes anos, chegou-se especular o advento de um delirante “socialismo digital”. Três decênios após as incursões primevas das tecnologias intelectuais, a esperança se esvai. Apesar de que, conforme assinala o poema de Bertolt Brecht: “O ventre donde isto saiu, ainda, é fecundo”.

Um erro comum

A tecnociência é um instrumento de poder financiado pelos poderosos, conquanto os internautas ao navegar pela web possam ter, com frequência, a cálida sensação de uma liberdade; a rigor, falsa. Na verdade, a lógica da dominação e da subordinação não é eliminada do cotidiano, senão que se sofistica para implementar os algoritmos da machine learning (inteligência artificial). A exploração oculta-se na “infocracia” (Byung-Chul Han), no “capitalismo de vigilância” (Shoshana Zuboff). As comunidades em conexão encenam no palco do teatro a pseudo igualdade socialista – inexistente.

O jovem Pierre Lévy cometeu o erro dos debutantes sobre as possibilidades latentes da cibercultura. A tecnociência fora dos conflitos e diferentes interpretações, em segmentos do capital e do trabalho, é uma fantasia. Não à toa, a cinebiografia homônima de Steve Jobs acena com uma promessa de emancipação, no labirinto da cibernética, apresentando-o quase como um anarquista ao revés de fundador da gigantesca corporação capitalista, a Apple. Jeff Bezos (Amazon), Elon Musk (Tesla, X) e Mark Zuckerberg (Facebook) exprimem o neoliberalismo, sem uma maquiagem libertária. Com licença para voos na estratosfera, a fim de sacudir o tédio com a bruta mundanidade dos comuns.

“Para tornar-se tecnodemocracia, não falta à tecnopolítica nada além de transcorrer também na cena pública, onde os atores são cidadãos iguais, e onde a razão do mais forte nem sempre prevalece”, acautela Pierre Lévy, que enlaça democracia e técnica em prol da “tecnodemocracia”. Qualquer crítica soa anacrônica. À época, a especulação era corrente nos que priorizavam a tecnologia, e não a luta de classes, para a configuração do cosmo-polités, o cidadão cosmopolita. Com boa vontade, incluíam no livre cosmopolitismo as mulheres, negros, florestas, mares e astros. Contudo, na fase neoliberal do capitalismo, a “liberdade” não alcança o universo; restringe-se aos donos do capital.

Que fazer? Mobilizar a sociedade em apoio à regulação da internet contra o inferno das fake news. É preciso uma legislação mundial para equacionar democraticamente o problema, através de balizas civilizacionais consensuadas. O presidente Lula busca envolver o G20 na luta. Conter o sofrimento que essas máquinas podem acarretar às nações e aos indivíduos é o incontornável desafio, em 2024.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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