Após oito anos de FCH o neoliberalismo volta com novo disfarce. A despolitização da política e da economia reduz problemas político-econômicos e sociais a déficits de gestão e contrapõe a gestão empresarial ao Estado.
LUIZ MARQUES
Amanhã,
eu sei que estarão de novo em jogo
a esperança e o povo…
– Affonso Romano de Sant’Anna, poema “O descendente da utopia” -.
– O paradigma do mercado
Durante o século 19, a “máquina”, com suas características de uniformidade e previsibilidade, serviu como metáfora explicativa das funções da natureza, da história e dos sistemas sociais. O fato de o escocês Thomas Carlyle, num libelo romântico (Sinais dos tempos, 1829), haver se insurgido contra o que classificou de “a era do maquinismo” apenas confirma o espírito da época. No século 20, o “mercado” assumiu o papel paradigmático de idéia-organizadora da visão de mundo dominante, fazendo com que a esfera econômica ganhasse uma supremacia sobre a política. Teve então início uma despolitização da política e da economia. Dissociavam-se os termos que Marx soldara no conceito de “economia política”.
A ideologia do progresso foi a expressão pública desta concepção mercadológica do devir histórico, assentada nos dogmas do lucro e da competitividade e impulsionada pelos vetores do empreendorismo e do tecnocientificismo na mentalidade dos indivíduos. Não à toa, o economista Roberto Campos, afirmava que – entre nós – o subdesenvolvimento é fruto da cultura ibérica do privilégio, da cultura indígena da indolência e da cultura negra da magia. As relações de dominação política e econômica durante o ciclo do colonialismo europeu, o tráfico de escravos, a exploração predatória de matérias primas e o comércio em condições desiguais com a metrópole não teriam a ver com o atraso.
Com uma dinâmica autônoma, a economia seria movida pelo animus empreendedor e determinada pela evolução tecnocientífica. Esta é a equação neoliberal para o desenvolvimento. Compreende-se, em conseqüência, que a obra de Thomas Friedman (O mundo é plano – uma breve história do século 21, 2005) tenha merecido uma entusiasmada resenha do editor-chefe de Zero Hora nas páginas centrais do jornal (18/03/06), na qual o autor é classificado de “o messias da globalização 3.0” e seu best-seller de “manual do nosso tempo”. Exagero. Escrito na forma de uma novela sobre as aventuras das grandes corporações, o livro é sobretudo uma peça publicitária da Organização Mundial do Comércio sobre as maravilhas do cruzamento entre o livre comércio e os avanços tecnológicos: “a interseção da tecnologia com o comércio mundial é uma força libertadora que pode ser o antídoto contra o raquitismo econômico e intelectual”. Isto é, contra um projeto de desenvolvimento nacional soberano frente ao imperialismo.
O novo “messias” deslumbra-se com os softwares de fluxo de trabalho, que permitem a conjugação de atividades em diferentes pontos do planeta num mesmo ambiente virtual. E não poupa lugares comuns ao discorrer sobre a racionalidade econômica que induz a transferência de indústrias para regiões com mão-de-obra barata, menos impostos e menos gastos com saúde por funcionário (alusão à India e à China). Ao Brasil e ao México aconselha que igualmente ofereçam incentivos gordos para enfrentar a concorrência. Seu ponto de partida e de chegada é o status quo, pouco importando-lhe os efeitos nefastos da guerra fiscal que invariavelmente retira recursos da população e repassa-os para as mega-empresas, as únicas beneficiárias neste leilão em que a liberdade chantageia a necessidade.
A lógica se repete nas flexibilizações de direitos para os assalariados e de deveres para os patrões. Também nas desregulamentações que remetem a sociedade a um estágio pré-contratualista promovendo uma volta ao “estado de natureza” de Hobbes ao enfraquecer a figura do Estado-nação. Como sublinhou Carlos Nelson Coutinho, numa entrevista a Denis de Moraes, “faz parte da ideologia da globalização passiva e pelo alto a crença de que o Estado nacional terminou, de que a nação deixou de ser um espaço de tomada de decisão”. Tais são os valores hegemônicos em nosso tempo, em nome do deus-mercado.
– A gestão empresarial como modelo
A despolitização da política e da economia traduz-se contemporaneamente na pressão para que o debate sobre modelos de gestão substitua o embate sobre projetos político-ideológicos alternativos para o Estado. O pressuposto é de que os gastos sociais aprofundam a crise fiscal sobrecarregando de impostos os contribuintes. Para romper o círculo vicioso, propõe-se que os procedimentos nas empresas que acumulam lucro e competitividade em pleno processo de globalização sejam imitados pelos detentores de cargos de mando no aparato estatal. A solução estaria na adoção de um parâmetro de “competência técnico-gerencial”. Maquia-se, deste modo, a desgastada apologia do Estado-mínimo neoliberal.
Nacionalmente, quem encarna a proposta dissimulando seus compromissos com os ricos é Geraldo Alckmin (PSDB/SP). Aliás, turbinado entre janeiro e setembro de 2005 com R$ 2,3 milhões mensais para suas despesas de gabinete com propaganda e, entre outubro e fevereiro último, com R$ 4,6 milhões. No total, estão previstos R$ 45 milhões para o pagamento de publicidade do governo de São Paulo ao longo do ano de 2006. Estão alijadas do cálculo as áreas de Saúde e de Educação e as estatais. Para não mencionar o serviço realizado gratuitamente pelas instituições que Gramsci chamava de “aparelhos privados de hegemonia”, dentre as quais destacam-se duas publicações que, não por coincidência, têm participação acionária do capital internacional: a revista Veja e a Folha de São Paulo.
Constrói-se assim a propalada “eficiência administrativa” do candidato que se pronuncia a favor da retomada das privatizações dos bancos estaduais, da revisão da legislação trabalhista e do reatamento de negociações com os EUA. Por um lado, para sepultar o Mercosul, a Comunidade Sul-Americana de Nações e a integração da América Latina; por outro, para reavivar a Alca. O que coloca-o, não com o crachá de “um gerente para o Brasil”, mas com o de “gerente dos interesses norte-americanos no Brasil”. É ridícula, pois, a insinuação de que sua polarização com o PT é uma “pantomima” e, patéticos, os suspiros sociológicos por um “ideal de governo que disponha da capacidade mobilizatória de Lula e da competência do PSDB” (Hélio Jaguaribe, “Decadência ou nova emergência”, FSP, 19/03/06).
Se nacionalmente a direita acusa o governo Lula de incompetência, regionalmente mascara o fiasco do governo neoliberal de Germano Rigotto com ardis para desresponsabilizá-lo pela inação que conduziu ao desmonte dos projetos sociais herdados e à imobilizadora crise que assola as finanças públicas e faz o RS crescer negativamente. Uma orquestração das elites econômicas auxilia neste processo de desresponsabilização política, desde o começo do mandato, com uma blindagem para ricochetear as críticas à administração e jogar a culpa nos “problemas estruturais do Estado”.
O simulacro de pacto “para a união de todos” ensaiado com a articulação “Rio Grande que Queremos – Agenda Estratégica 2006/2020”, puxada pelas cinco grandes federações empresariais, coloca-se nesta perspectiva. Idem com relação ao “Fórum Empresarial – O Rio Grande na Rota dos Investimentos” que aglutinou os diretores de grupos do porte da Copesul, da Aracruz, da Wal-Mart, da Votorantin Celulose e Papel, da General Motors e da John Deere para reiterar seu “apoio à política do governo”. Leia-se: à generosa política de renúncia fiscal para as empresas globalizadas e ao afrouxamento do combate à sonegação do empresariado. Apesar do rechaço inicial à Lei que, em 31 de dezembro de 2004, aumentou em 28% as alíquotas do ICMS da energia elétrica, combustíveis e serviços de comunicação, setores que respondem por quase 50% da receita total de tributos, a burguesia local continua fiel à sua criatura. Até porque os segmentos pobres e as camadas sociais intermediárias é que pagaram a fatura do “tarifaço”, sem poder repassar os custos. Tudo muito, muito chique.
De toda maneira, em nível nacional como regional, as fórmulas tecnocráticas que reduzem os desafios do desenvolvimento a uma “questão de gestão” deixam escapar o essencial: a urgência de uma discussão democrática, inclusora e propositiva, para a implantação de modelos criativos de autogestão e/ou co-gestão no controle público do Estado. Este, em contrapartida, é o desafio da esquerda.
– A crise identitária do PT
Os descalabros de alguns dirigentes por fora das instâncias estatutárias do partido, movidos pelo afã hegemonista nas batalhas internas e externamente por um projeto que fazia do poder um fim em si, ao invés de um meio para diminuir a distância entre as classes, contribuíram para o pragmatismo eleitoral que arrefeceu as defesas ético-políticas e programáticas do petismo. O ápice chegou no day after da eleição de Lula. Com a intenção de corrigir as distorções institucionais de um sistema político em que os votos para a Presidência não possuem correspondente na composição do Legislativo, o centro do poder Executivo montou uma amálgama de partidos, ditos aliados, no Congresso Nacional “para garantir a governabilidade”. Deu no que deu. As “más companhias”, na sensata síntese de Olívio Dutra ao evocar a sabedoria de Martin Fierro, acabaram pondo em perigo a governabilidade que deveriam assegurar. Foi o que mostrou a crise política de 2005, magnificada pelo seletivo olhar midiático. Parêntesis: Marilena Chauí foi a primeira, a propósito, a alertar para o facciosismo da cobertura sobre uma crise que a própria mídia ajudou a fermentar, com a intenção de anatematizar e condenar ao ostracismo o PT . O troco veio no PED, com a mobilização de mais de 300 mil filiados dispostos a refundar o partido da estrela.
Pois bem. Sem uma convincente exposição de motivos para esclarecer as concessões às agremiações e às personalidades até ontem perfiladas sob as bandeiras neoliberais, causou surpresa generalizada a indicação do deputado Henrique Meirelles (PSDB/GO), ex-diretor do Bank of Boston, para o Banco Central. E, para o cúmulo, a manutenção da mesma equipe que controlara os postos estratégicos do Ministério da Fazenda no interstício neoliberal de Pedro Malan. Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, no caso, o erro de Lula foi não ter explicado com clareza as razões da cautelosa transição em cadeia de televisão, “olho no olho”, publicizando a extrema vulnerabilidade externa do país aos ataques especulativos, etc. Ao não fazê-lo, frustrou a população e a militância.
O incipiente governo, a seguir, errou o timing ao encaminhar a Reforma da Previdência à revelia dos protestos oriundos das bases; deveria ter aberto a temporada das reformas com uma Reforma Política que assegurasse o financiamento público de campanha, o voto em listas e a fidelidade partidária. Errou, ainda, ao circunscrever a dialética política à arena congressual, em troca das emendas individuais dos parlamentares ao orçamento da União; deveria ter ampliado o diálogo com os movimentos sociais e a participação popular na administração. Errou, ademais, ao sustentar as elevadas metas de superávit primário (que subtraem recursos dos investimentos sociais e em infra-estrutura) e ao intervir com timidez na alta de juros da taxa Selic (que penaliza a produção em proveito dos rentistas); deveria ter atentado para os Manifestos redigidos pelos economistas que integram o projeto democrático e popular.
Estes e outros equívocos não significam uma traição de princípios do PT e tampouco um rompimento do presidente Lula com a sua biografia política, como vociferaram as sentinelas do conservadorismo secundadas por vozes esquerdistas, usadas e abusadas. Ocorre que o PT alcançou o poder “sem uma teoria do neoliberalismo e sem uma elaboração teórica que possibilitasse construir uma sociedade pós-neoliberal”, nas palavras de Emir Sader (A vingança da história, 2003). Este é o ponto. Tirar lições desta carência político-intelectual é fundamental para superar os percalços vividos.
– O sonho não morreu
A conjuntura é favorável para os movimentos de transformação. Do Chile à Venezuela, passando pelo Uruguai, a Bolívia e até a Argentina (que reestatizou os serviços de água e esgoto na grande Buenos Aires), o povo latino-americano crescentemente recusa a exclusão social e o tacão imperialista. A globalização neoliberal que FHC em seu primeiro quadriênio proclamou ser “um novo renascimento”, e no segundo calou ao perceber a irrupção e o espraiamento de uma formidável resistência política nos hemisférios Norte a Sul, perdeu a aura de inevitabilidade. O fatalismo que decretava a morte da noção de vontade política perdeu o fôlego de massas. Concorreram para a configuração deste auspicioso quadro político as edições do Fórum Social Mundial, a Campanha Continental Contra a Alca, a Assembléia de Movimentos Sociais, a Aliança Social Continental, a Marcha Mundial das Mulheres, a Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul e os fóruns de trabalhadores em economia solidária, entre outros.
Num ambiente impregnado pelo individualismo, em que nas pegadas clássicas de John Rawls (Teoria da Justiça, 1971) só se admite como legítimas as modalidades de prática política individuais, a exemplo da “desobediência civil” e da “objeção de consciência”, ganham maior relevo as “ações militantes” coletivas que agora propiciam uma reaproximação do Continente com os temas da solidariedade e da esperança. Deve-se ao protagonismo anônimo dos movimentos sociais da cidade e do campo, tantas vezes criminalizados, as conquistas obtidas pela civilização contra a barbárie atualmente.
Enganam-se, contudo, os que antevêem facilidades para a reeleição de Lula. Os efeitos do vendaval ideológico, que diluiu o valor do bem público na percepção da nação e esvaziou o significado das referências associativistas, carreiam um preocupante grau de flutuação na inclinação dos eleitores para o próximo pleito. Ao erigir o mercado como instância máxima de regulação social, o neoliberalismo induziu uma anomia social que, somada à desagregação das classes médias suscitada por uma persistente queda de renda, traz sempre uma incerteza para o amanhã. Este é o saldo dos vilipêndios lançados por duas décadas contra a res publica. A única coisa certa é que a competição será encarniçada.
Das casamatas da oposição já saem os disparos que cinicamente procuram levar para o patamar da ética e da moral a campanha antipetista e antilulista. Basta denunciar, a mídia não pede provas. Em resposta, é preciso mostrar a impostura dos “trezentos picaretas” da Câmara Federal e do Senado à eterna procura de quinze minutos de glória e sensacionalismo. Apontar a falta de credibilidade das CPIs casuísticas e corporativas que com dois pesos e duas medidas absolvem da cassação os amigos. Registrar a desfaçatez com que se arquivou o processo contra o ex-presidente nacional do PSDB, o senador mineiro Eduardo Azeredo, inventor do “valerioduto”. Não há porque a militância se postar na defensiva.
A corrupção como método administrativo e o descaso no trato do que é público são predicados da direita: o que para esta é a regra, para a esquerda é a exceção. Não existe uma Câmara de Vereadores, por modesta que seja, onde historicamente os anjos tortos da gauche não tenham se empenhado em moralizar o uso dos recursos públicos empunhando a arma da ética na política, por convicção e não por oportunismo, para suplantar o patrimonialismo, o fisiologismo, o clientelismo e o nepotismo. Se o silêncio cobriu esta permanente luta pela decência republicana é porque o capital consentiu que as migalhas que sobram do banquete com os fundos públicos alimentassem os políticos que vivem da política e não para a política, e obviamente os “cães de guarda” do jornalismo a soldo. Simples.
Em resumo, nossa tarefa é disputar a agenda do republicanismo para o Brasil, esclarecendo a opinião pública sobre o que estará em xeque nas eleições de outubro do ponto de vista dos trabalhadores e da cidadania. E, a partir do núcleo duro da Frente Popular (o PT, o PSB, e o PC do B), empenhar esforços para que a experiência do orçamento participativo nacional seja uma marca do segundo governo Lula. O fato de o povo haver experimentado todos os partidos políticos facilita o cotejo de projetos (lá, com o PSDB; aqui, com o PMDB) no que concerne ao desenvolvimento sustentado, às políticas sociais e à participação política da população na condução do Estado. A comparação fundamentada é a melhor forma de acrescentar combustão à mobilização dos descendentes da utopia. E de repolitizar a política e a economia para fomentar partidariamente uma práxis socialista inspirada na crítica da economia política na sociedade. Somente assim será possível conter e vencer as invasões bárbaras do neoliberalismo.
Luiz Marque é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.