A primeira resposta de Gramsci à ascensão do fascismo italiano foi entendê-lo como o resultado catastrófico de uma situação de impasse prolongado entre uma ordem liberal em crise e uma esquerda expressiva de um movimento operário no norte em radicalização e de um movimento camponês em processo de sublevação no sul. Esta seria, de fato, uma resposta leninista: um empate na correlação de forças em meio a uma grave crise nacional teria sido resolvido por uma contra-revolução. O momento regressivo da força impôs-se em meio a uma crise de legitimidade do Estado.
Sem propriamente desmentir esta primeira tese de explicação, a reflexão de Gramsci nos Cadernos do Cárcere o levaria, na solidão trágica da derrota, a uma pergunta mais difícil de responder: por que o partido de Mussolini conseguiu elaborar, em seus próprios valores, uma solução política para a crise italiana? O movimento fascista italiano havia formado uma paixão nacional, uma força política e um bloco de classes capaz de refundar o Estado italiano. E por que as esquerdas não conseguiram?
A pergunta radical e muita ampla não poderia ser mais respondida no âmbito apenas de um contexto histórico determinado. A crise não era apenas italiana mas do capitalismo internacional e do próprio Ocidente. Ela colocava em questão os próprios fundamentos racionalistas e iluministas da Modernidade, exigindo um pensamento de larga temporalidade. E, principalmente, revelava uma crise dos próprios paradigmas marxistas da II Internacional e da própria III Internacional, no qual o PC da Itália havia se formado.
No artigo “Fascismo do século XXI”, dialogamos criticamente com a contribuição fundamental de Roger Griffin, que conceituou o fascismo, enquanto uma tradição política da Modernidade, que responde revolucionariamente à sua crise através de uma proposta de renovação/restauração da moral, da sociedade e do Estado. Um novo início rumo a uma moralidade, sociedade e Estado unitários seria obtida por meio do violento expurgo das partes identificadas, em cada contexto histórico, como daninhas. O conceito de Griffin é certamente afim ao campo construído por Gramsci no cárcere.
O campo de respostas que Gramsci formulou à pergunta transcendente – unitário mas aberto à reflexão – continua sendo o melhor antídoto contra a ascensão do fascismo no século XXI. Mais do que nunca, é preciso ler hoje, então, os Cadernos do Cárcere como um documento histórico da liberdade contra o fascismo.
Hegemonia: a vitória do conceito
O que Gramsci compreendeu no cárcere é que a política enquanto formação e disputa de poder não pode ser separada – e, na verdade, depende – da política enquanto formação e disputa de valores de civilização. Se os fascistas venceram e conseguiram formar um novo Estado é porque venceram a disputa sobre os valores da civilização. A sua racionalidade, a coerência de suas razões, não era superior se medida pelos valores democráticos , liberais ou socialistas. A razão vitoriosa dos fascistas apresentava-se como coerente e promissora apenas para uma outra ordem de valores. A sua paixão aparentemente desarrazoada apresentou-se mais eficaz , no contexto histórico da crise, do que a razão elitista dos valores democráticos liberais, do que a razão moderada dos socialistas reformistas e do que as razões extremadas das utopias socialistas maximalistas.
O valor primeiro para o fascismo italiano era o nacionalismo. Desde o jornal Il popolo d´ Italia até a formação do Partido Fascista Italiano, Mussolini se apresentou como campeão do renascimento mítico do poder da antiga Roma. O universal pátria-nação foi construído por Mussolini antes dele conquistar e consolidar o seu poder político. É a partir dele, em um contexto bélico da Europa saída da Primeira Guerra Mundial, que Mussolini fará a apologia da violência como modo de sanar a divisão da nação e construir a nova potência italiana.
Ora, se os liberais italianos eram em geral cosmopolitas e com escassa raiz nacional, os comunistas italianos, recém formados como seção da Internacional sediada na URSS, eram sobretudo internacionalistas também com escassa raiz nacional. Em uma reflexão de sentido histórico, Gramsci irá enunciar a ausência de uma tradição nacional-popular na cultura italiana, vinculando a formação tardia de seu Estado nacional à presença histórica da Igreja católica e ao sentido cosmopolita de sua intelectualidade. Como se verá a seguir, o investimento de Gramsci em enraizar o marxismo na Itália será através do diálogo com a grande cultura do Renascimento, em particular com Maquiavel.
Esta fusão de um novo espírito nacional, enquanto vontade política fascista, fez-se, então, sincreticamente atraindo para si o movimento modernista do futurismo de Marinetti ( formando uma estética anti-tradicionalista e apologética da máquina e da guerra) e o corporativismo de Ugo Spirito (visando superar a luta de classes pela incorporação assimétrica das representações das classes no Estado, ou seja, de fato incorporando as classes dominantes na engenharia do poder ).
Não apenas uma nova ordem mas um sentido novo para uma outra ordem: a repressão aos partidos de esquerda – comunistas e socialistas – , aos movimentos operários e camponeses,a pactação com a Igreja Católica, a subordinação dos liberais, a integração ativa dos interesses da grande indústria e uma base social ampla nas classes médias . Estava formado um novo Estado.
Uma esquerda classista e sectarizada, dividida entre um programa ainda reformista e maximalista, fortemente institucionalizada e parlamentar, sem um projeto nacional para a crise apresentou-se impotente perante um projeto fascista. A esquerda italiana havia perdido a luta pelos valores de civilização, havia perdido a luta pela hegemonia. Esta seria a raiz de sua derrota política.
Humanismo: a vitória na história
Apresentando-se como o líder carismático de uma nova Itália, Mussolini chamou a si a condição de ser o príncipe pelo qual teria clamado Maquiavel, como unificador das cidades italianas no Renascimento. Esta operação simbólica o inscrevia na longa história nacional irresolvida dos italianos, ao mesmo tempo, projetando a sua imagem em direção a um futuro luminoso. Gentile, o principal intelectual público do fascismo em ascensão, co-autor com Mussolini de “A doutrina do fascismo” (1932) apresentava –se como o propositor de uma nova filosofia da ação cuja verdade seria revelada na ação voluntariosa na história. A política fascista seria a sua própria expressão.
Se o maior intelectual liberal da Itália no século XX, Benedetto Croce, lia Maquiavel , por sua vez, através da separação entre política ( como formação e luta pelo poder) e ética ( pensando o liberalismo como a religião da liberdade na Modernidade), Gramsci responderá ao fascismo de forma radicalmente diversa. Em uma ousada ação intelectual, ele retomará o fundamento de Marx como humanista radical, trazendo o diálogo com Maquiavel para o centro de sua resposta ao fascismo.
O Maquiavel de Gramsci, em nítida antecipação de sua leitura na segunda metade do século XX como autor do humanismo cívico, não é certamente aquele maquiavélico instrutor da política como violência e fraude na construção do poder. Identificado como primeiro grande filósofo da práxis, do pensamento-ação que cria uma novo horizonte político, Maquiavel possibilita a Gramsci revisitar a obra de Marx como atualização da filosofia da práxis através de seu diálogo formador com a dialética de Hegel. Enfim, um Maquiavel que solda ética & política, formação de poder e formação de novos valores, propondo um destino democrático para a própria filosofia como caminho para a vida política livre.
A formação massiva de uma nova intelectualidade orgânica a um novo projeto de civilização, atualizador e radicalizador das promessas do humanismo, crítico e alternativo ao capitalismo, seria a base desta luta ético-política contra o fascismo. Pois a figura do intelectual para Gramsci é deslocada de seu sentido tradicional, elitista e fruto da divisão de trabalho, e relacionada ao homem comum que toma o destino em suas mãos.
Ao disputar e vencer Mussolini, em sua disposição fraudulenta de encarnar o mito do príncipe, Gramsci estava abrindo um caminho novo para o marxismo para o marxismo no século XX, mais afim à Marx do que aos marxismos que então vicejavam: de um lado, inseria o marxismo no processo mesmo de formação universalista da Modernidade, disputando-a com o pensamento liberal, tornando-o herdeiro das grandes lutas históricas pela liberdade e igualdade, pela paz e fraternidade: de outro, inserindo o marxismo na própria história interrompida da formação do povo italiano, em suas máximas potências de civilização, nacionalizando-o em um sentido frontalmente diverso à xenofobia do fascismo.
A fortuna política e cultural do Partido Comunista Italiano, no pós-guerra, sob a direção de Palmiro Togliatti, realizou apenas parcialmente a riqueza deste pensamento que reconstruía para a obra de Marx uma narrativa histórica de longo fôlego para trás e para frente. Pois o euro-comunismo foi insuficientemente crítico ao liberalismo e insuficientemente crítico ao estalinismo da URSS, ou seja, insuficientemente humanista e socialista democrático.
A crítica dos limites do euro-comunismo, não a negação de sua riqueza político-cultural, projeta Gramsci no século XXI como o pensador da liberdade do socialismo no século XXI.
Liberdade: a vitória futura
É apenas aparentemente paradoxal que o maior documento sobre a liberdade da cultura do marxismo no século XX – os Cadernos do Cárcere – tenha sido escrito em um cárcere fascista, em condições tão adversas que o próprio ser respirava o ar fatal de sua iminente dissolução. Só uma pessoa livre poderia assim escrever sobre a liberdade! A liberdade, como nos encantam as belas canções partisanas, lutava e morria nas terras da Itália fascista. Mas, ali, no cárcere fascista, ela mais brilhava anunciadora.
Por que brilhava? Como podia, então, brilhar? Esta disposição de tomar o destino nas próprias mãos, à contra-pelo, contra todas as possibilidades, derrotou a fobia da destruição fascista. O Gramsci para sempre livre se fez no cárcere.
Se é possível descobrir, no emaranhado das notas e reescrituras, as trilhas da inteligência da liberdade nos Cadernos do Cárcere, é nas Cartas do Cárcere que se pode ler melhor esta moralidade da liberdade, que se fez invencível.
A inteligência da liberdade: retirar a cultura do marxismo, em suas várias filosofias presentes na II Internacional e na III Internacional, de seu cultivo determinista ou semi-determinista da história, construindo uma visão praxiológica da história, como lugar possível da formação das vontades coletivas, sempre historicamente condicionadas, mas livres em sua indeterminação. O marxismo de Gramsci não tem um final feliz mas uma espécie de felicidade possível e sem fim porque respira liberdade em todos os poros.
Um segundo resgate da inteligência: retirar o sujeito das culturas do coletivismo , funcionalmente ou estruturalmente determinados, e retorná-lo à cultura do sujeito livre, intersubjetivo, autônomo, de juízo próprio, solidário ao coletivo mas irredutível em sua identidade. O que se deve criticar no liberalismo não é o individualismo, propõe Gramsci, mas a direção egoística e o sentido utilitário que imprime à individualidade.
Terceira operação de resgate da inteligência: conceber o socialismo como sociedade auto-regulada, radicalizadora da democracia, na melhor tradição do republicanismo democrático, que Marx atualizou em sua crítica ao capitalismo e como pensador orgânico aos movimentos socialistas pela emancipação no século XIX.
Mas há, sobretudo, uma moralidade invencível da liberdade. Os leitores de Gramsci primeiro tomaram conhecimento das cartas do cárcere em 1947, antes de poderem ler a edição temática dos cadernos, em cinco volumes, que viriam nos anos seguintes.
Pode-se, então, conhecer não propriamente um mártir mas os sentimentos de um homem livre!
Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras).
Artigo publicado originalmente no portal Carta Maior.