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Atualidade do marxismo, republicanismo e a crise do PT | Juarez Guimarães

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Juarez Guimarães, professor da UFMG

A superação da crise do PT cobra uma nova fusão da tradição petista com a cultura de um marxismo revolucionário atualizado e renovado

 O diálogo com o artigo “Notas sobre o republicanismo realmente existente”, de Valter Pomar, é instrutivo, necessário e construtivo. Ele pode contribuir para a melhor compreensão dos argumentos, para aumentar a zona das convergências entre as correntes da esquerda do PT e, sobretudo, para iluminar os desafios postos pela contra-revolução neoliberal à luta dos trabalhadores.

Este diálogo com o marxismo, em meio às ameaças de generalização da  barbárie hoje impostas ao povo brasileiro, não deveria de modo algum ser entendido como doutrinário ou como fuga às duras realidades da luta de classes. Por estar muito esgarçada hoje a relação do PT com a cultura viva do marxismo e com as próprias tradições do socialismo democrático, faz bem às inteligências e aos corações dos petistas revisitar a tradição de onde viemos. Mais do que um longo curso estratégico de direita, mais do que um impasse programático, o PT vive hoje uma crise de identidade como partido de esquerda. Sem Marx, esta crise não será superada.

Em meio à feroz repressão de Kornilov, Lenin escreveu “O Estado e a revolução”, no qual retomava o diálogo com o Marx da Comuna de Paris.Para chegar ao conceito de “revolução permanente”, Trotsky retornou aos escritos de Marx e Engels durante a revolução de 1848 na Alemanha. No cárcere, Gramsci  retomou o dialogo crítico de Marx com Hegel para  pensar o isolamento dos comunistas frente ao fascismo de Mussolini e formular o conceito de hegemonia. Hoje, para reencontrar os caminhos da luta pela revolução socialista em meio à democracia liberal, nas suas formas contemporâneas, é preciso reconstruir as relações entre marxismo e republicanismo democrático.

Este diálogo crítico com o companheiro e camarada Válter Pomar tem um valor especial para quem, como nós, valorizamos os petistas que ainda cultivam o marxismo, o anti-capitalismo e sonham de olhos abertos com a revolução.  Válter Pomar tem sido uma, em vários momentos decisiva, voz à esquerda em meio a um partido tão marcado pelo pragmatismo. E se a sua voz soa muitas vezes rascante e indignada, severa e até agressiva, a responsabilidade não é principalmente sua: no longo curso à direita da estratégia do PT, a esquerda, para ser ouvida, deve falar mais alto e até gritar.

Republicanismo e liberalismo

 O primeiro esclarecimento que deve ser feito é o da diferença histórica, conceitual e atual entre republicanismo e liberalismo. Quando se compreende o republicanismo apenas como uma forma de governo, oposta à monárquica, esta diferença se desfaz: “todos somos republicanos”, dizem com frequência os liberais que desde o século XIX, como Marx notou bem já em “A questão judaica”, adotaram os regimes censitários, com direito à voto apenas aos proprietários mais ricos. A exceção foi sempre a Inglaterra, com sua monarquia constitucional. Mas Marx já identificava  a república liberal norte-americana como o modelo por excelência da forma liberal moderna de governar.

Quando esta diferença histórica e conceitual entre republicanismo e liberalismo não é feita, concede-se ao liberalismo a origem exclusiva da Modernidade em que vivemos com toda a pletora de direitos a ela associados. A tradição liberal apropria-se da grande narrativa da formação do mundo moderno, fazendo a distinção entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”, acusando a esquerda e o próprio marxismo de ser incompatível com a liberdade e pré-moderno, já que não associado às virtudes do mundo mercantil tipificado e generalizado pelo capitalismo.

Assim, o direito à liberdade de crença, de expressão, o direito de resistir às tiranias, os direitos civis, os direitos políticos, de formar partidos e de disputar democraticamente os governos,  inclusive o direito universal ao voto, os direitos das mulheres seriam associados a um alargamento histórico da esfera dos direitos liberais. No grande debate que marcou a chamada “guerra fria”, que culminou no fim do sistema da URSS, os liberais teriam confirmado a sua razão histórica como formadores e sustentadores da liberdade no mundo moderno. O neoliberalismo, dominante na tradição liberal desde os anos oitenta, atualizaria esta vitória vincando cada vez mais liberdade à globalização, ao capitalismo, ao mercado e ao Estado mínimo.

Ora, através do erudito trabalho de historiadores da filosofia, cumprido de forma interdisciplinar com largo diálogo com as tradições filosóficas, e de modo plural, ao longo das seis últimas décadas, reconstitui-se a singularidade da tradição nascida do humanismo  cívico da Renascença italiana, que proto-formou as linguagens e matrizes dos sujeitos que fizeram a revolução inglesa de meados do século XVII, da revolução norte-americana e da revolução francesa. Estas matrizes políticas que defenderam o direito de revolução, associando liberdade às culturas igualitárias, ganharam dimensões populares  como nos caso dos chamados Niveladores e Cavadores na revolução inglesa, com o enorme surto de auto-organização popular na revolução norte-americana e nas alas esquerdas da revolução francesa. É a estas correntes, as quais formaram os surtos revolucionários da independência na América Latina, que se deve atribuir o leito fundamental da formação dos direitos da liberdade, à igualdade e a um ethos solidarista em frontal oposição, muitas vezes, ao ethos mercantil que acompanhava o processo de formação e generalização das relações capitalistas de produção.

É neste solo histórico que se formam Marx e o marxismo, na Alemanha, onde o desenvolvimento da filosofia não foi acompanhado nem por uma vida política nem por uma economia moderna. Reconhecer esta raiz, esta herança e este pertencimento a esta linguagem do republicanismo democrático é fundamental para quem se reivindica do marxismo hoje. Por muitas razões. A principal delas é que a obra de Marx é uma atualização, nos tempos do capitalismo e da hegemonia liberal, desta aspiração de liberdade, entendida como autonomia e que se forma no mundo público, que não pode ser separada da igualdade nem das formas associativas e cooperativas de organização do mundo social e da economia.

Marxismo, estalinismo e anti-republicanismo

 Compreendido como tradição que se organiza em torno ao tema fundador da liberdade, da sua incompatibilidade com a desigualdade estrutural, seja do ponto de vista social, de gênero ou de raça, não é verdade que desde 1849 esteja estabelecida a relação da cultura do marxismo com o republicanismo democrático.

Esta relação já se tornou problemática na cultura da II Internacional, quando as correntes chamadas revisionistas, afins ao liberalismo, orientaram-se para a perspectiva reformista em ordens políticas escassamente republicanas, separando programa mínimo de programa máximo, distanciando a luta por direitos de uma superação revolucionária do Estado liberal. O chamado “cretinismo parlamentar”, as ilusões em um curso pacífico ao poder, denunciado por Engels no prefácio à edição de “As lutas de classes na França”, o insulamento da luta parlamentar da luta de massas, o corporativismo sindical podem ser pensados como tensões de ruptura com uma cultura que vincava soberania popular à superação da ordem capitalista, incompatível com o fundamento da liberdade como autonomia.

O marxismo estalinizado da III Internacional já organizou sua ortodoxia em aberta ruptura com as tradições do republicanismo democrático, separando o valor da liberdade e o valor da igualdade, operando estrategicamente com a legitimação de um poder despótico e onipresente. Esta ruptura pode ser pensada, articuladamente, em quatro dimensões: ao conceber o marxismo como científico, extraído do mundo da moralidade da política como praxis, fundamentando o seu anti-pluralismo de origem; afirmando a igualdade social em oposição à liberdade, legitimando-se exclusivamente  a partir de sua dinâmica anti-mercantil, revendo inclusive os avanços históricos feministas dos primeiros anos da revolução russa; organizando as concepções anti-democráticas de partido, de Estado, de relação com os movimentos sociais, chegando ao limite da negação da própria noção de direitos humanos, em particular os vinculados à liberdade política; retomando o nacionalismo não como um princípio de soberania mas como forma de afirmação internacional do poder do Estado, do PCURSS sobre as nacionalidades e sobre os partidos comunistas.

Se hoje o estalinismo não forma uma ortodoxia de referência, ele continua a operar como paradigma negativo, isto é, a oferecer resistência à construção de um novo paradigma na cultura do marxismo, coerentemente afim ao princípio da liberdade e atualizado para as disputas hegemônica contra as formas contemporâneas do liberalismo. Não se supera uma ortodoxia dogmática apenas com a sua crítica: é preciso construir um paradigma  novo, um “Marx livre”, afim às utopias da liberdade no século XXI e livre dos dogmatismos.

Marxismo republicano versus euro-comunismo

 Um terceiro esclarecimento necessário diz respeito à relação do republicanismo com o tema da revolução e, mais precisamente, com o momento da força e da ruptura no processo da revolução. Valter Pomar opera na direção oposta do republicanismo quando o associa à cultura do euro-comunismo, esta experiência histórica paradigmática de buscar um caminho eleitoral e parlamentar ao socialismo. Isto seria um erro indesculpável para uma geração como a nossa, que se formou nos seus inícios já com a grande tragédia vivida pela Unidade Popular chilena.

Ora, o próprio conceito moderno de revolução nasceu e se desenvolveu  nas linguagens e matrizes desta tradição republicana democrática. A legitimidade de se usar a força, a insurreição e até a violência contra os poderes ilegítimos é constitutiva desta linguagem que afirma o direito e até o dever cidadão de resistência aos governos tirânicos e injustos.

Na verdade, desde Maquiavel aprendemos que todo poder é uma composição de direção e força, consenso e coerção. Esta visão muito realista do poder e de conceber o  conflito no centro da ordem, entre o desejo dos grandes de dominar os de baixo e estes de não serem dominados, fez com que Maquiavel associasse a fortuna das cidades livres à auto-organização militar, em clara crítica à dependência de exércitos mercenários.

O euro-comunismo, na verdade, fez uma crítica insuficiente ao estalinismo e uma crítica insuficiente ao liberalismo.  Em particular, carecia de um “princípio de cisão” forte com a ordem liberal, como uma vez, afirmou tardia mas lucidamente Carlos Nélson Coutinho. Não é por acaso que o seu último livro caminhava exatamente na direção de pesquisar as relações entre Marx, Hegel e Rousseau, isto é, entre Marx e o republicanismo.

A questão decisiva foi reposta por Gramsci através do seu conceito de hegemonia, que reivindicava, como o Marx da Comuna de Paris, um novo Estado formado em uma nova eticidade para se fazer a transição a uma civilização socialista. A construção da hegemonia é o caminho real de se afirmar a potência revolucionária da política dos trabalhadores na democracia. Contra Benedetto Croce que afirmava ser o liberalismo a religião da liberdade, Gramsci afirmou, em uma bela frase, que o marxismo era a heresia da religião da liberdade.O caminho da hegemonia não se confunde, pois, com a acumulação de forças na ordem liberal, com o seu alargamento, com uma estratégia de acumulação de forças que opera sem o sentido anti-capitalista  da construção de um novo Estado.

Assim, o conceito de revolução democrática não dessubstantiva a revolução em favor da democracia liberal. Na linguagem do republicanismo, que trabalha coma noção fundante do governo das leis e não com o governo arbitrário dos homens, trata-se de qualificar democraticamente a revolução, de trabalhar sempre com o referente das maiorias, da potência da soberania popular, evitando a autonomização do poder revolucionário em uma instância de nova dominação autocrática e auto-referida. Por isto, é fundamental que a revolução crie um novo Estado, a partir de um novo princípio constituinte, apoiado na hegemonia dos socialistas e com a participação ativa dos trabalhadores e das maiorias oprimidas.

Este foi sempre o grande limite das revoluções anti-capitalistas no século XX, lições terríveis e  amargas que não podem ser esquecidas. A revolução socialista não pode fazer o culto da violência: vale a máxima de Rosa Luxemburgo de que cada gota de sangue que puder ser evitada na revolução -e não o for-,  é um crime contra a revolução!  Força – obrigar um ou uma classe a se conformar a agir contra sua vontade e seus interesses – não pode ser reduzida à sua dimensão, em última instância, de violência. Um Estado, apoiado na força democrática legal e militar, pode forçar, coagir, expropriar, mandar, impor  e , no limite, usar a violência legítima  contra os que contrariam  leis e decisões da maioria. A revolução socialista não pode se fazer contra os direitos humanos e o devido processo legal, separando o meio dos fins humanistas. E, sobretudo, a revolução não se pode fazer contra a liberdade mas pela radicalização da democracia em direção às suas dimensões de auto-governo, em regime de pluralismo e respeito às diferenças. Socialismo é a sociedade auto-regulada, já nos propunha Gramsci, como Marx.

Liberalismo realmente existente

 Estas três ordens de esclarecimento sobre o conceito de republicanismo e sua relação com o marxismo são decisivas para repor a crítica  feita pelo companheiro Valter Pomar ao governo Dilma, em particular à postura da  pasta da Justiça comandada pelo companheiro José Eduardo Cardozo, em relação à Operação Lava-Jato.

As diretrizes do Ministério da Justiça nos governos Dilma jamais foram objeto de uma discussão coletiva na Mensagem ao Partido. Mas certamente estavam afinadas com a orientação geral do segundo governo Dilma de buscar um pacto ou uma reacomodação com as forças que estavam organizando o golpe do impeachment sem caracterização de crime de responsabilidade: na economia, na área de comunicação, nas políticas de reforma agrária, na busca de uma governabilidade exclusivamente assentada na coalizão parlamentar, com centro no PMDB, com a política mais geral de indicação de nomes para o STF, na política externa de orientação mais moderada. Centralizar a crítica em um companheiro é despolitizar a crítica, que não deve se abster, é necessário dizer, de afirmar responsabilidades individuais nos erros tragicamente coletivos.

O erro maior, no entanto, é chamar a concepção que dirige a Operação Lava-Jato de “republicanismo realmente existente”. Se o “socialismo realmente existente” foi o modo como os liberais chamaram o socialismo como forma inclusive de desacreditá-lo, operando com a contradição entre sua realidade opressiva e suas promessas de emancipação, chamar de “republicana”, mesmo entre aspas, a “Operação Lava- Jato “ é contribuir para legitimá-la.

Em artigo publicado na Agência Carta Maior, em junho de 2015, já formulávamos uma linguagem pública de denúncia da Operação Lava-Jato como corrupta, segundo os princípios republicanos. Foi, até então, a crítica pública mais forte e incisiva feita pela esquerda brasileira a ela. E, em um livro editado em outubro deste mesmo ano, organizado  com  eminentes constitucionalistas brasileiros,  “Risco e futuro da democracia brasileira” ( Editora da Fundação Perseu Abramo),  esta crítica foi ampliada e documentada, no mesmo padrão no qual ela hoje é muito bem denunciada pelos advogados de defesa de Lula.

Na verdade, a concepção que dirige a Operação Lava-Jato é fundamentalmente liberal. Em quatro dimensões decisivas.

A narrativa geral de que o fundamento da corrupção hoje no Brasil é o “neo-patrimonialismo” do PT é um argumento que vem sendo desenvolvido por Fernando Henrique Cardoso, desde os princípios de 2005. É ela que sustenta toda a jurisprudência de exceção e seletiva que vem sendo colocada em prática desde então.

O conceito de corrupção do juiz Moro, ao modo neoliberal, como bem explica em artigo recente o constitucionalista Luis Streck,  centra no Estado, na política, nos “políticos”, abstraindo que a corrupção está no centro da economia política do neoliberalismo. Aliás, no pacto de medidas contra a corrupção do Ministério Público, não constava sequer o tema do financiamento empresarial das eleições.

Em terceiro lugar, o modo como vem sendo conduzido a Operação Lava-Jato faz parte de um largo processo de judicialização da política que tem como paradigma o liberalismo norte-americano. Se este processo é aqui extremado, em um sentido instrumental, arbitrário e de exceção, contra todos os princípios republicanos da isonomia da lei e do devido processo legal, as fontes de inspiração dos promotores e juízes da Lava Jato são de matriz norte-americana, inclusive as leis de exceção legitimadas após o 11 de setembro.

Por fim, a Operação Lava-Jato tem abertamente a finalidade de servir ao programa da contra-revolução neoliberal através da criminalização da esquerda brasileira.

Chamar esta concepção liberal e neoliberal que organiza a Operação Lava- Jato de “republicanismo realmente existente” não contribui, antes, lança confusão no esforço para construir o discurso público de sua denúncia. Na verdade, os erros cometidos no Ministério da Justiça seguem a mesma orientação equivocada de adaptação de um governo de esquerda, mesmo em regime de coalizão, ao Estado burguês.

Revolução democrática versus integração à ordem

 Como em um espelho invertido, o companheiro Valter Pomar, a partir de seu desentedimento sobre o que é uma atualização marxista da tradição do republicanismo democrático, acusa o conceito de revolução democrática de teorizar o caminho de adaptação aos limites do Estado liberal. Demonstrado o erro presumido do republicanismo, uma grande auto-crítica histórica da Democracia Socialista e da Mensagem ao Partido teria que ser feito diante da defesa programática de uma revolução democrática. Tudo ao contrário.

Em ensaio publicado na revista Democracia Socialista número 1, “Marx e a revolução democrática”, em diálogo com o marxismo de Ernest Mandel e  Michael Lowy, procuramos demonstrar que, a partir do fundamento da auto-emancipação do proletariado, Marx concebeu a revolução socialista como um processo histórico de auto-organização e expansão das formas democráticas dos trabalhadores e dos setores oprimidos. O conceito de ditadura do proletariado, em sua versão autocrática e que centralizou toda a tradição da III Internacional estalinizada, não encontrava os documentos de sua afinidade com o pensamento original  de Marx e Engels, devendo ser relido, no contexto histórico, a partir da dimensão radicalmente democrática do processo de transição ao socialismo, o que não negava, antes legitimava, as dimensões de força e coerção exercidas necessariamente sobre os privilégios burgueses de classe.

Ora, se tem esta gênese histórica na própria origem da tradição marxista, o conceito de revolução democrática foi desde o início historicizado, de forma imanente à potência e aos limites da experiência do PT no governo central do país. Isto é, ele foi elaborado como uma resposta marxista, clássica e contemporânea, aos processos de integração do PT e de toda a esquerda brasileira à ordem liberal do Estado brasileiro. Os passos históricos desta elaboração precisam agora ser reconstituídos.

Houve em primeiro lugar, um estudo – documentado na dissertação “Claro enigma: o PT e a tradição socialista” – sobre as diversas modalidades de integração dos partidos sociais-democratas, em sua época clássica, às ordens burguesas em processos de transformação. O caso norte-americano ( que impediu até a estabilização de formas históricas autônomas dos trabalhadores), o caso inglês (no qual houve até a formação de uma tradição própria, trabalhista mas não revolucionária), o caso alemão ( de institucionalização e adesão ao nacionalismo como bem formulou Rosa Luxemburgo), o caso italiano ( de neutralização de sua dimensão revolucionária, como bem estudaria Gramsci, um partido de classe mas sem potência hegemônica).

Houve, em segundo lugar, já no fim dos anos oitenta, o estudo da experiência trágica da Unidade Popular chilena, em que uma experiência radical de transformação ( o programa da Unidade Popular era, de fato, mais radical do que o programa que o PT apresentou nas eleições presidenciais, talvez com a exceção de 1989) era tragada pela impotência ao ser cercada no “inverno da institucionalidade”, isto é, ao deslocar o seu centro de gravidade para dentro do Estado chileno, expondo-se ao golpe liderado por Pinochet e pela CIA.

No início dos anos 90, a inteligência coletiva da DS já identificava –  como em resolução de uma conferência nacional da tendência – um “estreitamento institucional do PT” e uma dissertação de Mestrado , defendida por Carlos Henrique Árabe na USP, documentava o “processo de desradicalização programática do PT”.

No debate estratégico que se deu  nas páginas da revista Teoria & Debate, houve três contribuições que polarizaram. Uma delas que apontava o caminho central da luta na institucionalidade, combinada com as lutas dos movimentos sociais, pelo companheiro Paulo Vannuchi, outra que defendia doutrinariamente a estratégia insurrecionalista clássica da revolução russa, assinada pelo companheiro Markus Sokol, e outra, traduzindo o processo de elaboração vivo e ainda não coletivamente decidido da Democracia Socialista, chamada de a “estratégia da pinça”, que combinava luta democrática institucional e luta democrática dos movimentos sociais, mas com o centro de acumulação do movimento da esquerda centrado fora da institucionalidade, evitando o erro estratégico central da Unidade Popular chilena.

Uma quarta intervenção, do  companheiro Marco Aurélio Garcia, propunha finalizar o debate centrado na estratégia, em nome de um fundamento democrático, isto é, a experiência viva do PT , diferenciada da social-democracia e do euro-comunismo, deveria se abrir a um futuro aberto e indeterminado. Não caberia traçar de ante-mão uma estratégia que precedesse  a experiência democrática da transformação.

Por parte da Democracia Socialista, esta polêmica nunca cessou mas antes de desdobrou para os  temas da democratização radical do poder ( com as experiências do orçamento participativo), com a crítica aos movimentos de adaptação à ordem neoliberal ( a polêmica com a a “Carta ao povo brasileiro”, de 2002 e, depois, com a política econômica dos primeiros anos do primeiro governo Lula e, mais recentemente, com a virada neoliberal do segundo governo Dilma), da política de alianças ( propondo a construção de um referente de aliança da esquerda e da centro-esquerda, resistindo à centralidade histórica aliancista conferida ao PMDB e a outros partidos fisiológicos de direita),  da luta contra as dimensões corporativas presentes na CUT, da reposição permanente dos temas do feminismo contra a adaptação às dimensões patriarcais do Estado brasileiro, na continuidade da defesa de um programa de transição, na defesa do caráter de classe do PT ( contra a sua dependência crescente do financiamento empresarial).

Em 2005, com o processo de formação da “Mensagem ao Partido”, esta crítica ganhou um novo alento com a crítica aos impasses de adaptação ao Estado burguês, que ficaram escandalosamente evidentes com a nova estratégia instrumental e judicial utilizada pela direita neoliberal contra o governo Lula e contra o PT. A centralidade da reforma política  e da necessidade da convocação de uma Assembléia Constituinte extraordinariamente convocada ganhou corpo, combinada com a proposta da construção de um novo paradigma de governabilidade, mais centrada nos processos de democratização do Estado e nos processos de auto-organização dos movimentos sociais.

A partir de 2010, com base na avaliação das conquistas históricas e dos limites dos dois governos Lula, foi construída a tese “Diretrizes do programa da revolução democrática”, que retomava agora em um sentido programático e a partir da experiência vivida, os temas estratégicos da revolução e do marxismo na experiência do PT. Ela agora procurava traduzir programaticamente a “estratégia da pinça”, formulando um antídoto forte ao processo de integração à ordem liberal: propondo transformá-la  radicalmente, enfrentando frontalmente  os centros de renovação e reprodução do poder burguês no Estado brasileiro.

O centro desta tese era de que as transformações estruturais que fazem parte dos compromissos históricos do PT estavam histórica e estruturalmente limitadas pela precária democratização do poder, onde menos tínhamos avançado: no sistema de partidos e eleições, nos modos de decisão do Estado, na gestão macro-econômica, ainda muito dependente do domínio do Banco Central pelos neoliberais e do agro-negócio, na ausência de uma mínima democratização dos meios de comunicação, na continuidade de políticas de segurança pública fortemente repressivas aos direitos cidadãos dos trabalhadores e dos pobres, em particular dos negros. Seria necessário colocar esta agenda da conquista de uma nova institucionalidade democrática, possivelmente a partir da convocação de uma Assembleia Constituinte, a partir do sentimento e consciência democrática em elevação do povo brasileiro, desta vez a ser realizada sob hegemonia da esquerda e das forças políticas compromissadas com os valores do socialismo democrático.

Foi assim que o Manifesto da lançamento da chapa da Mensagem em março de 2013 tinha o título “Por um novo ciclo das lutas democráticas e sociais“, convocando o PT e a esquerda para as ruas, organizando a partir de emendas populares uma luta política de massas em torno à estratégia da revolução democrática. Quando vieram as manifestações de junho de 2013, desestabilizando, pela esquerda e pela direita, a estratégia do primeiro governo Dilma e do campo majoritário do PT, vimos nelas a confirmação de que um novo ciclo da esquerda precisava vir à luz. No balanço das eleições de 2010, já havíamos anotado que o segundo turno com Serra versus Dilma,  havia trazido um grau de polarização política e ideológica tão forte como não se via desde 1964.

E que desde agosto de 2011 já havíamos anotado, com a maioria aecista no PSDB e com a retomada de um programa ultra neoliberal sob a direção direta de Fernando Henrique Cardoso, um novo patamar de agudização da luta de classes. As eleições presidenciais de 2014 revelaram este acirramento. E, em dezembro de 2014, ja se denunciava que o PSDB havia migrado da oposição neoliberal no interior da democracia brasileira à estratégia de um partido golpista. Neste quadro, seria inevitavelmente fatal uma estratégia de conciliação como aquela que veio a prevalecer no segundo governo Dilma.

Marxismo revolucionário e a luta por uma república democrática e popular

 A Democracia socialista tornou-se de fato uma tendência do PT, desde a sua origem, apostando na fusão no fogo da luta de classes entre a evolução de um partido classista e um processo de renovação histórica do marxismo revolucionário. Não se trata de fazer auto-crítica desta aposta, de seu valor histórico e dos motivos fortes de esperança que ainda a alimentam. Hoje é preciso dizer mais claramente ainda: um novo ciclo de esquerda do PT só virá através de um marxismo renovado. E é da natureza do marxismo ser revolucionário: a tese da revolução democrática repõe exatamente na ordem do dia, a nossa identidade como socialistas e revolucionários.

A contra-revolução neoliberal está já avançada em seu trabalho de destruição não apenas das conquistas dos governos Lula e Dilma mas também da própria Constituição republicana de 1988. Se a centralidade da luta democrática por diretas já para presidente atua exatamente no centro do ponto mais vulnerável dos golpistas – a ilegitimidade e a explosiva impopularidade do governo Temer – , uma candidatura de esquerda à presidência só pode ganhar sentido com a proposta da convocação de uma nova Assembléia Constituinte que construa –pela primeira vez na história do país – uma república democrática e popular.

Em geral, a esquerda petista fala sempre em “governo democrático e popular”, isto é, um governo dotado de um programa de reformas democrático-populares ou estruturais. Hoje sabemos que o limite desta perspectiva é exatamente o de não colocar no centro um processo de democratização do poder – radicalmente anti-liberal – que torne viável, no plano da legitimidade e da correlação de forças, tais transformações.

O belo documento aprovado na recente conferência nacional da articulação de Esquerda traz a a proposta de “nacionalização dos bancos”. Esta proposta, por todos os sentidos, justa e democrática, de ataque ao centro do poder financeiro que organiza a ordem burguesa no Brasil será vista pela consciência média, hoje dominante no PT, como doutrinária e inviável. Seria interessante lembrar que esta proposta foi defendida na Assembléia Constituinte de 1988 pelo companheiro Gushiken e contou com um apoio importante de parlamentares até do… PMDB, apesar de não aprovada.  A era neoliberal impôs um profundo retrocesso da consciência socialista, republicana e democrática em todo o mundo. Ele não será vencido com meias bandeiras, com meias paixões, com meio programa, com meias energias revolucionárias.

Mais do que nunca, como em uma dialética negativa, precisamos de Marx e da revolução democrática!

 Juarez Guimarães é professor da UFMG

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