Mesmo tendo um início errático, marcado por uma incapacidade política de natureza variada e generalizada no governo, um traço distintivo da presidência de Jair Bolsonaro em seus primeiros meses é a ausência de políticas que preservem a vida, que a tornem vivível. Pelo contrário, o ímpeto geral das ações do governo, especialmente daquelas diretamente promovidas pelo presidente, são de políticas que, como consequência direta ou indireta, promovem a morte.
Infelizmente, não há aqui exagero algum. Vejamos algumas de suas principais medidas nesta direção: a mais evidente é sua política para as armas, desmantelando o Estatuto do Desarmamento e promovendo um rearmamento da população. A equação Mais Armas = Mais Mortes é tão evidente que se faz desnecessário expor aqui mais argumentos. Não dá para deixar de mencionar, conduto, alguns absurdos neste decreto, desde a permissão da compra de fuzis de uso militar para civis (logo revogado pelo próprio governo, devido à reação negativa), chegando a liberação para menores de idade usarem armas em clubes de tiro, condicionado apenas a uma autorização de um responsável. O objetivo aqui é disseminar uma Cultura da Arma, com óbvios efeitos potencializadores de violência.
Em termos de necropolítica, como não mencionar suas ações contra os povos indígenas e quilombolas, de incentivo aos desmatamentos, de liberação de agrotóxicos ou seu decreto que permite a impunidade ao proprietário de terra que mate ou mande matar invasores? Os projetos do governo enviados ao Congresso também vão nesta mesma direção, como o demagógico “Pacote anticrime do Moro”, criando uma verdadeira licença para matar, ou ainda, de forma doidivana, num projeto para o trânsito que, caso aprovado, deverá ampliar as mortes nas estradas. Lembrando que o Brasil é um dos recordistas mundiais em mortes por acidentes, medidas como a retirada de radares de velocidade nas estradas federais, a redução ou retirada de multas para infrações de segurança (que na prática é tornar desobrigatório) como do uso de capacetes por motociclistas, pelo transporte de crianças sem cadeira ou cinto de segurança ou ampliando a pontuação para a perda da carteira de habilitação por infrações, vão na direção de desregulamentar, de tornar ainda mais selvagem o trânsito brasileiro.
Como explicar esta opção deliberada de Bolsonaro pela morte? São dois os caminhos principais para buscar entender esta escolha, que não são em si excludentes, um de ordem subjetivo/psicológico e outro político/estrutural.
O perfil pessoal do presidente, sem dúvida, desempenha um papel importante. Em sua campanha eleitoral vitoriosa, tinha na mímica do pistoleiro, com o gesto de armas com as mãos, um claro apelo a saídas violentas. Aliado a uma retórica que não raras vezes explicitava um conteúdo de ódio, provocaram a emergência de uma violência política até então inédita no país. Mesmo que ainda esteja num considerável estágio de desorganização – não temos nada parecido com a SA, a milícia paramilitar nazista – as vítimas fatais, como o baiano Mestre Moa do Katendê, assassinado por um eleitor bolsonarista em uma discussão política, expõe o quão distantes estamos de qualquer normalidade democrática.
Bolsonaro pode ser visto como um “maníaco de morte”, como classificou o não raras vezes brilhante jornalista Jânio de Freitas, em artigo publicado na Folha de SP em maio. Recordando que Jair Bolsonaro apareceu pela primeira vez nos noticiários quando, ainda militar, insubordinou-se num protesto que ameaçava com a explosão de quartéis e dos sistemas de abastecimento de água do Rio, caso não fossem atendidas as reivindicações de aumento nos vencimentos dos tenentes do Exército. As vítimas decorrentes destas ações terroristas lhe eram indiferentes. Afastado do Exército, elegeu-se deputado com a pauta corporativa dos militares e ligando-se à bancada da bala e ruralistas. Como parlamentar, usou de forma permanente a tribuna para defender os crimes da ditadura de 1964, a torturadores, além de expor, através de discursos e homenagens, suas ligações com policiais degenerados e grupos milicianos. Em sua trajetória política, como aponta Jânio de Freitas, “questões como saúde e educação nunca o interessaram. Já a tomada de terras indígenas, o morticínio de tribos por grileiros, madeireiros e policiais, a expulsão de favelados não deixara de o animar: contra as vítimas, sempre na defesa da violência. A letal, sobretudo. Trinta anos de vida mansa, egocêntrica, desumana em muitos sentidos.”
Mas não é apenas o profundo desapreço de Bolsonaro por qualquer noção de Direitos Humanos ou suas posições políticas extremistas, beirando ao fascismo, que explicam as políticas de morte promovidas pelo governo. Também está relacionado com fatores gerais que emprestam alguma lógica e legitimação, ainda que precária.
O Brasil é um país secularmente violento. Fundado pelo ato violento da conquista e do colonialismo português, como nação independente, conservou muitas das marcas da desigualdade e exclusão social do período colonial, como evidência o fato de ter sido o último país da América a abolir a escravidão. Desta herança, não é difícil apontar as raízes históricas que amparam o discurso excludente de Bolsonaro como é exposto, de forma quase caricata, pela eleição de um deputado do PSL (partido do presidente) “Príncipe herdeiro” do sepulto Império do Brasil.
Este discurso excludente, remontando a lógica da Casa Grande e, de forma mais direta, com a chamada “linha dura” do regime militar, passou por uma recente transformação onde se atualiza, ganhando ares civilizado, através do neoliberalismo. Esta vinculação entre o neoliberalismo e o autoritarismo está longe de ser fortuita. Nunca é demais lembrar que o a primeira experiência de governo neoliberal foi implementada no Chile durante a sanguinária ditadura de Pinochet, a quem Bolsonaro presta elogiosas deferências. Existe um profundo distanciamento entre a razão neoliberal e a democracia. Nas ocasiões em que governos adotaram políticas neoliberais em contextos de normalidade democrática, invariavelmente resultaram em algum nível de restrição democrática, como a autonomização de governos da condução da economia, através de mecanismos como autonomia dos Bancos Centrais, agências reguladoras transnacionais, entre outras, conduzidas de forma “técnica”, imunes ao sufrágio popular.
A adesão de Bolsonaro ao neoliberalismo, assim, está longe de ser uma anormalidade, pelo contrário. Esta agenda inclui a promessa de privatizações generalizadas, abertura de setores estratégicos da economia do país para o capital estrangeiro (preferencialmente norte-americano), políticas de inversão econômica (restrições a investimentos sociais e ampliação de incentivos ao grande capital) e de supressão de direitos, sendo a reforma da previdência o carro-chefe. Caso tenham sucesso em sua implantação, apontam para uma desigualdade social dramaticamente ampliada.
Esta política se orienta por um sentido geral de governo para os seus, não para toda população brasileira. Com essa orientação, busca atender a interesses corporativos de forma seletiva, potencialmente próximos ao espectro social que o elegeu, mas com um claro corte de classe, gênero e raça. Exemplificando, o rearmamento beneficiará os setores de classe média alta ou ricos que poderão comprar uma arma legalizada; os setores populares, de trabalhadores precarizados que o apoiaram por esta agenda, serão excluídos – podendo inclusive se tornar vítimas do bolsonarismo armado e privilegiado pelo direito de matar.
Esta relação entre poder e violência, entre vida e morte, nos traz a necropolítica, conceito do camaronês Achille Mbembe, um dos principais intelectuais contemporâneos, que têm se popularizado no Brasil. Sua obra tem auxiliado, por exemplo, no esforço crítico de intelectuais e militantes negras e negros, que identificam no alarmante extermínio de jovens negros e pobres no país como uma política de morte, uma necropolítica, executada de forma quase estrutural. Em termos teóricos, a necropolítica demarca uma alteração na forma com que são exercidas as noções de soberania e poder, que passam a ser estruturadas a partir do princípio de quem pode viver e quem pode morrer. Mbembe exemplifica com as políticas de Bush pós-11 de setembro e particularmente com o contexto africano, com casos de ditaduras que emergiram após guerras civis e implantaram políticas de extermínio étnico. Atualmente, podemos enquadrar governos como de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, a Arábia Saudita com sua monarquia absoluta teocrática da família Saud, Netanyahu em Israel e, certamente, Bolsonaro no Brasil, como orientados a partir do princípio do necropoder.
Estas noções de “necropolítica” e “necropoder” nos ajudam a compreender, como aponta Mbembe, “as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar ´mundos de morte`, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ´mortos-vivos.” A necropolítica está diretamente associada ao neoliberalismo e aponta para uma nova forma de autoritarismo, como argumenta Mbembe no artigo A era do humanismo está terminando: “Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado seria em si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social. No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes.”
Em termos políticos, os efeitos gerais são de uma racionalidade que expande, direta ou indiretamente, as modalidades de soluções violentas. Mbembe relaciona, em sua obra Políticas de Inimizade, os conceitos de estado de exceção e estado de sítio (do filósofo italiano Giorgio Agamben), onde argumenta que “o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar”, e como assim o poder “apela à exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo” para, assim, justificar a eliminação dos indesejáveis e daqueles que ousarem resistir. O assassinato de Marielle Franco, crime ainda sem solução, pode estar inserido como um prenúncio desta lógica.
Num brevíssimo esforço prospectivo, supondo que a presidência de Jair Bolsonaro tenha continuidade e conclua o mandato (hoje algo incerto) e ainda que seja um tanto imprevisíveis os efeitos de uma prolongada imposição de uma agenda necropolítica, uma consequência lógica seria de reconfiguração radical do antagonismo social no país. O bolsonarismo é guiado, em termos estratégicos, por um agressivo sentido de guerra de classe contra os interesses populares, em particular dos setores mais vulneráveis, sendo o conflito e o aprofundamento dos antagonismos, sua própria razão de existência. Não há estabilidade possível, seja em termos institucionais, políticos, econômicos ou sociais. Deste antagonismo, legitimado sob um necropoder e numa retórica de polarização política elevada a razão governamental, poderá expor, de forma transparente, uma futur_a configuração de governo contra o povo, onde rebeliões e insurreições populares deverão irromper de forma imprevisível.
No momento que este artigo foi escrito, Bolsonaro ainda não reunia força social e condições políticas para implementar toda sua agenda necropolítica. Seus constantes recuos e ausência de políticas públicas em um nível básico – estas também provocadoras de mortes – indicam as dificuldades e impasses do governo. Cenário que se tora ainda mais adverso para o presidente aliado à queda em sua popularidade e aos protestos massivos contra o governo em defesa da educação, mobilizações estas que indicam a potencialidade de uma cidadania ativa e disposta a resistir no Brasil. Este é um processo político ainda em curso e compreender a gravidade da situação colada é um passo fundamental para buscar impedir seu avanço e quiçá derrotá-lo.
Erick Kayser é militante da DS e doutorando em História na UFRGS.
Artigo publicado originalmente no Instituto Humanitas Unisinos (www.ihu.unisinos.br)