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Bolsonaro, militares e a agenda do golpe | Tânia Maria Saraiva de Oliveira

Disputar a compreensão da conjuntura política brasileira, com a perspectiva de supor um futuro, mesmo que próximo, tem sido um exercício dos mais complexos nos últimos tempos, sobretudo desde a guinada à extrema direita com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Não se trata de fenômeno nacional. Por toda América Latina assistimos ao reagrupamento de forças no campo do conservadorismo, com a emergência de novas caras, ou velhas caras com nova roupagem, a atualização do discurso, o emprego de estratégias e táticas novas, onde o uso de mídias sociais, de novas tecnologias e a atuação dos membros dos sistemas de Justiça têm ganhado destaque.

Uma direita afoita, que faz guerra de ideias e busca o poder a qualquer custo, mesmo que para tanto precise transformar, como no passado, em mero arremedo os princípios e normas do regime democrático.

Emblematicamente, enquanto escrevo este artigo ocorre a apuração da acirradíssima eleição no Peru entre Keiko Fujimori, herdeira do ditador Alberto Fujimori, e o sindicalista e professor Pedro Castilho, que uniu as esquerdas em torno de sua candidatura no segundo turno.

Temos no Brasil pouco mais de 30 anos de experiência democrática após 21 anos que vivemos sob o julgo de uma ditadura civil-militar. Somente em período mais recente são tratadas com seriedade, como objeto válido e legítimo a ser compreendido por analistas e estudiosos, as reverberações na sociedade civil que mostram um pensamento ultra moralista e autoritário pungente, que aparentemente sempre esteve lá, à espera de algum “líder” que o representasse na arena das disputas institucionais.

A mim parece que, do ponto de vista de elaboração intelectual, o entusiasmo com a transição de regimes fechados para a democracia fez com que a leitura sobre pensamentos hegemônicos de extrema direita, no Brasil e em boa parte do mundo, ficasse relegada a uma minoria não apenas política, mas também em termos de fenômeno a ser mais bem compreendido.

Provavelmente é o que justifica os espantos com a receptividade e adesão a figuras como Bolsonaro e Keiko, para falar apenas de América Latina no atual momento, fora os vários nomes de ditadores que governam países mundo afora.

No governo de Jair Bolsonaro temos a convivência ambígua de elementos democráticos obrigatórios e injunções autoritárias, cujos componentes práticos se apresentam com o uso das instituições do Estado para perseguir pessoas e adversários políticos, intimidação de servidores da administração em vários órgãos, com especial destaque para as universidades públicas.

Ameaças à imprensa viraram regra, bem assim a difusão cotidiana de mentiras e distorção de fatos. Os elementos simbólicos e estruturantes são a presença de militares no governo, incluindo generais da ativa nos postos de comando, e a ação das polícias.

Sem pretender aprofundar o tema, que demanda análise mais apurada, é possível afirmar que as polícias, sobretudo a Polícia Militar, foram criadas em contexto de manter a ordem, não de defesa da sociedade e que, a despeito do fim do regime inaugurado em 1964, não houve qualquer transição democrática no interior dessas corporações, tão somente uma adaptação aos “novos tempos”.

O que significa que não deveria ser surpresa a ninguém a adesão da imensa maioria de policiais a Jair Bolsonaro, já amplamente demostrada em fatos desde o período eleitoral, em insurreições contra administrações locais, em ataques a pessoas e movimentos durante manifestações pacíficas que se contrapõem ao governo federal.

A questão que se apresenta agora de forma mais evidente, que já possui sinalização há mais de um ano, quando Bolsonaro começou a falar de fraude eleitoral e exigir voto impresso para as eleições é: o que ocorrerá caso o mandatário, sendo derrotado, se recuse a deixar o cargo? Que papel será exercido pelas Forças Armadas e pelo comando das polícias?

As sinalizações até aqui são bastante preocupantes e perigosas, sobretudo após o episódio mais recente em que o Exército se recusou a punir o general Eduardo Pazuello após subir em palanque com Jair Bolsonaro, em evidente ato político, infringindo vedação legal expressa.

Fala-se em crise nas Forças Armadas ou entre elas e o governo, o que é pouco crível, quando se observa os movimentos dos comandantes militares desde 2016.

A própria chancela do alto comando para a presença de generais da ativa no governo mostram que as Forças Armadas buscam o exercício de tutela ao seu modo, aparentando não se misturarem com o modelo espalhafatoso de Bolsonaro de governar, mas sem qualquer embate público que possa ameaçar a governabilidade.

Nem mesmo a troca dos comandos em março último foi capaz de produzir algo nesse sentido, apesar de todas as especulações públicas. Dito de outro modo, o conflito é apenas aparente.

Na verdade, uma observação mais atenta aponta para evidências de que há interesse dos militares de vender a imagem de pessoas sensatas e moderadas, que não se misturam com os radicais e ideológicos, são a parte equilibrada. A postura do vice-presidente, General Mourão, é representativa dessa personificação da reserva de bom senso.

O que existe de fato é uma identidade ideológica e política entre o governo e os militares, como aliás, bem pontuado por um artigo publicado em fevereiro pelo ex-deputado José Genoíno intitulado “As Forças Armadas e a Democracia” (ver aqui)

Divergências sobre a forma de governar, como no interior de qualquer coletivo, são pontuais e não majoritárias ou, ainda, não são capazes de produzir crise real. Desconfortos, caso haja, não mudam o comprometimento político do comando militar com a agenda do governo.

Resta saber o que farão em situação limite, caso ela se apresente. É provável que aceitem o resultado eleitoral qualquer que seja e rejeitem a aventura inconstitucional de Bolsonaro, desde que compreendam que nenhum governo afetará seu status quo de mantenedores da ordem pública e sua imagem de moderados e sensatos. Quanto aos insubordinados das bases policiais, aí veremos.

  • Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb – GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.
  • Publicação original : Brasil de Fato

Foto: Sergio Lima / AFP

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