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Brasil paralelo | Luis Felipe Miguel

A Brasil Paralelo é a maior impulsionadora de conteúdo político nas plataformas sociodigitais do Brasil. Dinheiro não falta, no seu trabalho de doutrinação do público.

1.

Faz uns dois ou três meses, recebi um e-mail de um desconhecido, que se apresentava como produtor da Brasil Paralelo. Ele dizia, sem maiores detalhes, que meu nome havia surgido no contexto de uma entrevista sobre “doutrinação comunista” nas universidades e pedia para eu apresentar uma contestação.

Obviamente, nem respondi. Não iria me prestar à farsa do “ouvir o outro lado” da máquina de desinformação ultradireitista.

Agora, o produto que eles estavam fabricando está vindo a público. É um “documentário” sobre a decadência do ensino universitário, não só no Brasil como no mundo todo, devido à dominação por esquerdistas satânicos.

Não vi o material: ainda não estreou e, ademais, eu não assino aquele lixo. Mas dá para ter boa noção pela propaganda, que não pára[1] de aparecer – afinal, a Brasil Paralelo é a maior impulsionadora de conteúdo político nas plataformas sociodigitais do Brasil. Dinheiro não falta, no seu trabalho de (e aqui a palavra cabe realmente) doutrinação do público.

Embora certamente o foco seja o Brasil, na propaganda o destaque é dado para as universidades da América do Norte. Os anúncios são estrelados por gente como Jordan Peterson, o reacionário agressivo que a Brasil Paralelo tenta com todas as forças promover à posição de “grande intelectual”.

Falam dos exageros de “politicamente correto”, das disciplinas de “geometria antirracista”, das ameaças de expulsão para quem errar algum pronome.

Imagino que a produção vai se esbaldar nos casos brasileiros de misticismo (desde que não seja evangélico) misturado com pesquisa, de pretensas epistemologias de fixação anal etc.

2.

Quando critico esse tipo de coisa, sempre vem alguém dizer que não devemos “nos intimidar” com o burburinho da direita.

Talvez – embora, se uma atividade é pensada exclusivamente para causar burburinho na direita, tenha algo fora do lugar. E embora evitar abrir flancos desnecessários, num momento em que estamos sob ataque, seja questão de simples bom senso.

Mas tudo isso é secundário. Devemos criticar esse tipo de coisa independentemente da direita: porque a universidade é lugar de debate livre, mas não de vale tudo, e aquilo que não se sustenta por critérios de pertinência científica e acadêmica deve ser deixado do lado de fora.

Lembro de uma vez, anos atrás, que tive que dar um parecer sobre a proposta de um curso de extensão sobre medição de “aura”, a ser oferecido na UnB. Que ofereçam o curso, mas não na universidade, que aqui é lugar de outra coisa.

Esses casos aberrantes servem para apimentar aquele que é o problema real da Brasil Paralelo e da direita em geral. A “doutrinação esquerdista” que eles realmente querem combater não está nos arroubos do identitarismo performático, mas nas múltiplas reflexões sérias sobre os padrões de desigualdade social vigentes e sobre as consequências palpáveis do capitalismo – do colapso climático (do qual, aliás, Jordan Peterson é negacionista virulento) à violência de gênero, das múltiplas formas de precarização do trabalho ao racismo.

Nisso tudo, o “predomínio da esquerda” – que está longe de ser tão unívoco, mesmo nos cursos de Ciências Sociais – tem a ver mais com a capacidade explicativa dos modelos críticos do com qualquer complô. O materialismo histórico e a teoria feminista, em seus múltiplos desdobramentos, mostraram ser capazes de desvendar a realidade social mais profundamente que seus concorrentes conservadores.

Que nem por isso estão ausentes.

3.

No próximo semestre, vou oferecer uma aula de teoria política contemporânea. Autores como Hayek, Nozick e Almond & Verba estão listados entre as leituras obrigatórias.

Já um ex-colega, que aliás logo seria condenado em sindicância interna sobre injúria racial e depois passaria quatro anos tentando um carguinho no governo Bolsonaro, dava um curso sobre teoria política dos séculos XVI e XVIII e cortava Rousseau do programa, alegando que não gostava de “comunistas”…

A campanha contra a Universidade é uma prioridade permanente na direita. Vários fatores fazem com que seja tão central. Existe o interesse material, a vontade de privatizar as universidades públicas, que, no Brasil, são exemplos eloquentes de que instituições geridas pelo Estado são capazes de combinar excelência e independência.

E é isso que também incomoda: a independência. Nas universidades, fomenta-se um espírito crítico hostilizado por aqueles que desejam uma sociedade governada por mentalidades limitadas, conservadoras e tradicionalistas.

Na verdade, as duas coisas muitas vezes andam juntas. Não falta quem queira criar sua faculdade privada como um cercadinho de ideias bizarras e atrasadas.

A “documentário” da Brasil Paralelo sinaliza que vem aí uma nova etapa dessa campanha. Vamos nos preparar.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).

Via A terra é redonda.

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