Notícias
Home / Conteúdos / Artigos / Brasília, lógica, lírica e infinita | Arlete Sampaio

Brasília, lógica, lírica e infinita | Arlete Sampaio

A cidade é o locus capaz de exprimir a tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado de existências humanas, revela o escritor Ítalo Calvino em seu testamento literário, as Seis propostas para o próximo milênio. A literatura, mais que as outras artes, constrói textos que falam da cidade, ou onde ela fala, embaralhando o continente construído, materializado, com os desejos, os sonhos, as experiências e as vivências humanas. Esse poder de fabulação dos escritores é o contraponto a uma tendência racionalizadora do olhar que vê a cidade apenas como um mapa, um conjunto de edifícios, um desenho, ainda que magnífico como o de nossa Capital.

Louvar Brasília é um desafio. Quase tudo já foi dito sobre o projeto urbanístico revolucionário de Lucio Costa, a geometria sinuosa da arquitetura de Niemeyer, a ousadia política de Juscelino Kubitschek, os caminhos e descaminhos da preservação do nosso precioso patrimônio material e imaterial. Quero, por isso, comemorar a Aniversariante, que completa 59 anos concretos e centenas de anos sonhados, de um jeito diferente, tomando emprestado o sentimento e a imaginação criadora dos escritores que tentaram decifrar, em palavras, o enigma da esfinge-Brasília, que ainda hoje devora, mesmo a quem pensa que conhece seus segredos.

Há alguns anos, durante 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, evento que marcou um ponto de inflexão em nossa cidade, tive a oportunidade de saborear depoimentos que particularmente me encantaram: o do chileno Antonio Skármeta, conhecido por seu livro O carteiro e o poeta, e o do português Miguel Sousa Tavares, autor dos espetaculares Equador e Rio das Flores. Ambos nos presentearam com seu olhar original e prismático sobre nossa cidade, sobretudo Miguel Sousa Tavares que, com delicadeza, quebrou o cristal que normalmente envolve as falas sobre Brasília.

Miguel Sousa Tavares é filho de Sophia de Mello Breyner, grande poeta portuguesa, com quem aprendeu que a boa literatura é aquela que pode ser contada em voz alta. Para quem ainda não sabe, Sophia, mãe de Miguel, era uma apaixonada pelo Brasil, pelos escritores brasileiros, e por Brasília, sendo dela um dos mais belos poemas já talhados sobre a novíssima Capital, que transcrevo no fecho destas linhas. Talvez tenham-se misturado no escritor dois registros amorosos – sua paixão confessada pelas sagas descritas por contadores de histórias e o encantamento de sua mãe por estas terras – que despertaram nele o fascínio sobre Brasília, que se traduziu, no dia de sua palestra, numa das mais sensíveis impressões que já ouvi sobre esta cidade.

Para ele, o que mais toca são as milhares, as milhões de histórias não escritas, não documentadas e, quiçá, ainda não contadas sobre Brasília. Sousa Tavares enxerga a maior beleza da cidade na heroica aventura dos brasileiros que vieram de todos os rincões do país para rescrever o destino de sua Nação, anônimos gloriosos que acreditaram estar construindo uma nova civilização e deixaram o suor e a utopia como legado para a sua descendência. O escritor não vê Brasília como a concepção de poucos iluminados e sim como o fruto da criação e do trabalho coletivos, como a materialização de um sonho atávico que por aqui germinava antes das caravelas.

Aproprio-me, então, da imaginação que “transvê”, como diz Manoel de Barros, para prestar minha homenagem a todas as Brasílias e suas infinitas existências, de ontem, hoje e sempre, com este diamante luminoso de Sophia de Mello Breyner:

“Brasília
Desenhada por Lúcio Costa, Niemeyer e Pitágoras
Lógica e lírica
Grega e brasileira
Ecumênica
Propondo aos homens de todas as raças
A essência universal das formas justas

Brasília despojada e lunar
como a alma de um poeta muito jovem
Nítida como Babilônia
Esguia como um fuste de palmeira
Sobre a lisa página do planalto
A arquitetura escreveu a sua própria paisagem

O Brasil emergiu do barroco e encontrou o seu número
No centro do reino de Ártemis
– Deusa da natureza inviolada –
No extremo da caminhada dos Candangos
No extremo da nostalgia dos Candangos
Atena ergueu sua cidade de cimento e vidro
Atena ergueu sua cidade ordenada e clara como um pensamento

E há nos arranha-céus uma finura delicada de coqueiro”

Feliz Aniversário, Brasília!

Arlete Sampaio é deputada distrital pelo PT-DF e militante da Democracia Socialista.
Originalmente publicado aqui.

Veja também

Labirinto da extrema direita | Luiz Marques

A classe e a ideologia racista não são as únicas categorias da consciência. A “liberdade de expressão” é o ardil utilizado para propagar o terraplanismo impunemente.

Comente com o Facebook