O Breque dos Apps, mobilização de motoboys e ciclistas que ganhou força neste dia 1º de julho, inaugura um novo capítulo na luta contra a precarização do trabalho. Até então, o neoliberalismo vinha ganhando de lavada, nos tribunais e no mercado. Em janeiro deste ano, a justiça negou a condição de empregados aos entregadores vinculados à empresa iFood que, mais recentemente, ainda conseguiu reverter a decisão sobre a obrigatoriedade de ajuda financeira aos trabalhadores durante a pandemia.
A sociologia aponta há algum tempo as problemáticas das novas relações de trabalho dentro da chamada uberização. O impasse principal gira em torno do reconhecimento do vínculo empregatício dos trabalhadores de empresas que se colocam não como prestadoras de serviço, mas como plataformas de mediação entre oferta e demanda.
O Direito do Trabalho é uma justiça especial, que responde a outros critérios que não só o todo-poderoso contrato. Há o Princípio da Primazia pela Realidade, que consiste na prioridade de se analisar a realidade trabalhista pela prática implementada, e não só pelo que foi expressamente acordado. As relações de emprego, portanto, são caracterizadas pela identificação da presença de subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade, elementos que estão escancarados na rotina de trabalho dos entregadores e motoristas de aplicativo.
Por que então a dificuldade em reconhecer o vínculo empregatício ou, ao menos, em garantir condições mais dignas de trabalho?
- Tecnologia e Magia
Entender o avanço da precarização é, também, entender o universo místico das empresas de tecnologia. Muitas das ditas techs não tiram lucro do modelo tradicional da administração, vendendo seus bens e serviços no mercado. Em seu discurso, são empresas de inovação, baseando-se no software que desenvolveram para “conectar” esses dois lados do mercado, o ofertante e o demandante.
A sustentabilidade desse modelo, no entanto, não depende da sofisticação do algoritmo, ou da brilhante ideia que algum jovem harvardiano levou aos investidores-anjo do Vale do Silício, mudando para sempre a História da Humanidade. Essas empresas dependem, sim, da adesão às suas plataformas. Só funcionam como monopólios, hubs que conectam agentes econômicos que, necessariamente, precisam estar lá. Para isso, algumas delas chegam até a operar no “vermelho”: a Uber, por exemplo, é uma empresa deficitária que iria à falência, não fosse a aposta do mercado financeiro na futura dominação dela sobre os modelos de mobilidade. O que permite liquidez à companhia é justamente sua presença nas bolsas de valores.
Elas dependem do mercado financeiro para se capitalizar e manter o fluxo de caixa. Seu sucesso financeiro vem da mais-valia integrada, em rede, sistêmica – um pacto de sangue do Capital. A aposta é que, mantendo a aura “disruptiva” dessas empresas, será possível avançar na precarização do trabalho e no controle sobre os mercados. A dificuldade em garantir melhores condições de trabalho, portanto, não se deve apenas à tentativa de fugir da onerosidade que achata as margens de lucro. Nesses casos, o lucro só existe por causa da precarização. Essas empresas precisam rechaçar continuamente sua classificação como meras distribuidoras; precisam permanecer no plano da mediação abstrata, sólidas como uma nuvem.
Fugir do reconhecimento do vínculo empregatício, então, é preservar esse caráter de intermediária abstrata, que só é possível pela visão mágica da tecnologia. Aprofundar o entendimento do caráter dessas empresas é trazê-las ao mundo real, retirá-las do plano do místico que sustenta a precarização do trabalhador, o modelo de negócios e o sistema como um todo.
- A Motoca de Sísifo
Para manter esse caráter fantasmagórico, as empresas de tecnologia precisam fazer o mesmo com seus trabalhadores. O entendimento das relações de trabalho deve permanecer enevoado, não apenas como categoria jurídica, mas também como percepção subjetiva.
Dentro dessa ideologia do sujeito, vende-se a ideia de uma suposta autonomia do trabalhador, que deixa de ter a rigidez de um empregado para se tornar um empreendedor de si. Práticas como o home office e o “patrão algorítmico” geram novos modelos de controle, cuja consequência está longe da emancipação que o discurso pretende. Na verdade, é uma nova prisão, e seu único benefício é a liberdade de escolher em qual cela vai ficar.
Exemplo disso é o sistema de rankeamento interno dos entregadores, que condiciona o chamado da entrega aos mais bem pontuados. A avaliação do consumidor é apenas uma das variáveis desse ranking. Outra, mais relevante para o app, é a assiduidade na plataforma. Ou seja, se o trabalhador roda uma semana pela Rappi, quando voltar ao Ifood, sua pontuação já caiu e ele não é priorizado nas chamadas. Com isso, tentam competir para reter os trabalhadores e consumidores em suas plataformas, inviabilizando as concorrentes.
Esse controle através do individualismo romântico e da precarização material do trabalhador, é conjugado à opacidade da tecnologia, uma alienação das ferramentas pelas quais o trabalho e o capital se organizam no século XXI.
(Curioso que a figura do “trabalhador” esteja, mais do que nunca, dispersa. Uma pessoa no Instagram, por exemplo, trabalha para essa empresa fornecendo dados. A alienação quanto às ferramentas algorítmicas é a base de todos os modelos de negócio das techs. Nesse sentido, são duplamente monopólios e monopsônios).
A ideologia da tecnologia, assim como os dispositivos legais e estruturais que permitem a opacidade dos algoritmos, são essenciais para a manutenção desse controle do trabalhador e avanço da precarização. Se cai o véu de “Inovação”, “Novo Modelo” que cobre essas empresas, cai também toda essa rede de simbiose financeira. Derrubar a opacidade algorítmica e ideológica da Uber, por exemplo, poderia causar um estrondo profundo no mercado financeiro ao desvalorizar em cascata as ações de outras techs. É um equilíbrio tênue, de arder as costas dos mais diligentes Atlas do mundo. Não obstante, eles avançavam a passos pesados.
E, então, veio a pandemia.
- Abrindo a Cozinha
A crise não é de hoje. É um projeto que vem sendo implementado pelo menos desde o golpe de 2016. O avanço da precarização do trabalho veio apoiado em mudanças legislativas, em retirada de direitos e numa reconfiguração do campo político. Prova disso é a aliança macabra entre o neofascismo bolsonarista, a cruzada lava-jatista, e o entreguismo que Paulo Guedes tenta empreender. Os EUA vêm se recuperando economicamente às custas da América Latina, demolindo o projeto soberano da região sob o argumento de eficiência e moralização da política – argumento que não resiste a um jantar de negócios em Washington.
Mas a crise sanitária do coronavírus impôs um ritmo inesperado, algo que a aritmancia econômica não poderia prever. Transformações no mundo do trabalho, previstas para se enraizar na sociedade em dez anos, foram feitas às pressas, em poucos meses. O isolamento social foi particularmente efetivo nas áreas mais ricas das capitais, o que fez explodir a demanda por delivery.
Enquanto os acionistas dos aplicativos brindavam ao novo vírus, um exército de entregadores foi posto na rua, fragilizado econômica e sanitariamente. O novo projeto de desmonte no Brasil não poderia se dar ao luxo de frear, por motivos de meta, ideologia e psicopatia. As plataformas, como já vimos, não poderiam se dar ao luxo de garantir dignidade mínima aos entregadores, sob pena de transformá-los em trabalhadores (e causar a própria ruína). Os motoboys e ciclistas se viram entre o contágio e a fome.
Não é possível saber se o avanço do neoliberalismo romântico sobre as subjetividades, seguindo o cronograma correto, seria capaz de dar conta da insatisfação dos trabalhadores. Investidores juram que sim, mas suas promessas são vazias por definição. O fato é que o “admirável mundo novo” vendido aos trabalhadores de app não resistiu à pressão material. Como diria o poeta pernambucano: “quem tem fome, tem pressa”.
Os trabalhadores organizaram-se em rede, exercendo, aí sim, a verdadeira autonomia. Desligaram os motores. As entregas se acumularam, e os aplicativos ficaram nervosos. Acuados, tentaram dispersar o clima de insatisfação da maneira que sempre o fizeram: promovendo competição entre os entregadores. Durante o breque, as plataformas ofereceram compensações aos trabalhadores que furassem a greve, além de cupons de desconto para os consumidores. Contavam com a revolta da classe média ao não conseguir almoçar um hambúrguer com 70% off. Emitiram uma nota patética, com título conceitual e tudo (“Abrindo a cozinha”, em referência à lei que obriga os estabelecimentos a permitirem visitas dos clientes às instalações).
No entanto, não abrirão a verdadeira cozinha. Não mostrarão como funcionam os algoritmos, as linhas de código por trás desses softwares, que programam as novas formas de desigualdade. Não há como se enganar: a inovação não está na arquitetura dos aplicativos, ou na emancipação do trabalhador abandonado. A verdadeira inovação dessas empresas é a sofisticação da precarização do trabalho. E essa é a verdadeira batalha que o Breque dos Apps prenuncia.
Antonio Ribas é comunicólogo formado pela PUC-Rio.
Ingrid Figueirêdo é bacharel em Direito pela UFRJ e jornalista em formação na PUC-Rio.
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