As ondas de protestos que se iniciaram na semana passada em Burkina Faso foram motivadas pela insatisfação de parte da sua população com as manobras organizadas pelo poder executivo, que detinha o controle da maioria do parlamento e propunha uma alteração constitucional, permitindo que o presidente Blaise Compaoré pudesse se recandidatar. Os protestos culminaram na ocupação da Assembleia Nacional, que foi incendiada, a televisão pública foi tomada por manifestantes e houve troca de tiros ao redor da sede da presidência. Pelo menos 30 pessoas morreram e cerca de 100 ficaram feridas.
Burkina Faso é o quarto maior produtor de ouro do continente africano, mas também é um dos países mais pobres do mundo, com 46 por cento dos seus habitantes abaixo da linha da pobreza. O presidente Blaise Comparoé cumpriu dois mandatos de sete anos, alterando depois a Constituição para poder manter-se no poder durante mais dois períodos consecutivos de cinco anos, tornando-se um dos líderes africanos que mais tempo passou à frente de um país. Antes da renúncia (ocorrida no dia 31 de outubro último), motivada pelos intensos protestos, Blaise Compaoré presidiu Burkina Faso por 27 anos.
A Organização das Nações Unidas emitiu um comunicado enviado para a junta militar que tomou o poder em Burkina Faso após a renúncia do presidente Compaoré. Afirma que irá impor severas sanções caso o controle do país não seja entregue para os civis. Nas ruas da capital Ouagadougou milhares de pessoas seguem em protesto contra a intervenção militar ocorrida neste sábado que, interinamente, empossou o tenente-coronel Isaac Zida na chefia do país. A comunidade internacional já se manifestou exigindo dos militares que realizem em caráter de urgência eleições democráticas e que a constituição do país possa ser respeitada.
Contudo, para melhor compreendermos a realidade deste país africano, é importante conhecermos um pouco da sua historia recente. Colônia francesa até o inicio dos anos 30 do século passado, Burkina Faso (à época conhecida como Reino Mossi) se tornou uma república membro da Comunidade Franco-Africana e passou a ser chamada pelo nome de Alto Volta. Somente conseguiu sua independência completa no ano de 1960.
Em 1966, ocorria o primeiro golpe de Estado iniciando um regime que perdurou 12 anos. Em 1980, um segundo golpe interrompeu o frágil processo de democratização do país. O regime liderado por Saye Zerbo foi derrubado dois anos depois por um terceiro golpe de Estado. Este foi contido por um contra-golpe, liderado pelo capitão do exército Thomas Sankara. Após assumir o comando do país, em 1983, teve como uma de suas primeiras medidas a alteração do nome de Alto Volta para Burkina Faso, que significa Terra dos Homens Íntegros.
Thomas Sankara foi um teórico marxista e pan-africanista que propunha que a África, os africanos e seus Estados deveriam, de forma autônoma, controlar seus próprios destinos, direcionando duras criticas ao neocolonialismo vigente na época.
Thomas Sankara liderou o inicio de uma série de reformas sociais e econômicas baseado na democracia participativa, no combate à corrupção e estimulou a educação e a agricultura. Em seu governo houve um esforço concentrado que mobilizou todo o país no combate a fome através do incentivo governamental à politicas de agricultura família. Desenvolveu também uma forte campanha nacional de alfabetização e promoção da saúde pública e gratuita.
Sankara promoveu um verdadeiro choque cultural na sociedade de Burkina Faso ao reforçar o compromisso com os direitos das mulheres, através da proibição da mutilação genital feminina, dos casamentos forçados e da poligamia. Nomeou mulheres aos altos cargos do governo e incentivou a geração de empregos ao sexo feminino em isonomia de gêneros.
Em seu famoso discurso “A Revolução não pode triunfar sem a emancipação da mulher”, proferido no dia 8 de março de 1987, Thomas Sankara disse:
“..É verdade que a mulher trabalhadora e o homem simples são explorados economicamente, mas a esposa operaria é também, frequentemente, condenada ao silencio pelo camarada seu marido [..] foi a transição de uma forma de sociedade para outra que institucionalizou a desigualdade feminina[..] A desigualdade só pode ser derrotada ao estabelecermos uma nova sociedade, onde homens e mulheres possam desfrutar direitos iguais, essa, resultado de uma reviravolta nos meios de produção e em todas as relações sociais. Assim, a condição da mulher só irá melhorar com a eliminação do sistema que a explora…”
Ainda no campo das reformas econômicas e sua politica externa, Burkina Faso combateu as investidas imperialistas e recusou a ajuda econômica dos grandes países capitalistas. Assim, pretendia reduzir a dívida externa e a influência do FMI. Como medida para garantir o direito do povo a seu próprio território e reparar o processo de exploração iniciado no período colonial Thomas Sankara nacionalizou todas as terras e riquezas minerais.
A dinâmica de transformações político-culturais e as reformas estruturais iniciadas por Thomas Sankara provocaram forte reação entre os líderes tradicionais, os governos ocidentais e a pequena, porém poderosa, classe média do país, levando a um forte processo de desestabilização, culminando em um golpe de Estado liderado por Blaise Compaoré e o assassinato do líder socialista no ano de 1987. Sankara passou para a história como o Ché Guevara africano.
Burkina Faso se vê hoje diante de uma oportunidade ímpar de decidir se aprofunda as relações de subordinação ao capital internacional e a exploração das suas riquezas minerais, que não se traduzem em melhoria na qualidade de vida do seu povo, ou iniciar a partir dos protestos que derrubaram Compaoré a retomada do processo revolucionário começado por Thomas Sankara e bloqueado pelas forças conservadoras do país, com respaldo e contribuição dos países ricos. A dinâmica de transição, a retomada da legalidade institucional e a realização de eleições democráticas serão fruto do processo de organização e mobilização social do povo de Burkina Faso. É preciso acompanhar e interpretar os rumos que nos trazem esta nova primavera.
*Cledisson Júnior, militante do Coletivo Nacional de Juventude Negra – Enegrecer