A mídia corporativa, que não aceita posições dissonantes entre “colaboradores”, defende a liberdade de expressão somente fora de sua jurisdição. Era postiça a indignação manifesta com a recepção oficial ao presidente da Venezuela, vindo a Brasília para o encontro de lideranças das nações latino-americanas, no Itamaraty. Mandatários de esquerda e direita estiveram presentes, à exceção do Peru que destituiu o governante. O objetivo foi fortalecer o continente em um mundo hegemonizado pelo Consenso de Washington (1989), que não trouxe o prometido crescimento econômico sustentável, com geração de empregos e distribuição de renda.
Para não fugir à regra lesa-pátria, remanescente do período colonial-escravista, os “caranguejos” do jornalismo nacional preferiram agourar o evento, em vez de divulgar a articulação pluralista para o reerguimento da Unasul. A alegação beirou o cinismo: “Cada corrente tem seus ditadores de estimação”. Como se a formação de um bloco político regional tivesse por critério, para recordar as categorias deontológicas de Max Weber, a identidade fundada em uma “ética da convicção”, e não na “ética da responsabilidade” ao lidar com a globalização.
Beirou a hipocrisia, idem, pelo negacionismo sobre a condição de chefe de Estado de Nicolás Maduro: “A decisão de estender o tapete vermelho poderá trazer mais prejuízos do que lucro”. Aos Estados Unidos? Aos promotores da agenda neoliberal? À direita neofascista? Desnecessário catar pelo em ovo. Tratou-se simplesmente de buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina – sem o complexo de vira-lata.
Para uma noção do inescrupuloso jornalismo no Rio Grande do Sul, ler “A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS”, de Carlos Águedo Paiva, in: Rede Estação Democrática (RED, 31/05/2023). Uma ótima reflexão sobre a escalada neoliberal em terras sulinas, e a intervenção da imprensa na arquitetura desse processo político-ideológico. No redemoinho, a crítica afundou no fosso entre o povo e a nação, sem forjar a contra-hegemonia.
A contrarrevolução
Falta à mídia e setores da vanguarda do atraso um programa de empoderamento transnacional em um contexto histórico multipolar, para inserir as demandas dos plebeus (nosotros). Prevalece o olhar hipostasiado e submisso frente ao erodido imperialismo estadunidense. Não se faz o balanço do neoliberalismo pelas más consequências. A gramática do Homo economicus registra o lucro, o rendimento e a acumulação, não o sofrimento social. A distopia da rápida evolução conservadora contra as funções estatais é encoberta por salamaleques.
A opinião pública é manipulada. A mídia substituiu o uso público da razão pela expressão pública de sentimentos. “Os assuntos se equivalem, se reduzem à banalidade do ‘gosto’ ou ‘não gosto’, do ‘achei ótimo’ ou ‘achei horrível’”, denuncia a análise midiática de Marilena Chaui, em Poder e simulacro. Infantiliza-se os receptores, feitos de idiotas.
O neoliberalismo é o princípio teórico e a doxa de uma nova forma de ação do Estado, orientada para a manutenção da ordem pública, a unificação do mercado nacional, a consolidação do mercado mundial e a concorrência que aquele impõe. O fenômeno acenou para uma dominação inusitada na história contemporânea, ao penetrar a subjetividade dos seres humanos pelas ondas de rádio, pela televisão e pelas big techs. Um mesmo mundo é possível.
“Modernização” então tornou-se sinônimo de “realismo”, de “equilíbrio fiscal” e de um “sentido de decoro”. Think tanks propagaram a mitologia, num ritmo alucinado. Contabilizavam 5.465 núcleos, em 2008. Em 2019, eram 8.248. No Brasil, no mesmo intervalo, saltaram de 30 para 103 nas pegadas do livre comércio. Coube ao Instituto Mises Brasil (IMB) influenciar a famiglia Bolsonaro nas áreas de educação, saúde, economia, relações exteriores, etc. Por trás da sabotagem do Estado havia, na surdina, a opção da trupe pelo anarcoliberalismo.
O protesto na Gare
Em 12 de dezembro de 1995, Pierre Bourdieu proferiu um célebre discurso na Gare de Lyon, em apoio à greve do funcionalismo público francês contrariamente às reformas neoliberalizantes do governo: “A nobreza de Estado que prega a extinção do Estado e o reinado absoluto do mercado e do consumidor, substituto comercial do cidadão, assaltou o Estado: fez do bem público um bem privado, da coisa pública uma coisa sua. O que está em jogo é a reconquista da democracia contra a tecnocracia. É preciso acabar com a tirania dos ‘especialistas’, estilo Banco Mundial ou FMI, que impõem os vereditos do novo Leviatã, os ‘mercados financeiros’, e que não querem negociar mas ‘explicar’. É preciso romper com a fé na inevitabilidade histórica”.
Entre nós, a reconquista da democracia contra a tecnocracia refere-se aos valetes do Banco Central e aos juros estratosféricos a serviço da ciranda financeira (um assalto à luz do sol). Os próceres do Parlamento se incluem entre os pseudopatriotas ao avalizar o extermínio das etnias indígenas e da devastação da Amazônia. É o que significa o “marco temporal” aprovado na Câmara dos Deputados – triste representação. Se ratificado no Senado, calcula-se que os indígenas estejam em risco em 871 das 1.393 reservas do país, estipula o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Motivos sobram para barrar o criminoso genocídio dos habitantes originários.
Urge um “novo internacionalismo” para reatualizar o engajamento político e intelectual no combate ao status quo. Com ousadia pode-se galvanizar a sociedade civil e despertar a cidadania para agir na esfera pública, e modificar a ordem social. Há que enfrentar a hecatombe climática, a ameaça de uma guerra nuclear, a crise da democracia (o ovo da serpente do totalitarismo) e o capitalismo de vigilância, com tentáculos na Inteligência Artificial (IA).
Não é fácil. Implica derrotar a lógica comunicativa e dissimuladora que obscurece e sufoca o bom senso, ao abrir as portas à ignorância que se autoproclama em patamar igual ao do conhecimento e da ciência. Na contramão dos filósofos iluministas que desconstruíam as crendices do povaréu, os tradicionalistas ressuscitam o pai do conservadorismo, Edmund Burke, para quem os preconceitos são úteis para organizar uma sociedade temente a Deus.
Cinismo e hipocrisia
Vale lembrar que a IA é apenas uma extensão do sistema, com grande impacto no PIB mundial. A pergunta é: a solução reside na regulamentação do capitalismo (indômito, por natureza) ou em entregar os recursos, as pessoas e o trabalho para fomentar a economia no rumo do desequilíbrio ecológico, do irracionalismo bélico, dos suspiros da democracia politicista desvinculada do social e dos mecanismos controladores da vontade dos indivíduos. O capitalismo neoliberal é o gravíssimo problema a ser enfrentado, em tempos tão dramáticos.
Na derradeira fase do combo de opressão e exploração, a tarefa dos cães de guarda é faire l’opinion em favor das abissais desigualdades entre as classes sociais. Daí canalizarem a insatisfação contra os movimentos antissistêmicos, como o MST, ocultando o rentismo financeiro ao confundir a percepção das massas sobre o capitalismo realmente existente.
Para os bolsominions, a tragédia nacional se localiza com exclusividade na “superestrutura” – Superior Tribunal Federal/STF, Tribunal Superior Eleitoral/TSE, Congresso da República, Igreja Católica, Direitos Humanos, Universidades. Ligeiro cancelam as acusações que responsabilizam a “infraestrutura” econômica pelas mazelas que sacrificam o povo brasileiro, exemplificadas pelas commodities do agronegócio que não agregam valor e pela desindustrialização, que gera multidões de excluídos. O erro metodológico compromete o diagnóstico.
Não espanta a dependência de notícias falsas para minar a democracia e a verdade. As crises políticas nascem e crescem na medida em que se esfarela a credibilidade dos valores de um dos polos da disputa, na opinião pública. É o que os cães de guarda pretendem ao tatuar em Lula e, por extensão, na esquerda em geral a cumplicidade com “ditaduras”, deslocando as atitudes de cinismo e hipocrisia da burguesia para o espectro democrático-popular. Como no verso do poeta trotskista, Paulo Leminski: “nada como um dia indo atrás do outro vindo”.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.