Escrevi numa página do pequeno livro “O Porto Submerso” (1993) o poema “Carvão”. Passados tantos anos me vem à memória a utopia de Fernando Brant para a canção “Coração Civil” de Milton Nascimento (1981). Vivíamos o declínio da ditadura: “São José da Costa Rica, coração civil, / me inspire no meu canto de amor, Brasil. / Se o poeta é o que sonha o que vai ser real / bom sonhar coisas boas que o homem faz / e esperar pelos frutos no quintal”. Era um bálsamo banhando nossos corações dilacerados pela dor de mais de duas décadas de opressão militar.
Doze anos depois, o poeta obscuro, afeito a observar e lançar luz sobre as áreas ocultas, doentias, abjetas, as taras, as sombras que povoam a história dessa gente protagonista e vítima de toda sorte de brutalidades, imaginou essa distopia:
Carvão
A gengiva de ouro
devora a vasta planície:
ardem copas, flores, palmas,
pássaros incandescentes.
O fogo
anoitece a terra
e a secreta vontade do fruto.
Coivaras industriais
reorganizam o cerrado
para submetê-lo
à tirania produtiva dos homens.
Meus olhos cansados
miram a tarde que morre
e registram ruínas de árvores
que exigem o silêncio da alma
como catedrais tombadas.
Ardem os ossos das árvores:
o verde derrotado,
o fulgor da lavareda,
a palha, a cinza, antigas certezas
pulverizadas,
a potassa exposta à viração.
A busca feroz do carvão. (1993).
Naquele momento era oportuno fazer pensar sobre os efeitos do modelo de desenvolvimento da agricultura brasileira ancorado, de um lado, no monopólio de vastas extensões de terra – 1% dos proprietários cercam 47,5% das terras agricultáveis (IBGE), – portanto, no velho e conhecido latifúndio, rebatizado sob o nome contemporâneo de agronegócio. Manteve intocados os traços históricos que o caracterizam desde as Capitanias Hereditárias: monopolizar a terra e manter as mais retrógradas relações de trabalho para produzir monocultura.
Nada mais funcional no país das aparências do que uma estampa, uma máscara a mais para conferir a essa estrutura arcaica um verniz modernizante.
De outro lado, a produção assentada na mecanização do trabalho agrícola, segundo os padrões da “revolução verde”, no pós-guerra, agregada à adesão incondicional à indústria química que converteu o Brasil no maior consumidor de venenos agrícolas do planeta.
Com esses elementos foram assentados os fundamentos da catástrofe: a destruição dos ecossistemas para ampliar ad infinitum a área plantada e compensar assim os déficits de produtividade.
Essa lógica destrutiva que deixou vulneráveis os biomas do sul (pampa) e sudeste do país (mata atlântica) foi aplicada sem maiores considerações e pesquisas nas plantas de produção no Pantanal, no Cerrado e na Amazônia, biomas com baixa capacidade de regeneração. O que o Brasil está colhendo agora – as inundações no Rio Grande do Sul e os incêndios no Pantanal, no Cerrado e na Amazônia – resultam dessa mesma matriz tecnológica.
Os fenômenos climáticos extremos que estamos assistindo e suas consequências sobre o país, põem em questão a própria matriz do sistema agrário-exportador que eterniza nossa condição de semicolônia.
Essa tarefa destinada ao Brasil na divisão internacional do trabalho fez do país o maior produtor de grãos do mundo às custas da destruição dos seus biomas. Dos seus sistemas ecológicos. Às custas da qualidade de vida dos seus cidadãos e cidadãs. Da saúde pública. Da sobrevivência digna nas metrópoles, grandes, médias e pequenas cidades e mesmo nos campos contaminados agora pela aplicação indiscriminada dos agrotóxicos, incluídos aí aqueles cujo uso é liminarmente proibido nos próprios países onde são fabricados.
A sociedade brasileira – e o Estado – estão diante de um desafio que transcende os limites geográficos do país, porque implica em repercussões imediatas e danosas que alcançam não apenas a população brasileira, evidentemente, mas também os países vizinhos e modificam de forma inédita as condições do sempre relativo equilíbrio ecológico dentro do qual nos movíamos historicamente até agora.
Estado e sociedade devem, portanto, encará-lo como o que realmente é: uma emergência climática planetária. E dotar-se das políticas públicas adequadas – elas não virão do mercado – para enfrentá-lo, na parte (relevante) que nos toca como nação soberana. O que significa enfrentar esse desafio? Sem meias palavras, expor para o conjunto da sociedade quais são os segmentos beneficiários da catástrofe que vivemos: Quem lucra com a produção envenenada? Quem lucra com a expansão ininterrupta da área plantada? Quem lucra com os desmatamentos indiscriminados? Quem lucra com os incêndios dos Cerrados, do Pantanal, da Amazônia convertidos no método de baixo custo para desmatar?
Não é aceitável atribuir “aos brasileiros” em geral, a um “nós” genérico a responsabilidade pelos desastres ambientais. É necessário explicitar com clareza para uma sociedade cada vez mais desprovida de capacidade crítica, em razão do déficit informacional produzido em escala industrial, devorada pelas tecnologias do entretenimento, que alguns estratos sociais privilegiados enriquecem com a crise, em detrimento da imensa massa de cidadãs e cidadãos que se encontra na base da pirâmide social – em particular os trabalhadores – colhidos pelos efeitos nefastos gerados pela marcha da insensatez.
O método é conhecido há décadas. Sobrepõe historicamente um crime ambiental a um crime de esbulho. O fogo abate o custo dos desmatamentos, os grileiros aproveitam-se da fragilidade da vegetação seca que acumula grandes volumes de massa de fácil combustão para iniciar o que antes eram as queimadas artesanais e restritas e hoje se converteram em incêndios de grandes proporções. O passo seguinte é semear o capim, cercar o que antes era terra pública ou de uso comunitário de populações indígenas, de posseiros ou quilombolas para transformá-la em propriedade particular e convertê-la em mais um latifúndio assentado sobre a destruição da cobertura vegetal, seja floresta, cerrado ou pantanal e na consolidação de forma ilegítima do monopólio da terra em poucas mãos. Assim funciona o motor da concentração fundiária no Brasil, auxiliado pelo direito de herança.
Por fim alcançamos o inimaginável. Algo que vaza para além de qualquer distopia. Em 2024 os órgãos de inteligência e segurança do Estado identificam o caráter organizado da ação criminosa contra o ambiente. Já não se trata apenas da ação metódica, empresarial, planejada para converter os vastos biomas brasileiros em plantas agroindustriais, absorvendo e aplicando mecanicamente e equivocadamente nas condições dos trópicos, tecnologias e métodos desenvolvidos em outros climas, outros tipos de solo e outros sistemas ecológicos.
Desembarcamos aqui na idade da estupidez. Na ação criminosa estimulada pela extrema-direita empenhada na disputa pela hegemonia política no país, de celerados a soldo, movidos, portanto, pela recompensa financeira imediata e pela paixão destrutiva que converteu parte significativa do país numa gigantesca coivara. Visto do espaço, o Brasil arde como uma grande fogueira.
Nem a utopia sonhada por Fernando Brant e Milton Nascimento, nem a distopia deste poeta obscuro foram capazes de capturar a extensão da catástrofe que a elite brasileira, manejando os cordões do neoliberalismo, num país semicolonial, nos proporcionou na terceira década do século XXI. Definitivamente, “o Brasil não é para amadores”, como popularizou Tom Jobim.
Brasília, sob a fuligem e as cinzas da FLONA.
17 de setembro de 2024.
Pedro Tierra é poeta. Coordenou a III Conferência Nacional do Meio Ambiente.