Mesmo que esteja diminuindo, a onda de ataques segue surpreendendo especialistas por seu caráter prolongado (quatro semanas!); difuso (os ataques não se limitam à capital, mas se espalham pelas cidades do interior); e variado do ponto de vista do objeto (passam a usar prédios públicos antes poupados, como escolas e creches, a exemplo de como ocorreu em Quixadá). Para César Barreira, especialista em violência da Universidade Federal do Ceará, as ações criminosas se tornaram absolutamente sem precedentes e imprevisíveis.
O Governo do Estado, com apoio do Governo Federal busca controlar a situação. Desde o início de janeiro, chegaram ao Ceará mais de 400 militares da Força Nacional e mais 262 agentes da Polícia Rodoviária Federal. Estados como Bahia, Pernambuco, Piauí e Santa Catarina também enviaram ajuda: pelo menos 140 policiais. O governo do Ceará convocou os PMs da reserva e 800 homens se apresentaram para voltar ao trabalho.
Já são 413 pessoas presas ou apreendidas. De acordo com a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), foram quase 2.500 celulares, aparelhos de televisão e armas brancas apreendidos nas cadeias. Mais de 2.500 presos foram realocados em outras prisões; outros 39, considerados de alta periculosidade, foram transferidos para presídios federais, buscando deslocar e isolar os chefes do crime organizado que estariam comandando os atentados de dentro das celas. A Secretaria ainda planeja desativar 84 unidades prisionais em todo o Ceará.
Os eventos tiveram inicio no começo do ano quando o Governador reeleito Camilo Santana convidou, via o Secretário de Segurança Pública André Costa, Luis Mauro Albuquerque para chefiar o Departamento de Administração Penitenciária. Conhecido por sua atuação enfática na crise do Rio Grande do Norte em 2017, Luis Mauro declarou assim que aceitou o convite do governo cearense que não reconhecia facção e que iria endurecer as medidas para impedir a entrada de celulares nos presídios.
Alguns especialistas e políticos criticaram a declaração de Luis Mauro, devendo a ela o estopim para a crise. Não entrarei nesse mérito. O que parece mais evidente e certo é que o estado está sendo disputado pelo crime organizado, por duas vertentes: o controle do tráfico de drogas, e o controle dos próprios presídios.
Vamos aos fatos.
1. Atuam no Ceará quatro facções distintas:
– Primeiro Comando da Capital (com origem em São Paulo),
– Comando Vermelho (de origem carioca)
– Família do Norte (do Amazonas)
– Guardiões do Estado (uma facção ainda menos conhecida, mas que começou a se organizar em 2015, e é caracterizada por suas lideranças mais jovens e, segundo especialistas da área, mais imprevisíveis)
2. O estado é considerado estratégico para a rota do tráfico internacional por conta de sua localização geográfica: tem saída fácil para o Oceano Atlântico, sendo mais próximo dos países do hemisfério norte; e por conta do Aeroporto de Pinto Martins (o 3o. maior em número de vôos nacionais e internacionais do Nordeste).
3. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que a região metropolitana de Fortaleza é a 7a. mais violenta do mundo. Enquanto o Brasil tem 28 mortes violentas a cada 100mil habitantes, o Ceará tem cinquenta e cinco. Em 2005 esse número era de 22 mortes a cada 100 mil habitantes, um crescimento considerável. Só em Fortaleza foram, no ano passado, alarmantes 84 mortes a cada 100 mil habitantes. Cinco mil mortes violentas em um ano.
A polêmica declaração do novo responsável pela Administração Penitenciária do estado dialoga com uma política até então praticada de separar as facções por presídios. Para evitar conflitos e mortes dentro das unidades prisionais, a Secretaria de Segurança Pública separava os presos de acordo com suas facções, já que numa cadeia controlada por uma determinada facção, detento que pertence a uma rival, realmente, está mais vulnerável a agressões. Assim que Luis Mauro deu esta declaração, houve um “salve” – como são chamados os “recados” que as facções passam para a população – solicitando que os ‘bandidos’, mesmo que pertencentes a grupos rivais, deveriam se tratar com respeito, pois o inimigo era o estado.
Grande parte do crime se organiza nos presídios brasileiros. O PCC, por exemplo, começou a se organizar ainda na década de 90 dentro das cadeias paulistas. É dali que os líderes dão seus comandos. E, principalmente, é ali que eles angariam mais mão de obra. E por quê? Bom, um detento que entra na cadeia está suscetível a todo tipo de violência e o Estado não consegue garantir sua segurança. Para se proteger, o preso se soma a um grupo. Como na cadeia não existe almoço grátis, a proteção que os líderes lhe oferecem tem seu preço: os ‘filiados’ podem ser obrigados a pequenos trabalhos dentro da cadeia ou até garantir escambo de produtos e drogas, envolvendo assim suas famílias em dia de visita.
O estrondoso aumento da população carcerária feminina (que hoje é de mais de 42 mil mulheres, um aumento de 700% desde o ano 2000) se deu, em grande parte, por conta de mulheres rés primárias que eram pegas em revistas nos presídios masculinos tentando levar drogas para seus maridos, namorados e filhos em dia de visita.
O aumento vertiginoso da população carcerária no Brasil é alimentado e ajuda a alimentar um ciclo vicioso que culmina nas explosões dos índices de violência que temos acompanhado, porque garante ao crime organizado mais mão de obra. As dívidas com as facções podem nunca ser quitadas. Quando nas ruas, os ex-detentos ainda podem ser obrigados a trabalhar para a facção.
É importante levar mais a sério esta dimensão que, às vezes, parece estar secundarizada nas discussões: os espaços prisionais são muito estratégicos para as facções e elas não parecem querer perdê-los. Ou encaramos a discussão sobre encarceramento em massa e seus efeitos como central para o debate de segurança pública ou seguiremos tentando apagar incêndio com baldinho de criança.
Jordana Dias é cientista social e militante da Democracia Socialista.
Originalmente publicado em Fundação Perseu Abramo.