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Ciências sociais cubanas: o reino do ainda?

1274245Por Fernando Martinez Heredia, na Carta Maior

Intitulei assim meu texto não apenas para fazer uma homenagem a Silvio Rodríguez, que é um dos principais pensadores sociais de Cuba e um grandioso propagador das mais avançadas ideias e dos melhores sentimentos. Também o fiz assim porque a sua canção com esse título contém uma boa aproximação de nossas principais insuficiências, aquela que a palavra “ainda” sintetiza (Clique aqui para ouvir a música de Silvio. Título original: El reino de todavía).

Porém, diante do pouco tempo disponível, eu me atrevo a pedir, a quem quiser saber mais sobre meu posicionamento sobre este assunto, que leia “Ciencias sociales y construcción de alternativas” (Ciências sociais e construção de alternativas).

São as minhas palavras no início de um Simpósio Internacional do Centro de Pesquisas Psicológicas e Sociológicas realizado em 2006. Estão no livro El ejercicio de pensar (O exercício de pensar).

Não repetirei aqui o que escrevi e o que disse sobre o subdesenvolvimento induzido sofrido pelo pensamento e pelas ciências sociais cubanas no início dos anos setenta, nem sobre as características daquela desgraça. Porém, nas análises que fazemos hoje, é imprescindível levar em consideração que se isto tornou crônico e que, em certa medida, ainda se mantém. E que outros males se somaram, como quando, no início dos anos noventa, não apenas naufragou em Cuba a corrente equivocadamente chamada de marxismo-leninismo, mas também se produziu um afastamento bastante generalizado de todo o marxismo.

Frequentemente, as mudanças impulsionadas diminuíram à medida que não oferecem muito mais do que boa imagem, mas costumam reforçar o colonialismo mental, assim como as permissividades conquistadas. Mas, atualmente, temos grandes avanços. Contamos com maior quantidade do que nunca de especialistas qualificados, centenas de monografias muito valiosas, centros de pesquisa e docentes muito experientes, além de um grande número de profissionais com vontade de atuar como cientistas sociais conscientes, dispostos a enfrentar os tremendos desafios que temos entre nós.

Prefiro, ao menos, citar problemas e dar algumas opiniões. As minorias extremamente valiosas e esforçadas que, diante de dificuldades e obstáculos, às vezes muito grandes, estudaram, pesquisaram, lecionaram utilizando o marxismo e os conhecimentos sociais, e publicado. Estão longe de ser emuladas pela maior parte do sistema de ensino, nem pela divulgação que numerosas publicações fazem. Na contramão de todo o avanço está o conservadorismo, a rotina e a inércia. Esta última se transformou em um mal nacional já comparável à burocracia por seu nefasto alcance.

Ademais, apesar de ter entre si notáveis diferenças, fatores com poder coincidiram em não  fomentar o hábito de pensar o debate em grande escala. No capitalismo, é normal a divisão entre elites e massas neste e em múltiplos terrenos culturais da vida, mas na nossa sociedade, isso deve ser inadmissível.

A conjuntura política nos é favorável. O companheiro Raúl lançou uma ofensiva política em 1º de janeiro –apoiado pelo Vice-presidente Díaz Canel—para a qual convocou expressamente as ciências sociais e pediu que fossem tratadas como tal, devido à importância de seu trabalho. Seria muito doloroso deixar passar esta oportunidade, apesar das sérias dificuldades que temos que enfrentar para atender ao pedido.

A tarefa é grande. Por exemplo, faz muito tempo que não exista um pensamento estruturado que opere como fundamentação do socialismo em Cuba. O predomínio do economicismo assumiu o complexo de mudanças sociais, econômicas e do mundo ideal que estão em curso com um pragmatismo nu e cru. Não se debate economia política, porque não se propõe nenhuma. Enquanto isso, o que está em jogo é como será, no futuro, o socialismo em Cuba; ou inclusive se vai ou não continuar, mas essa atitude é uma incitação a não pensar e nem pesquisar, mas a esperar resultados positivos vindos da ideologia de que a economia é a locomotiva e a guia; ou a consumir os colegas burgueses de ricos e pobres, e de êxito ou fracasso individuais ou familiares.

Trata-se de uma ausência muito grave porque o socialismo pode viver somente a partir de uma intencionalidade que rompa com a esperada reprodução da vida social que, nas sociedades que denominamos modernas, acabam como uma reprodução do capitalismo. O socialismo pode viver somente a partir do pensamento que se exerce como atitude e atuação superiores, do ser humano que está se desenvolvendo e crescendo de um modo novo e de uma sociedade que precisa ser criadora em inúmeros aspectos. O pensamento e o debate são, para a sociedade em transição socialista, o ar que uma pessoa respira.

É necessário e urgente um pensamento social que seja idôneo para analisar em toda sua complexidade a situação atual e as tendências que nela existem, bem como os instrumentos, a estratégias e táticas e o rumo a seguir e o projeto. E que contribua para o único modo em que, em última instância, o socialismo é possível: o desenvolvimento de suas próprias forças e de suas potencialidades, e a capacidade dialética de revolucionar a si próprio repetidas vezes.

Seria suicídio supor que um pragmatismo afortunado nos salvará: a sociedade socialista está obrigada a ser, a partir de sua praxis, de sua opção e de sua consciência, organizada e, se possível, planejada. É necessário elaborar uma economia política a serviço do socialismo para a Cuba atual e para a futura, e desenvolver um pensamento social crítico e capaz de contribuir em todos os aspectos, capaz de participar com eficácia da decisiva batalha cultura que o socialismo e o capitalismo estão travando abertamente.

O socialismo de tipo soviético forçou primeiro e depois legitimou uma posição apoiada na falsidade sobre as relações entre o “dever ser”, repetido sem descanso e o comportamento submisso custe o que custar, a simulação, a indiferença, o oportunismo e os interesses de grupo. Seu reino sempre foi o do ainda, e seu horizonte, a suposta correspondência da atuação com o que supõe ser possível fazer. Há cinquenta anos, Che denunciou essa farsa com uma pergunta: Por que pensar que o que “é” no período de transição, necessariamente, “deve ser”? E nos deixou um conselho que é fundamental: “não duvidar demais de nossas forças e capacidades”.

O marxismo recebeu muito pouca atenção, e chegamos ao que parece ser de mau gosto mencioná-lo para os que não se arriscam em nada que não tenha sido orientado ou previamente aprovado, ou às vítimas ou seguidores da avalanche de produtos culturais norte-americanos que padecem, propagadores do modo de vida, sentimentos, valores e pensamentos, da cultura, em suma, do capitalismo.

Agora que cada vez mais precisaremos dele, não podemos cometer o erro de assumir qualquer coisa que se apresente como marxismo. Terá que ser um marxismo revolucionário, que resgate as ideias de Marx e de Lênin e toda a história dessa teoria, mas dentro de um desenvolvimento crítico regido pelas realidades e pelas ciências da atualidade, pela primazia da elaboração teórica e pelo expresso reconhecimento de sua função social.

Atualmente, tornou-se necessário repetir as conquistas do pensamento e das ciências sociais cubanas dos anos sessenta, e nada menos que isso nos servirá.

Como sempre acontece, precisaremos ser muito criativos, muito abertos e receptivos às opiniões diversas, mas será de outro modo, enfrentará outros problemas, utilizará outros instrumentos, elaborará novas teses e desempenhará papéis maiores do que aqueles que teve no passado na elaboração cultural de um socialismo complexo, que deve enfrentar um enorme número de aspectos diferentes e desenvolver novos caminhos para as pessoas e para a sociedade, e que tem um inimigo que continua sendo perverso, e que mostra muito mais desenvolvimento em sua guerra cultural.

Ao redor de todo o país temos bons estudiosos das matérias sociais. Em junho passado, isso foi comprovado mais uma vez, no Instituto Juan Marinello, no I Simpósio Nacional de Pesquisas Culturais, com mais de oitenta apresentações de toda a Cuba. Dividi com jovens professores em Santiago de Cuba, Santa Clara, na maioria das províncias do país e admiro suas ideias, seu anseio por conhecimento, seu espírito crítico e sua consciência política, que me enchem de esperança. Faz três semanas que tive uma agradável reunião com o Conselho Nacional da FEU, de profunda e muito honesta discussão sobre os problemas nacionais, da educação superior e da organização estudantil.

Cuba se coloca mais uma vez em movimento e os cientistas sociais têm grande dever. É hora de compartilhar nossa formação com os mais jovens, de ensinar a pensar e a ser culturalmente adultos, de conduzi-los enquanto for necessário e nos alegrar de que aprendam a se conduzir por si só porque terão que conduzir o país. É preciso fazer com que o pensamento e as ciências sociais estejam à altura daquilo que a sociedade espera deles.

(*) Intervenção do autor, da Universidade de Havana, no Painel “Ciencias sociales, academia y transformaciones sociales”, do Coloquio de Ciências Sociais da 23º Feira Internacional do Livro.Texto publicado em: Actualización del modelo socialista cubano.

Tradução: Daniella Cambaúva

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