Por Clarissa Alves da Cunha, na Fórum
As Jornadas de Junho, como já debatidas, apresentaram um passo importante no amadurecimento da nossa democracia. Isso pode ser afirmado pela quantidade e pela diversidade de cada passo dado no asfalto, durantes as manifestações, em nossas cidades. Essas ruas tomadas por pés, que igualmente corriam, pulavam e às vezes fugiam, sustentavam corpos que erguiam diferentes cabeças e levantavam diferentes cartazes. Esses pés oriundos de diferentes classes sociais, credos e crenças pisavam com a mesma força, lado a lado, no mesmo chão. Esse chão ganhava, nesse momento único, a oportunidade de ser mais democrático e deixar pisar, cair, sangrar, sorrir, cantar, em cima dele qualquer um que ousasse sair de casa. Por mais que se avalie a existência de contradições entre as visões de mundo dos manifestantes, é inegável que naquele momento a democracia se fez mais presente nas ruas.
Mas a verdade é que em nossas cidades o asfalto não tem essa característica democrática durante o resto dos dias do ano. Durante os outros dias do ano, esse mesmo asfalto deixa pairar em cima dele o BMW parado no sinal que tem ao lado dele pés pobres e descalços encostados no meio-fio. E isso existe mesmo com todos os importantes avanços na redução da desigualdade obtidos em nosso país nos últimos 11 anos. É esse o asfalto, vivido por nós em todos os outros dias do ano que precisa ser radicalmente transformado. Nossos asfaltos precisam trazer a experiência vivida nas manifestações para seu dia a dia. E, logicamente, ceder e dar lugar para outros espaços importantes em nossas cidades. Espaços públicos, usados pelo povo democraticamente.
Na contramão desse desejo, pelo espaço público e democrático em nossas cidades, está o desejo dos outros. Os outros são aqueles com interesses pessoais, de lucro, e, consequentemente, de privatizações, fazendo nossas cidades cada vez mais mercantilizadas e excludentes.
Não é despolitizado, sem foco ou sem rumo jovens escancararem esses problemas vividos em nossas cidades e junto a isso apontarem possíveis soluções. Soluções que muitas vezes não concordamos, mas que se misturavam ao lado das que concordamos e juntos mexiam no cenário político do país dizendo: eu também quero participar!
É nesse debate sobre o direito à cidade, de ter transporte público e de qualidade, de lutar contra a desmilitarização da policia, contra o PLS nº 728/2011 que tipifica o crime do terrorismo e criminaliza os movimentos sociais, a especulação imobiliária, a prostituição, as remoções, e por fim o controle da Fifa sobre nosso território, que se questiona e se debate a Copa.
É um debate público que não foi feito à priori por quem “acordou” em junho, mas que agora tomou corpo e ganhou centralidade. Neste sentido, acredito que não há nesse momento nada mais errado do que enfrentar os que são contra a Copa com gestos ufanistas ou de simples afirmação ao invés de enfrentar politizadamente as críticas à Copa.
Setores à direita criticam a Copa, é verdade. Esses querem que a Copa dê errado no seu aspecto estrutural. Problemas nos aeroportos, rodoviárias, engarrafamentos etc. Querem inclusive que tudo que aconteça durante o governo Dilma dê errado. Não há novidades nesse campo. Mas há sim novidades no campo da esquerda e nas vozes que vêm questionar o mérito dos megaeventos. A novidade é o debate que todos querem fazer em torno das vantagens ou desvantagens de se sediar uma Copa do Mundo e o que ela deixa de legado para os cidadãos e cidadãs. Sim, muitos vão desconsiderar qualquer argumento. Vão falar em corrupção e fazer um debate moral, mas muitos vão tentar entender o debate.
É necessário para quem governa o país que a Copa dê certo, mas que dê certo aos olhos do povo e para o povo, e não somente aos seus próprios olhos. Logo, o que é considerado certo em torno da Copa tem que ser debatido e não se trata simplesmente de quantificar a arrecadação. A esquerda das ruas e dos movimentos quer apontar os problemas que a Copa trouxe às cidades (que já tinham problemas estruturais), e a esquerda que governa o país tem que apontar vantagens que ela traz para a cidade (sem chegar perto de resolver seus problemas). Se não for possível apontar é porque ela não traz nenhuma vantagem imediata (ao menos aos olhos da população). O dito legado que se traduz em obras que beneficiam a população, especialmente com relação à mobilidade urbana, não terá ocorrido (ou ao menos esta será a impressão da população). Essa é a melhor maneira de afirmar que terá Copa. Porque terá Copa. Sim, terá. Resta saber qual Copa teremos. E esse questionamento será respondido através da politização do debate pelo governo.
* Clarissa Alves da Cunha é militante feminista da Marcha Mundial das Mulheres e da Coordenação Nacional da DS; foi vice-presidenta da UNE, secretária-geral da UEE-RJ e coordenadora do DCE da PUC Rio.