Há várias situações que nos fazem pensar na vida. Nenhuma delas, porém, se impõe com tamanha intensidade quanto o seu extremo oposto: a morte. Chamemos isso do que quisermos chamar, mas a perda do contato com alguém que nos é caro, o qual também ajudou-nos a refletir sobre existência, é uma perda irreparável. Dói sempre e será apenas disfarçada com outras dores. Pensar que não mais verei nas manifestações em defesa dos direitos humanos um grande companheiro como Beto de Oliveira, causa-me um misto de revolta – pela total impotência diante da realidade – e de reflexão sobre a dedicação quase cega que todo o militante possui, principalmente quando percebe que esta não é a sociedade sonhada por ele. No entanto, a despedida, o cansaço, a eterna espera, a valente indignação, todas as dúvidas e esperanças colocam-me diante de um único fato: só um militante despede-se da vida com a permissão de si mesmo.
“…nem a beleza, nem a juventude, nem o amor escapam à podridão;
em nos provar, enfim, que a vida e o seu cortejo de males
são ainda mais horríveis que a própria morte,
e que vale mais morrer que envelhecer.”
(Margerite Yourcenar – in Memórias de Adriano)
Tive a satisfação de iniciar uma idéia com Beto de Oliveira. Resolvemos romper com uma espécie de afirmação que já estava se transformando num mito. Todas as vezes que falávamos sobre homossexualidade no Partido dos Trabalhadores, ouvíamos a seguinte frase: “não temos acúmulo suficiente para discutir isso”. A situação era muito complicada. Vivíamos um quase desaparecimento completo desta parcela do movimento social, com os grupos de gays e lésbicas envolvidos em atividades que não visavam propriamente a defesa de direitos GLBTs. Enfrentamos uma oposição obstinada, dentro e fora do partido. A oposição que ocorreu internamente foi resolvida da mesma maneira que aquela que enfrentamos fora dele: com coragem. Fora do partido, acusavam-nos de tentar cooptar o movimento social. Mostramos que nenhum movimento de defesa dos direitos humanos poderia ser cooptado por qualquer partido, uma vez que as bandeiras de luta desses grupos existiriam independentemente de qualquer agremiação partidária. Se assim não fosse, haveríamos de duvidar sempre das propostas do movimento social. Não era o caso. O que havíamos experimentado até aquele momento nos apontava outro caminho.
Sobrevivemos à injusta acusação de que o envolvimento de militantes de esquerda (ligados à Convergência Socialista) levou a um hipotético fim dos grupos de gays e lésbicas em São Paulo. A acusação era tão desprovida de uma avaliação séria e tão misturada com rancores de natureza afetiva, que nenhum dos militantes que naquela época ainda estavam no movimento a aceitaram. Era verdade sim que muitos militantes gays e lésbicas resolveram dedicar mais tempo à construção de uma idéia coletiva, dentro de um partido que tinha suas raízes fincadas nos movimentos reivindicatórios. Mas daí afirmar que esse partido havia sido o culpado pela desarticulação do movimento GLBT no início da década de 1980, chegava a ser patético. A idéia só poderia ser oriunda de uma mente que via o movimento de gays e lésbicas como um gueto que jamais poderia tornar-se público. Bem conveniente às idéias das forças conservadoras, que sempre oprimiram esse segmento da sociedade. A contradição existente nessa afirmativa foi a sua ruína.
Esses fragmentos de história não têm interpretações diferentes. Eles são o que são e foram vividos por diversos militantes, incluindo Beto de Oliveira, que não se negou a expor sua imagem para uma sociedade que o machucava. “Dar a cara para bater” sempre foi tarefa de todo o militante de direitos humanos. Por que seria diferente para nós? Não demos apenas um lado da face, oferecemos o corpo inteiro para a batalha, sabendo que ela poderia ser tão cruel quanto foram os que se arvoraram a interpretar a história de acordo com as suas conveniências. Foi a intenção que colocamos na luta o que sempre nos diferenciou nos oportunistas de plantão. Infelizmente, o mesmo movimento social que defendemos, tanto dentro do partido como em nossos grupos GLBTs, ainda encontra-se infestado desses sujeitos. Esse problema, porém, estamos certos de que a própria sociedade se encarregará de solucionar, diferenciando os que realmente fazem o trabalho daqueles que se aproveitam do movimento social para tirar proveitos individuais.
Fala-se aqui de uma possível conseqüência reservada também aos que lutam contra todas as opressões: a morte. É verdade também que essa morte, para um militante, é totalmente diferente das demais; ela carrega consigo uma história que envolve justiça e liberdade. O homem que morreu no dia 8 de fevereiro deste ano não carregou consigo a sua história, pois ela foi construída junto com outros companheiros. Não será esquecido exatamente por isso. Reservo-me então à dúvida de um ateu: o que morreu junto com Beto de Oliveira? Se tudo o que ficou comigo e com os outros companheiros não vale nada, não serve pra nada, então tudo acaba mesmo com a morte. Por experiência própria, não posso concordar com isso. Morremos sim, cada vez que engolimos em seco qualquer tentativa de humilhação a que tentam nos subjugar. Portanto, faço outra pergunta: quem morreu no dia 8 de fevereiro? Essas são questões difíceis de responder. Eu sei que uma parte separou-se de mim, mas morrer é outra coisa. Como já afirmei anteriormente, isso é completamente diferente para quem entende a dimensão da vida justa e livre.
Eu só posso dizer ao companheiro Beto de Oliveira as palavras que ele não vai mais escutar, mas tinha a consciência de elas existiam em mim. Isso me conforta. Só posso dizer que a saudade terá a duração da minha existência, que ninguém consegue morrer totalmente, que a dor será disfarçada – mas não passará –, que somos livres porque não deixamos o algoz cumprir completamente o seu intento, porque sofremos a nossa dor e também a dor dos outros. Há tanta coisa pra dizer, tanta coisa que eu não tive tempo de pronunciar para ele. Mas é preciso que outros saibam o que significa tudo isso; essa história espalhada em cada um de nós que ficou por aqui. Isso não há quem consiga matar. Nem o desaparecimento precoce, nem a velhice “com seus cortejos de males”. Quem experimentou a vida e fez dela uma trincheira, quem jamais perdeu a ternura nos momentos mais duros, há de viver pra sempre.
William Aguiar é militante do grupo de gays e lésbicas do PT.