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Como desconstruir o bolsonarismo | Luiz Marques

Foto: Divulgação CRBM

Viva o povo brasileiro que venceu o “sistema” pesado, imundo, corrupto, a serviço de um pulha que rendia vantagens e privilégios à ganância dos rentistas, dos banqueiros e do agro desmatador para o comércio exterior. A diferença na contagem de votos, perto de dois milhões, no segundo turno, não expressa o tamanho real de nenhum dos candidatos, para baixo ou para cima. Nunca um fracasso retumbante custou tanto aos cofres públicos, como no redentor dia 30 de outubro de 2022. O rombo sem previsão orçamentária é monumental. O cinismo é gigantesco. Ao passo que a formidável conquista é exemplar e auspiciosa para o combate mundial ao neofascismo e à degeneração ético-moral que acompanha a opção liquidacionista da verdade. A esperança iluminou o amanhã.

A epifania estampada na ascensão de Lula, vítima duradoura de lawfare na imprensa corporativa, não teve por adversário só o aríete da opressão e da exploração. O confronto envolveu as estruturas estatais aparelhadas e articulações mancomunadas pela iniciativa privada, na surdina, em favor da candidatura sistêmica. Valeu a ruptura do pacto federativo para reduzir o ICMS dos estados com o propósito de maquiar os preços dos combustíveis, a torpe declaração do estado de emergência no intervalo eleitoral para distribuir auxílios de ocasião a taxistas, caminhoneiros e a compra de votos. Como os 51 imóveis da famiglia indecorosa, tudo em espécie e sob os holofotes. Va tutto bene.

As classes dominantes escancararam a demonstração de desprezo à nação e aos débeis valores da República, ao apoiar a podre campanha à reeleição do tiranete, chantagear empregados nos locais de trabalho e tramar sucessivos atos de corrupção da vontade geral. A “elite do atraso” ainda cultiva o escravismo na alma e a ideia de que os trabalhadores, hoje, são uma mera continuação dos negros escravizados durante mais de trezentos anos, sem direito a ter direitos. A gente cultiva a resiliência.

“Vivemos numa era de incerteza radical”, avalia o professor da Universidade Johns Hopkins, Yascha Mounk, em O povo contra a democracia (Companhia das Letras). Em diversos países, os eleitores têm sufragado representantes da extrema-direita (Estados Unidos, Rússia, Turquia, Índia, Hungria, Polônia, Filipinas, Itália) e conferido votações expressivas a extremistas em democracias antes consideradas sólidas (Suécia, França, Alemanha). O Brasil não é um caso à parte do contexto.

Jair Bolsonaro já era conhecido como um inimigo do regime democrático, pelos elogios saudosos à ditadura militar e às homenagens a torturadores e milicianos. As características racistas, misóginas, homofóbicas não eram segredo, quando foi eleito. O medíocre deputado aproveitou a conspiração judicial-midiática-parlamentar, com o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão injusta de um inocente, para a improvável ascensão ao poder. Circunstâncias favoráveis induziram a tragédia. Como na escalada do fascismo clássico, os partidos de centro não perceberam a gravidade da ameaça. Ficou famoso o editorial nonsense do Estado de São Paulo, sobre a “escolha difícil”.

Bolsonaro formatou o movimento de massas ultradireitista no Brasil, no último período. Tivesse tido competência intelectual para criar uma nova organização partidária, braço institucional do movimento extra-institucional que eclodiu nas ruas e o conduziu ao Palácio do Planalto, o monstro agourento teria aumentado os tentáculos e os dentes para devorar as instituições e fazer letra morta a “Constituição cidadã”. Dependente da liderança, com a vitória no pleito do redivivo operário, a tendência é o enfraquecimento paulatino da capacidade de mobilização da barbárie fanatizada; não o desaparecimento dos ressentimentos. Os 12% de cães raivosos seguem ferozes. Mas a roda girou.

O prócer da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, pastor Silas Malafaia, apressou-se em pedir uma oração pela pátria e bênção para Lula. A Jovem Pan demitiu os três jornalistas hiperidentificados com o desgoverno no ocaso, numa “guinada para ajustar o tom crítico ao governante eleito”. O fiel presidente engavetador da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, cumprimentou o vencedor e apelou “à construção de pontes”. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, conclamou “à reunificação do país”. A presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, celebrou “o Estado de direito democrático”. A institucionalidade não hesitou ao postar inconformidades com tentações golpistas.

O presidente dos Estados Unidos, John Biden, quarenta minutos após a oficialização da escolha, reconheceu a lisura do processo eletivo e parabenizou o novo mandatário da República Federativa do Brasil. Representantes do mundo inteiro comemoraram a execração votiva da morbidez. O fato está consumado. Os principais jornais saudaram o retorno do estadista, protagonista no cenário nacional e internacional. Chegou o momento do genocida pária “já ir embora”. Convidado pelo presidente do Egito, Lula será a estrela da COP27 – a Conferência sobre o clima no planeta.

A demora do inquilino na Presidência em assumir o despejo mostra o desapreço pela soberania popular. O silêncio interpela o núcleo duro, ligado sobretudo ao agronegócio. A Confederação Nacional de Transporte (CNT) condenou o bloqueio em estradas pelos “transtornos econômicos”. A Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística (CNTTL) e o Conselho Nacional do Transporte Rodoviário de Cargas (CNTRC) emitiram notas em defesa da democracia e em respeito do resultado das urnas.

“Fico muito triste de muitas pessoas usarem o nome dos caminhoneiros. Não luto e nunca lutarei contra a democracia”, disse o pragmático Chorão, da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotores (Abrava). Entidades ao assistir os vídeos gravados duvidaram que fossem caminhoneiros, pois não reconheceram as fisionomias. O balão de ensaio insurrecional pretendia atrair proprietários de armas e acender o estopim para a intervenção das Forças Armadas.

A Polícia Rodoviária Federal (PRF), que dificultou a circulação de ônibus com eleitores da Frente Esperança Brasil na região Nordeste, foi conivente com as ações revanchistas e covardes dos agrupamentos convertidos em “bucha de canhão” pelos setores predadores da burguesia, que interditaram a liberdade de ir e vir dos brasileiros e sacrificaram os sagrados direitos individuais.

Quando o mau perdedor, enfim, se manifestou sobre o problema referiu que “a direita não usa os métodos da esquerda” (sic), em alusão aos distúrbios da ordem pública por agitadores bolsonaristas travestidos. A convocação à concentração defronte os comandos militares regionais, no dia dos finados, obedeceu à lógica putschista. Por debaixo dos panos, o “despresidente” age como o escorpião que pede carona à rã para atravessar o lago (a Constituição), depois pica-a de morte na travessia: é de sua natureza. Por óbvio, não felicitou o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.

O que fazer?

Donald Trump e Viktor Orbán são paradigmáticos. Um por estimular a ocupação do Capitólio, ao perder a eleição. Outro, ungido pelo voto, por consolidar seu controle absoluto com apaniguados nas emissoras de TV estatais, na comissão eleitoral e no tribunal para alterar as normas eleitorais em benefício próprio. Ainda, forçar as empresas estrangeiras a sair do país para o fomento do lucro do empresariado que o sustenta, instituir uma regulamentação inibidora para as ONGs e tentar fechar a importante Universidade Centro-Europeia. Orbán não esconde o rechaço à democracia liberal. Sem meias palavras, apresenta-se como defensor de uma concepção “hierárquica” da democracia, com vistas a um “Estado iliberal baseado em fundações nacionais”. Alimenta os cupins da normalidade.

O roteiro seria readaptado ao Brasil, à medida que o populismo extremista na terra brasilis é pró-globalização, calcado nas privatizações das empresas públicas e transferência lesa-pátria ao capital internacional. Esse é o traço distintivo do neofascismo verde-amarelo, cujo nacionalismo tem caráter xenófobo em termos étnico-culturais (contrário aos indígenas e aos imigrantes venezuelanos e haitianos, em especial) e não em termos econômicos (o viés é de um entreguismo vira-lata). De resto, com a reeleição, o capitão que até já dispunha de guarda pretoriana, a PRF, imitaria o modelo húngaro. “Muitos policiais estão envergonhados com a situação”, relata um policial anônimo.

Entre nós, aprofundado pelo neoliberalismo, o fascismo social que formou guetos de excluídos das benesses do progresso antecedeu o protofascismo político do palhaço sociopata. Com a saída de cena de Bolsonaro (quae sera tamen), a questão primordial está em desconstruir o bolsonarismo.

A bombástica proclamação de Francis Fukuyama, em 1989, sobre “o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma definitiva de governo humano”, diante do crepúsculo da Guerra Fria, era uma figura de linguagem retórica; não exatamente o propalado “fim da história”. Versões do “liberalismo antidemocrático” e da “democracia iliberal” desmentiram a tese ufanista do festejado filósofo nipo-estadunidense. Três fatores contribuíram para a frustração do otimismo com a antiga democracia representativa.

Primeiro, a estagnação do padrão de vida das famílias após os anos 1980, que coincide com a hegemonia neoliberal das finanças nos hemisférios Norte e Sul. Se havia estabilidade no passado, no presente há o caos. Segundo, embora seja desabonador admitir, a democracia dependia de um fundamento monoétnico (a supremacia branca), o que as lutas anticolonialistas continuam a minar e desmoronar. A homogeneidade deixou de ser um valor incontestável, em todos os lugares. O atual chefe de governo do Reino Unido, Rishi Sunak, cujos pais são descendentes de indianos, é um inusitado não-branco no cargo. O mundo se fez multiétnico, atemorizando parcela da população. Terceiro, os meios de comunicação – que marginalizavam opiniões alternativas ao establishment – perderam a coroa para a internet. As mídias sociais, bem ou mal, pluralizaram as vozes e as cores.

Em linhas gerais, a sociedade ganhou em complexidade. As próprias famílias sofreram uma rápida metamorfose. A reação tem desacreditado os pilares da representação democrática, o que foi condensado na máxima “não me representa”, que criminaliza a política e os políticos. Yascha Mounk (op. cit.) aponta três urgências para estancar a forte sangria da democracia, a saber:

1) Políticas econômicas para diminuir as desigualdades e elevar o nível de vida das maiorias, com a distribuição mais igualitária do crescimento econômico. “Para preservar a democracia sem abrir mão do potencial emancipador da globalização, precisamos descobrir o que o Estado-nação deve fazer para retomar o controle do seu destino”. No Brasil, o programa eleito atende a preocupação ao inserir os pobres no Orçamento da União, valorizar o salário mínimo e as aposentadorias acima da inflação, e acionar o Estado indutor para ampliar o mercado de trabalho. O remédio é igualdade.

2) A discussão pública para socializar o significado do pertencimento ao Estado-nação moderno e destacar a riqueza cultural multiétnica para a sociabilidade democrática. O Brasil não é e não deve ser um condomínio escapista, fechado e blindado por procedimentos de eugenia contra o pluralismo e a diversidade. O negacionismo étnico e o autoritarismo levam à intolerância e à violência. A ênfase tem de recair no que une, ao invés do que divide a população em segmentos estanques. “A sociedade capaz de tratar todos os seus membros com respeito é aquela em que os indivíduos gozam direitos iguais por serem cidadãos, não por pertencerem a um grupo particular”. Tempo de diálogo.

3) Maior e melhor aprendizado sobre o universo digital e os impactos transformativos da internet e das mídias sociais. Estas não podem ser sinônimos de ódio ou fake news. Em paralelo, os governos não podem ser censores da liberdade de expressão. Dispositivos do Facebook e do Twitter devem existir para impor dificuldades à utilização das plataformas por hordas em cruzadas para disseminar mentiras, preconceitos, sentimentos anticivilizacionais. “A fim de tornar a era digital segura para a democracia, precisamos exercer influência não somente sobre quais mensagens são difundidas nas mídias sociais, mas também sobre como tendem a ser recebidas”. Atenção intelecto-militante.

Escolas e universidades, partidos políticos e movimentos sociais, sindicatos e associações comunitárias, são espaços para o debate sobre as virtudes da democracia e o funcionamento das instituições republicanas, assinalando lacunas e proposições de aperfeiçoamento para revigorar o exercício da cidadania. “Ao longo dos anos esse senso de missão evaporou. Agora, num momento em que a democracia liberal corre risco existencial, está mais do que na hora de revivê-lo”. É um começo. A desconstrução exige paciência para empreender uma constante “guerra de posição”, na acepção gramsciana. A luta pela democracia representativa, complementada pela participação popular, contra o neofascismo não terminou com a apuração dos votos. Apenas trocou de patamar.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

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